terça-feira, 17 de maio de 2022

Das harmonias católicas à “cracolândia virtual”

 “Na maior parte da cerimônia, os fiéis acompanham o canto em tom afinado, compenetrado e reverente. Tudo transcorre como um grande espetáculo presenciado pelo Céu, pelos anjos e santos”.

  • Paulo Henrique Américo de Araújo

Étarde de domingo em uma importante capital do Brasil. Inicia-se a missa no rito latino tradicional numa pequena, porém digna, capela localizada no centro da cidade. O edifício está a tal ponto lotado que muitos dos assistentes têm de permanecer do lado de fora. O jovem sacerdote entra com seus paramentos tradicionais. Seguem-se os tocheiros, o crucifixo, o turíbulo, levados pelos acólitos, e por fim… um coroinha, que certamente não atingiu os 10 anos de idade, carrega nas mãos a naveta com o incenso. O coral salmodia solene e tranquilo o Proprio da missa, o Kyriale e hinos diversos. Na maior parte da cerimônia, os fiéis acompanham o canto em tom afinado, compenetrado e reverente. Tudo transcorre como um grande espetáculo presenciado pelo Céu, pelos anjos e santos.

Terminada a missa, quase diríamos que outra cerimônia começa. Todos se reúnem no jardim em frente à capela. Cumprimentam-se, conversam distendidamente. As crianças brincam, mas sem agitação. Ao mesmo tempo que uns frugais comes e bebes são servidos, chega o sacerdote e entra em uma das rodas de conversa, trocando amabilidades… Enquanto isso, uma tenra luz dourada vai iluminando o local. É o sol que vai se pondo no horizonte.

Aos poucos, as rodas se desfazem… Chegou a hora de ir embora. Outra semana começa. E todo aquele ambiente se dissipa do mesmo modo como havia se desenrolado a cerimônia religiosa: harmoniosamente.

Resignação, sublimidade, elevação de espírito

Presenciei essas cenas por algumas semanas em uma viagem recente. Havia algo ali de uma atmosfera difícil — talvez impossível — de explicar sem a ação da graça. Em sua infância, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira viu, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus em São Paulo, algo semelhante a essa atmosfera de graças: “Quando essas pessoas entravam na igreja, elas eram o que descrevi [pessoas comuns]; mas quando saíam [depois da cerimônia], elas saíam com uma dimensão dentro da alma muito maior. Certos reservatórios interiores de resignação, de sublimidade, de elevação de espírito estavam reabastecidos até o dia seguinte. O Sagrado Coração de Jesus as tinha dessedentado, elas tinham-se abeberado nesse Sagrado Coração, a rogos de Nossa Senhora Auxiliadora. Saíam, portanto, saciadas, e se desfaziam na bruma ainda violácea do dia que estava se pondo”.1

Maneiras de ser, comportamentos, mentalidades impregnadas de senso católico. Como era este nosso Brasil quando tais cerimônias se repetiam todos os domingos por todas as cidades do País? É evidente que a sociedade inteira ficava impregnada, em medida maior ou menor, de espírito católico.

“Missas show” expulsaram das igrejas o sublime

Missa “africana” em uma igreja da cidade de Maryland, Estados Unidos.

O progressismo, que predominou e em certo sentido gestou o Concílio Vaticano II, invadiu a Igreja e a sagrada liturgia. Hoje quase não restam senão as missas show, missas afro, missas sertanejas! O lume do Sagrado Coração de Jesus, aquela harmonia das cerimônias tradicionais que temperavam as almas e a sociedade, praticamente desapareceu.

O frenesi e a brutalidade se tornaram dominantes. Passamos aos poucos a viver num mundo de loucura e de caos. E pior, nos acostumamos a ele. Décadas atrás, seria impensável, por exemplo, a existência de uma cracolândia, exatamente ali, a dois passos da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, a mesma igreja que Dr. Plinio frequentava quando criança.

Como chegamos a esse ponto? Sem menosprezar a importância de outras causas, o abandono daquelas harmonias do catolicismo — expressas na liturgia tradicional e que deitavam sua influência benéfica sobre as almas e a sociedade — tornou possível o surgimento das cracolândias, que vão paulatinamente se alastrando por nossas megalópoles como um câncer maligno.

Pandemia “internáutica”, “cracolândia virtual”, metaverso

Cracolância: a decadência moral escancarada nas ruas de São Paulo

Alguém dirá: as cracolândias são exceção. Trata-se de um exagero afirmar que toda a sociedade contemporânea caiu no vício das drogas simplesmente pela existência de algumas cracolândias. A maioria das pessoas rejeita as drogas e, se pudesse, poria fim a elas.

Respondo: há outras drogas por aí que geram tanto ou mais frenesi e descontrole quanto a maconha, a cocaína ou o “crack”, e que, além do mais, não provocam repulsa imediata na opinião pública em geral. Ora, as drogas ocasionam uma espécie de fuga da realidade em direção a um universo de ilusões, de descontrole e de prazeres transitórios. Pois bem, o que é o atual mundo superconectado, a chamada sociedade cibernética?2O que é essa dependência que invariavelmente muitos sentem dos smartphones, das redes sociais e dos jogos eletrônicos? Alguém negará que vivemos uma pandemia “internáutica”?

O metaverso: a próxima geração da internet, que proporcionará experiências intensas e abrirá novos mercados.

E agora estamos prestes a dar um novo passo rumo à “cracolândia virtual”. A futura revolução cibernética já tem nome: metaverso. Uma poderosa plataforma de computadores que vai além de tudo que já se tem visto. É apontada como a próxima geração da internet, proporcionando experiências intensas e abrindo novos mercados. Alguns temem que esse metaverso tornará ainda pior o vício de dependência às mídias sociais. Outros veem como uma distração muito mais prejudicial, especialmente entre os jovens3.

Momento em que Mark Zuckerberg, diretor de Facebook, faz o lançamento mundial do “metaverso”

Metaverso, “droga virtual”, fuga da realidade

A novidade do metaverso em relação ao que já se encontra atualmente no mundo digital reside na dita “imersão”. Com a utilização de óculos de realidade virtual e outros aparelhos conectados ao corpo, o usuário passará a ter sensações e estímulos não disponíveis nas atuais tecnologias.

metaverso distorce a realidade e o conceito da própria identidade, criando um “cyber universo” no qual o usuário terá uma representação de si mesmo (avatar). Ele poderá se tornar “o que” ou “quem” desejar: animal, pedra, planta, extraterrestre, monstro. Terá a possibilidade de se transportar para qualquer lugar ou época histórica. Até a morte parecerá superada, pois poderá haver representações de pessoas já falecidas. Em resumo, as portas estarão abertas para as mais absurdas fantasias. Tudo isso se mostra muito mais aliciante do que as drogas propriamente ditas. As “bigtechs” como Facebook (agora Meta), Microsoft e Apple já começaram a lançar seus convites insinuantes a milhões de pessoas para saírem do mundo real e entrarem nesta nova e quase onipresente cracolândia! Quem resistirá ao convite?

metaverso exclui veladamente das mentalidades o propósito da vida, que é a santificação, e acaba forjando uma espécie de inferno digital onde todos os crimes, loucuras e pecados são perpetrados sem consequências aparentes. Quanta diferença entre isso e as harmonias da missa tradicional e do convívio católico descrito acima. Dois polos diametralmente opostos e antagônicos entre si.

Vimos como as pessoas voltavam para casa após a missa de domingo, tendo adquirido força de alma para enfrentar a vida na semana que se iniciava. O que acontece quando o frequentador do metaverso tem de sair desse ambiente? Desejará voltar ao mundo real? Ou permanecerá aprisionado exatamente como um viciado em drogas?

Felizmente, há uma jovem geração que já percebeu tal tentação demoníaca e tende pressurosa para a liturgia tradicional, para as harmonias da Igreja Católica. Que Deus Nosso Senhor proteja essa tendência e não permita que o universo virtual de delírios domine o que resta de civilização e sanidade. Peçamos a Nossa Senhora de Fátima que intervenha e triunfe o quanto antes, como Ela mesma prometeu.

ABIM

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Notas:

Fonte: Revista Catolicismo, Nº 857, Maio/2022

  1. Meu itinerário espiritual – Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira; Petrus Editora, São Paulo, 2021, pág. 216.
  2. Cfr. Nicholas Kardaras: “Glow Kids:How Screen Addiction Is Hijacking Our Kids – and How to Break the Trance” (Crianças que brilham: como o vício às telas está sequestrando nossas crianças e como romper o laço), St. Martin’s Griffin Press editora, Nova York, 2017.
  3. Cfr. artigo escrito por John Horvat em: https://www.returntoorder.org/2021/11/will-the-metaverse-create-a-virtual-hell-on-earth/

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