A relação com produtos é ambígua, paradoxal e cínica; esse cenário inverte o papel do Supereu, que passa de interditor para o de instância que nos obriga a sermos felizes
Quem observa o mundo corporativo a média distância, com alguma ciência da complexidade representada por assuntos como motivação, emoção ou liderança, percebe um grande descompasso. A exigência de controle, verificabilidade e “compliance” dos processos não é compatível com o universo errático dos palestrantes, dos livros de gerência miraculosa ou com os discursos “neuroeconômicos” sobre o capital humano. Ao mesmo tempo é preciso um discurso e uma linguagem que tornem o consumo, a realização, a expressão e a invenção de nossas fantasias. Decisões sobre campanhas de marketing e suas escolhas discursivas são tomadas em meio a palpites sustentados pela arrogância personalista dos envolvidos.
É neste cenário que os livros de Isleide Fontanelle, Cultura do consumo (FGV, 2017), e Sintoma e fantasia no capitalismo comunicacional, de Luiz Aidar (Estação das Letras e Cores, 2017), surgem como um oásis de sobriedade. Uma caravana de lucidez atravessando o deserto das opiniões. A relação econômica entre produção, a estilística identitária do consumo e os prazeres emocionais nele envolvidos são analisados de forma convergente. No primeiro caso se reconstitui um debate que remonta ao nascimento do liberalismo com Adam Smith e sua noção de interesse, retirada de Mandeville, este, médico e filósofo do século 17, que escrevia como a supressão de nossos desejos pode nos fazer adoecer. As disciplinas do consumo dividem-se, desde a origem, entre o marketing e a psicologia comportamental de um lado e as relações públicas e a psicanálise do outro. O papel de Edward Bernays, sobrinho de Freud, na criação do negócio da propaganda nos Estados Unidos do pós-guerra é recuperado, com o intrigante caso sobre como as mulheres são levadas a fumar como um “ato de libertação”. Também não se deixará de lado que John Watson, criador do behaviorismo e mentor de Skinner, deixou suas atividades acadêmicas para integrar o mundo da publicidade.
A emergência e consolidação da cultura do consumo (1945-1990), bem como suas formas contemporâneas marcadas pelo consumo de experiências, pelo prossumo (fusão do produtor com o consumidor), pelo consumo consciente, responsável, verde, sustentável, ético ou ativista, não pode ser compreendida sem o entendimento do capitalismo em sua forma imaterial, baseado na força da marca, na cultura estruturada como entretenimento, no branding e no papel identitário e expressivo do consumo, particularmente, com a vida digital.
Escritos de forma envolvente e convincente, os dois livros têm um mérito adicional para o leitor brasileiro, pois concorrem para profissionalizar a discussão sobre o consumo e os meios de comunicação, mostrando como muito além da prática há um conjunto de problemas mais ou menos recorrentes nesta matéria, para a qual economia e sociologia ou antropologia e psicologia não podem ser dispensadas. A passagem de uma sociedade da produção para uma cultura do consumo inverterá o papel do Supereu, de interditor para o de instância que nos obriga a gozar, nos levando assim à obrigação de felicidade. Como um carro que acelera e freia, como uma educação que teme o consumismo assim com a exclusão do mercado, que detesta logomarcas até transformar o próprio eu em uma delas, que quer a liberdade do consumo sem pagar por isso, sem incorporar sua substância perigosa. Assim, o circuito do consumo é, necessariamente, ambíguo, paradoxal e cínico. Sua estrutura precisa ser a da fantasia para nos fazer acreditar, mas não muito.
Christian Ingo Lenz Dunker, psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: Mente & Cérebro
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