Kirk Douglas, na pele do jornalista Chuck Tatum, no filme clássico A Montanha dos Sete Abrutres, de 1951. |
Magali Moser
Doutoranda em Jornalismo no POSJOR, especial para o objETHOS
Quando uma nova tecnologia é lançada, costuma-se questionar o futuro de outros meios e suportes já existentes. Foi assim com a chegada da televisão em relação ao rádio. Repete-se com a internet sobre os jornais impressos. “Alguns fenômenos da mídia são mais antigos do que em geral se imagina”. A frase parece oportuna quando pensamos o sistema midiático contemporâneo. É de autoria do historiador inglês e professor emérito da Universidade de Cambridge, Peter Burke, que no livro Uma história social da mídia, junto com Asa Briggs, reflete sobre as mudanças ocorridas nos meios de comunicação nos últimos séculos.
Pensar o futuro do jornalismo, fenômeno que acompanha a sociedade desde o século XVII, num ambiente marcado por transformações como o atual, pode ser perigoso. O risco de afirmar que tudo piorou ou o argumento de que houve um progresso contínuo, como alerta Burke, devem ser evitados quando pensamos nesse sistema midiático caracterizado por um comportamento não regular, nem progressivo. As mudanças acompanham este processo desde a invenção da impressão, costumeiramente atribuída a Johann Gutenberg, com a prensa gráfica em Mainz, na Alemanha, embora na China e Japão já existissem experiências anteriores de impressão desde pelo menos o século VII. Há indícios inclusive de que a invenção ocidental foi influenciada pelas notícias do ocorrido no Oriente (BURKE, 2016). Para além das divergências, a mudança é uma constante na história da comunicação. Como ensina o historiador Peter Burke: “A mídia precisa ser vista como um sistema em contínua mudança, inclusive de ordem tecnológica”.
Faço esta breve introdução para alertar a complexidade da temática, além de chamar a atenção para a existência de alguns fenômenos que podem ser vistos inicialmente como novidade, mas não o são. A sobrecarga ou o excesso de informação correm o risco de serem considerados decorrentes da era da internet. Mas não são fenômenos novos, ao contrário do que se possa pensar. Assim como as chamadas fake news, que se multiplicam pelas redes e fortalecem, a meu ver, o papel e a necessidade de um jornalismo profissional. Como alguns dos fenômenos que se apresentam como novos não são tão novos assim, cabe observar o percurso histórico assumido pela comunicação humana. A invenção do telégrafo elétrico em 1837 é um dos marcos lembrados por estudiosos da história da mídia como a ruptura da tradicional ligação entre transporte e comunicação das mensagens. Isso porque até a concepção do telégrafo, a comunicação humana dependia do transporte da mensagem, de alguma forma.
Se alguns fenômenos não podem ser vistos como novos, precisamos reconhecer uma especificidade dos últimos tempos: a possibilidade de instantaneidade da informação aliada ao contexto das mídias sociais e a perda da concentração do monopólio por jornalistas na produção e circulação de informações A discussão sobre o futuro do jornalismo nesse cenário tem sido recorrente. Com a possibilidade de qualquer pessoa, munida de um celular, produzir conteúdo e postar nas redes, alguém pode perguntar: Jornalistas para quê, afinal? Qual o sentido do jornalismo no mundo contemporâneo?
Parto do pressuposto de que jornalismo é produção de conhecimento social cristalizado no singular, com base no teórico Adelmo Genro Filho, precursor do pensamento de uma possível teoria para o jornalismo como campo de conhecimento. Estou de acordo com a vertente de interpretação do jornalismo entendido “como uma forma de conhecimento social que, embora historicamente condicionada pelo desenvolvimento do capitalismo, é dotada de potencialidades que ultrapassam a mera funcionalidade a esse modo de produção”, como lembra Genro Filho.
Mas reconheço que, muitas vezes, a capacidade de o jornalismo exercer seu potencial de autonomia, denúncia e investigação, que caracteriza seus fundamentos e preceitos, esbarra em obstáculos. Principalmente, de ordem econômica e política. Num país marcado por heranças de colonialismo, escravidão, golpes, fortes relações clientelistas e autoritarismo, este risco se amplia, podendo comprometer a função social da própria imprensa. Os interesses do oligopólio que atua em rede e com propriedade privada no Brasil, por exemplo, ameaçam – quando não impedem – a contribuição esperada pelos jornais em favor da democracia.
O Brasil é um dos países mais violentos da América Latina para o exercício do jornalismo, de acordo com a ONG internacional Repórteres Sem Fronteiras. A baixa tradição democrática, com o golpe orquestrado desde a destituição da presidenta Dilma Rousseff, a condenação sem provas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aliada à alta concentração da propriedade dos meios agravam a situação.
A democracia depende de um espaço para o debate público já que pressupõe a existência e convivência de indivíduos livres e a circulação de ideias diferentes. Por isso, a pluralidade e independência da mídia são condições para garantir um sistema político democrático. Em tempos de fake news, crenças e emoções tornaram-se mais exacerbadas e perceptíveis no contexto atual. O jornalismo profissional se faz ainda mais necessário, sobretudo pela sua capacidade de desvendar fatos ocultos do conhecimento público. Acredito no diferencial do jornalismo não só no âmbito da checagem e da apuração, que ganham força no ambiente das fake news, mas, sobretudo como narrativa do tempo presente, narrativa do cotidiano. Uma narrativa “ética, técnica e esteticamente singular”, de acordo com a pesquisadora e professora Cremilda Medina, para quem a narrativa jornalística deveria se humanizar no sentido de enfrentar a complexidade dos nossos tempos. Saber narrar também é competência de um campo particular e não pode ser ignorado. Quando evoco aqui o potencial da narrativa, penso especialmente na reportagem, gênero que, pelo potencial e capacidade investigativa e de contextualização, caracteriza um dos fundamentos, ou como muitos autores definem “a essência do jornalismo”, mas, no entanto, parece ter perdido espaço nos veículos. Claro que esta reflexão também precisa ser feita em paralelo ao debate sobre a sustentabilidade financeira do jornalismo e as suas possibilidades para investir em investigações e reportagens de fôlego.
O contexto brasileiro além de se definir por curtos períodos democráticos é também marcado pela forte concentração da propriedade dos veículos de comunicação, com o domínio de cinco famílias nos maiores grupos. Há de se observar ainda que muitas concessões ocorreram justamente naqueles momentos não-democráticos e permanecem a longo prazo, mesmo que o período e a forma da concessão sejam muito questionáveis. Este diagnóstico combinado a uma mídia caracterizada pela pouca diversidade de vozes coloca seriamente em risco a democracia.
Nesse cenário, como pensar o futuro do jornalismo? Sabemos que há também uma mudança geracional, os jovens leem menos jornais que os mais velhos. As mudanças na forma de consumir notícia têm sido apontadas há tempos por quem estuda o fenômeno. Por outro lado, a lacuna de informação com os mais pobres, que não se veem representados na mídia corporativa, tem criado um desafio. Há ainda o fenômeno dos “desertos de notícias”, assim chamados pelo Atlas de Notícia que mapeou o jornalismo brasileiro em 2017 nos seus 5.570 municípios e assim definiu as regiões inteiras sem circulação de jornalismo profissional.
Chega a ser um paradoxo: Há cada vez mais dados, opiniões e versões em circulação, suprindo uma necessidade criada por atualizações constantes. No entanto, parece ainda mais complicado sair da superfície dos fatos e saber, de fato, o que está acontecendo. Informação é condição essencial para a garantia da cidadania e o jornalismo se faz necessário para a democracia funcionar, já que os cidadãos precisam de informação para tomar decisões. Das mais simples as de maior complexidade. A informação e as notícias existem para orientar as pessoas no mundo (PARK, 2008). A partir dela, podemos fazer ligações, contextualizações, produzir, de fato, conhecimento. Em suma, não importa se no papel ou na multitela, o jornalismo tem uma função pedagógica de compreender o mundo, além do compromisso de contextualizar e interpretar a realidade, cada vez mais complexa. Por isso, seu futuro está garantido em sociedades que se preocupam com a democracia.
Referências:
BURKE, Peter; BRIGGS, Asa. Uma história social da mídia. 3º ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2016
GENRO FILHO, Adelmo. Segredo da pirâmide. Para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Tchê, 1987.
MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente. Narrativa e Cotidiano. 2ª ed. São Paulo: Summus, 2003.
PARK, Robert E. A Notícia como Forma de Conhecimento: um capítulo dentro da Sociologia do Conhecimento. In: BERGER, Christa; MAROCCO, Beatriz (org). A Era Glacial do Jornalismo: Teorias sociais da imprensa v.2. Porto Alegre: Editora Sulina, 2008a, p. 51-70.
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