Na madrugada de sexta para sábado os Estados Unidos, a França e o Reino Unido levaram a cabo uma operação destinada a destruir as infraestruturas que o regime sírio de Bashar al-Assad tem utilizado para produzir as armas químicas que já utilizou em diversas ocasiões. Foi um ataque cirúrgico, que não terá provocado mortes civis, destinado sobretudo a enviar um recado para Damasco: a linha vermelha da não utilização de armas proibidas é mesmo para cumprir. Aparentemente foi também um ataque limitado, capaz de suscitar uma reacção diplomática de Moscovo – a Rússia é o principal aliado do regime – mas não muito mais do que isso. O Macroscópio não podia por isso deixar de regressar ao conflito sírio, quer para recordar algumas das características que o tornam único, quer para perceber até que ponto esta acção militar suscitou condenação e críticas.
Comecemos pela Síria e por três trabalhos que ajudam a perceber a eternização de um conflito onde todos estão contra todos, algo que Jorge Almeida Fernandes resumiu bem num texto escrito ainda antes do ataque, Um tweet não faz a “nova guerra mundial”: “Mexer” na Síria exige a perícia de um desactivador de bombas. A questão síria desdobra-se em muitas frentes, anota o jornalista Marc Semo no Le Monde. É uma guerra civil entre o regime de Assad e uma rebelião em vias de esgotamento. Uma guerra conduzida por uma aliança internacional, dirigida pelos EUA e pela França, contra o que resta do Estado Islâmico. Uma luta dos curdos, apoiados pelos ocidentais, que a Turquia quer esmagar. Um conflito entre as potências regionais que se opõem ao Irão, como a Arábia Saudita e Israel. Enfim, um braço-de-ferro entre Washington e Moscovo. A multiplicidade de actores e interesses é um factor que impede uma solução política.”
Para compreender como se chegou até aqui pode-se seguir um roteiro quase cronológico editado pelo Council of Foreign Affairs do Estados Unidos, Syria's War: The Descent Into Horror. É um trabalho onde se sublinha que, “For all of the regime’s latest successes, Assad is hardly the master of his country’s fate. Iran, Russia, Turkey, and the United States all have troops based in Syria, and Israel regularly strikes Syrian territory, targeting Iranian military infrastructure and weapons destined for Hezbollah.” Nele também se recorda como os vários grupos foram entrando em acção e como as potências se foram colocando no terreno: “Jihadis promoting a Sunni theocracy eclipsed many opposition forces fighting for a democratic and pluralistic Syria. Regional powers backed various local forces to advance their geopolitical interests on Syrian battlefields. The United States has been at the fore of a coalition conducting air strikes on the self-proclaimed Islamic State, while Turkey, a U.S. ally, has invaded in part to prevent Kurdish forces, the United States’ main local partner in the fight against the Islamic State, from linking up their autonomous cantons. Russia too has carried out air strikes in Syria, coming to the Assad regime’s defense, while Iranian forces and their Hezbollah allies have done the same on the ground.”
O tema do envolvimento de múltiplos países foi desenvolvido, no Observador, num especial de João de Almeida Dias, A guerra de todos onde ninguém ganha. Quais são os países que lutam na Síria?. Começando por notar que “A guerra da Síria tornou-se no sítio onde todos os países canalizam os conflitos que não querem ter em casa”, este trabalho organiza-se depois em oito pontos e é muito completo:
- Rússia, o grande aliado de Assad
- Irão, em busca de um corredor geoestratégico
- Hezbollah, na Síria com um olho em Israel
- EUA, a linha vermelha de Obama e a linha vermelha de Trump
- França, contra os terrorisas e agora contra Assad
- Reino Unido, ao lado dos seus maiores aliados
- Turquia, contra Assad mas sobretudo contra os curdos — e com a Rússia de lado
- Israel, em constante sobressalto acompanha (e atua) à distância
O terceiro texto que seleccionei é da The Atlantic e nele Andrew Tabler procura compreender How Syria Came to This. É um trabalho bastante interessante onde encontrei uma possível explicação para o facto de noutros países árabes os militares, quando confrontados com as multidões que enchiam as ruas durante a chamada “Primavera Árabe”, terem acabado por hesitar na repressão, algo que não sucedeu na Síria. Eis uma parte do argumento do autor: “Assad’s by contrast is a minority government with a kind of fortress of sectarian interests around it. Minority Alawites serve at the core, followed by concentric rings of other minorities (Christians, Shia, etc.), and finally by coopted Sunnis who represent the majority in Syria. Minority army and security officers are therefore farther removed from the majority Sunni population, making them more likely to order fire against protestors than to topple their brethren in power. This has galvanized the Assad regime against the kind of splits that toppled Ben Ali and Mubarak.”
Relativamente à acção desencadeada pela aliança houve, de uma forma geral, ou aplauso ou expressão de dúvidas sobre a sua real eficácia, não se tendo notado muito – a não ser nos círculos mais à esquerda e tradicionalmente anti-americanos – reacções de condenação. Apesar de tudo a barbaridade de Assad está mais do que demonstrada. Eis uma pequena selecção de pontos de vista nem sempre coincidentes:
- Syria has paid a terrible price for the west’s disastrous policy of doing nothing, de Andrew Rawnsley no The Guardian, fez uma crítica aos não-intervencionistas considerando que tanto há um custo em tentar agir como em não agir, e que desta vez o curto de não agido está a ser muito elevado: “Non-interventionists said then, as they say now, that anything that the west does only makes things worse. That we can’t prove either. What we can see is how bad things have become and it is hard to conceive how exactly it could be worse. After seven years of failing to act in Syria, we can audit where a non-interventionist policy has got us. It has been an utter disaster in every respect.”
- Bombing Syria will not provide a lasting solution, um editorial do Financial Times onde se constata o evidente – até porque na verdade nunca se pretendeu com esta acção resolver o problema sírio –, mas onde também se faz uma análise interessante do comportamento dos russos: “Moscow’s protestations — manifested by a doomed attempt to persuade the UN Security Council to condemn allied action against Mr Assad — are transparently disingenuous. In 2013 Vladimir Putin, the Russian president, dissuaded his then US counterpart Barack Obama from acting militarily on his own red lines on chemical weapons use. He did so by guaranteeing Russia would oversee the destruction of Mr Assad’s stockpiles. It is to Mr Putin’s and Russia’s disadvantage ultimately that he has proved unwilling to display a greater sense of responsibility on the international stage.”
- The many things Trump didn’t accomplish in the latest Syria strike, uma análise publicado no Washington Post de caracter aparentemente mais jornalístico mas bastante crítica da opção de Trump, chegando a notar que “The attack, my colleague Liz Sly wrote, was "interpreted in Syria as a win for Assad because the limited scope of the strikes suggested that Western powers do not intend to challenge his rule."
- Striking Syria Was the Right Callera o título da newsletter matinal de Jim Geraghty da National Review, que além de referir outros textos da imprensa, procura precisamente responder às críticas formuladas precisamente no citado artigo do Washington Post, sublinhando que “No, sending 105 missiles isn’t going to alter the course of the Syrian Civil War. It’s just going to demonstrate to Assad and his allies that every time they reach for the chemical weapons, we’ll blow some of their stuff up*. Stick to conventional weapons — war is awful enough without poison gas becoming a standard part of the arsenal.”
- Was Trump’s Strike on Syria Justified?é uma síntese da Slate dos prós e dos contras, mas onde mesmo assim se chama a atenção para que não se deve reagir à decisão de Trump pensando apenas que ela é uma decisão de Trump: “At the very least, Trump’s critics in the U.S. should acknowledge that the limited action taken on Friday was not some sort of warmongering Trumpian lunacy. Many members of Barack Obama’s administration wanted him to take similar action in 2013, and it’s not at all a stretch to imagine Hillary Clinton doing the same under the circumstances faced by Trump.”
Esta última referência dá uma boa passagem para um outro texto do Washington Post, este sobre os bastidores do processo que levou, no interior da Casa Branca, a uma opção pela acção que vai ao arrepio de muito do que Trump prometeu na sua campanha eleitoral. Nele se explica como Trump, a reluctant hawk, has battled his top aides on Russia and lost. Mas isso não tranquiliza os analistas, que não sabem se este novo Trump é o Trump que conta: “Some European diplomats in Washington question whether the tough moves have Trump’s full support. “This wouldn’t be the policy unless Trump supports it. . . . Yes?” asked one ambassador. Russia analysts seem just as mystified. “This is a man who if he had his druthers would be pursuing a much more open and friendly policy with Russia,” said Angela Stent, a former White House official and professor at Georgetown University. “The United States essentially has three Russia policies: the president’s, the executive branch’s and Congress’s.”
Guardei para o fim duas reflexões de autores portugueses, duas abordagens bem distintas e contrastantes. Em A Aliança resisteTeresa de Sousa, no Público, aplaude o facto de ter sido possível unir nesta acção os três países da NATO com real capacidade militar (fora a Turquia), algo que considera muito relevante: “O que houve de novo, desta vez, foi precisamente uma operação preparada com dois dos principais aliados dos EUA na Europa e não apenas o resultado de um “impulso” de Trump alimentado por alguns “falcões” que passaram a ter lugar na Casa Branca. Já antes, no caso de Salisbury, foi possível constatar que se mantinha um nível de confiança entre os aliados, que ia para além dos tweets de Presidente americano”.
Já Paulo Trigo Pereira, no Observador, escreveu um texto mais crítico em que toma por referência hipotética o anterior Presidente dos Estados Unidos: Teria Obama atacado a Síria?A sua conclusão é que não: “O que acho que Obama faria neste caso, independentemente do que o próprio possa dizer agora, era recolher indícios irrefutáveis sobre o último ataque Sírio, envolvendo Assad, para exigir que a Rússia largasse definitivamente os vetos no CSNU, e abrisse as portas da Síria para a inspeção e monitorização da eliminação total e imediata das armas químicas pelo regime de Assad. Isto, sim, teria eficácia duradoura e seria a melhor resposta. Só se tudo o mais falhasse avançaria para o ataque, que aliás ponderou no passado, com todo o apoio possível da comunidade internacional que seria bem mais alargado.”
Quem tiver chegado até aqui terá por certo notado que nada, neste debate, remete para uma hipotética 3ª guerra mundial, um cenário apocalíptico de que muito se falou nas últimas semanas conforme se for tornando claro que os Estados Unidos e os seus aliados iam afrontar a estratégia agressiva da Rússia de Putin. Daí o título desta newsletter, e ainda bem.
De resto, tenham bom descanso e boas leituras.
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