terça-feira, 3 de julho de 2018

Macroscópio – Porque é que Trump pode ignorar olimpicamente a Europa

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
O título deste Macroscópio não é meu. É uma adaptação do título de um artigo já com algumas semanas da prestigiada revista Foreign Affairs. No original, Why Trump Can Safely Ignore Europe. Foi um daqueles artigo que guardei para ler mais tarde e a que regressei agora, depois do difícil Conselho Europeu da semana passada e da crise que ia fazendo cair o governo alemão (e que ainda não está totalmente ultrapassada). Foi um regresso em boa hora: trata-se de uma análise que, de certa forma, explica e antecipa o que se passou neste encontro de chefes de Estado e de Governo da União Europeia.
 
Its Leaders Readily Condemn But Never Act”, escrevia nesse pequeno ensaio Jeremy Shapiro, onde começava por recordar que, apesar de toda a tensão existente em torno das acções (e dos tweets) de Donald Trump, a verdade é que “Starting with the Suez invasion in 1956, the U.S.-European relationship has gone into a “crisis” once or twice every decade.” Ou seja, os aliados têm arrufos com frequência, uns mais graves do que outros, alguns com a dimensão de verdadeiras crises, sendo que um dos mais recentes até ocorreu durante a administração Obama quando se soube que os serviços de espionagem dos Estados Unidos até as conversas da chanceler Merkel tinham escutado. Mesmo a verdade é que os Estados Unidos ainda funcionam mais facilmente como cimento da Europa do que... a própria Europa: “The United States, after all, is a distant power with only a passing interest in the internal affairs of Europe. EU countries, by contrast, are deeply involved in one another’s affairs—they have multiple internal disputes that range from how to deal with their common currency to how to manage immigration. They look to their relationship with the United States not simply for security from external threats such as Russia or terrorism but also for a potential ally in their internal disputes with other EU states.” Os seja, em síntese, “Europeans, working together, could provide for their own security from external threats. The problem is that they also want political protection from one another. And only the United States can provide that.”
 
Já estou a ver alguns leitores a torcerem o nariz, até porque a Foreign Affairs é, afinal, uma revista americana. Peço-lhes, no entanto, para reflectirem um minuto, lerem algumas das sugestões que indicarei a seguir e que mostram como, de facto, a Europa se desune facilmente. Mais: noto que, neste momento, a maior redacção dedicada à cobertura do que se passa em Bruxelas é, provavelmente, a do site norte-americano Politico, que lançou recentemente a sua edição europeia e contratou dos melhores jornalistas a trabalhar junto do centro de poder da UE. Não por acaso refiro com frequência artigos deste site informativo, o que também farei hoje. 
 
Mas comecemos por recordar o pouco que se decidiu na cimeira da semana passada, sobretudo na frente que hoje mais divide os europeus, a da imigração. Foi um quase falhanço, e um acordo de mínimo, como explicou João de Almeida Dias no especial do Observador Crise dos refugiados. Depois de um longo jantar, líderes europeus só conseguiram um acordo que é uma “manta de retalhos”. Também no Observador o eurodeputado do PSD Carlos Coelho escreveu Conselho Europeu: a cimeira da desilusão, sendo que Diana Soller foi mais precisa em Refugiados, migrantes e a primeira grande vitória do populismo. Aí deixou a seguinte interrogação: “Que é que aconteceu para que uma Europa tão diligente em ir salvar vidas humanas, até com armas se for preciso, se tenha transformado num conjunto de estados incapazes de acolher refugiados de guerra?”
 
Numa análise em que passou em revista os diferentes pontos do acordo, Simon Nixon, do Wall Street Journal, afinou pelo mesmo diapasão, considerando que Europe’s Threadbare Migration Plan Only Buys Time:“The EU deal that emerged last Friday was vague and full of holes. Although EU leaders agreed that non-EU ports could be used as “regional disembarkation centers,” there is currently no prospect of any migrants disembarking anywhere other than in the EU for the foreseeable future, officials privately acknowledge.”

 
Eu próprio tinha previsto, num texto escrito antes da cimeira em que procurava expor as dificuldades de encontrar o justo equilíbrio no tratamento deste tema – Têm mesmo a certeza que querem receber mais imigrantes? –, que só muito dificilmente se encontraria uma plataforma comum quando havia agendas políticas e nacionais tão contraditórias, sendo que o que se passou confirmou também as previsões, mais a longo prazo, de editor executivo do Politico Europa, Matthew Kaminski, que em Europe’s losing streak, escreveu há já umas semanas que “At any level, politics is about moods and perceptions. After months of elite stumbles and deepening gloom, the EU forecast for the second half of this year — barring a sudden good break or two — will be familiar to anybody living in Brussels: cold, cloudy, with little chance of sun.”
 
Cold, cloudy, with little chance of sun. É caso para dizer: de facto. E no centro de tempestade está de novo Angela Merkel, só que agora a chanceler já não é a força equilibradora que vai procurando forjar os consensos possíveis, mas também ela um elemento de desestabilização. Por isso mesmo vale a pena olhar para um outro texto do Politico, How Merkel broke the EU, onde Matthew Karnitschnigdefende a ideia de que “Far from being Europe’s savior, the German chancellor is gradually, if unwittingly, destroying it.” Eis uma passagem da sua argumentação: “Angela Merkel’s response to Europe’s refugee crisis has earned the German leader a reputation the world over as a modern-day Jeanne d’Arc. (...) While that view persists across much of the West, at home, questions about her leadership are growing louder by the day. Beyond the domestic concerns, more and more of Merkel’s erstwhile allies are asking a question still considered sacrilegious among much of Germany’s establishment: Is she tearing Europe apart?”
 
Paulo Rangel, no Público, procurou explicar as prioridades da chanceler nestes últimos anos, chegando à conclusão que a sua grande preocupação – evitar a emergência da direita radical na Alemanha – pode ter acabado por se virar contra ela. No terceiro arigo da sérieOs partidos na Europa e a política europeia em migração escreve: “Durante os tempos da crise financeira, Merkel não se cansou de dizer que a sua linha estratégica – muitas vezes condensada na frase crítica “too litlle, too late” – tinha um desiderato: evitar a afirmação de uma força política de direita radical. (...) Múltiplas eleições no nível estadual e as últimas eleições federais (2017) defraudaram o almejado “escudo” contra a direita radical.
 
No Spectator, num texto escrito ainda antes da cimeira da semana passada,Fredrik Erixon argumenta em Angela’s ashes: Merkel’s grand project is crumbling que“The German Chancellor’s grip over Europe has ended and a new pro-border consensus is emerging”. Mais: “She has run out of good options, as well as political authority. She might limp on in Germany for a few more years yet, but her long reign in Europe has ended.”
 
Hoje, conhecidos os resultados da cimeira e, também, os termos do acordo que permitiu salvar (para já) a coligação de governo em Berlim, o Wall Street Journal defendeu, no editorial Let German Voters Try Again, que “A new election with new ideas is needed to fix the Merkel crisis.” É um texto onde é maior a preocupação com a vontade dos eleitores do que com a dos comentadores: “Political leaders and commentators have convinced themselves that Mrs. Merkel is indispensable for German stability or European cooperation or something. Voters disagree. Otherwise they’d have re-elected her with a bigger margin, especially considering her enduring personal popularity.”
 

Estando a chanceler enfraquecida há espaço para outros protagonistas, e temos de os conhecer melhor. Um deles é Mateo Salvini, o ministro do Interior italiano, líder da Liga e inspirador das políticas mais intransigentes de Roma. Recomendo por isso que leiam uma entrevista que deu à Spiegel nas vésperas da cimeira, onde é fiel ao seu estilo provocador: 'Within a Year, We'll See if a United Europe Still Exists'. Algo que justifica assim: “In the coming months, it will be decided if Europe still has a future in its current form or whether the whole thing has become futile. It's not just about the budget for the next seven years. Next year will see new European Parliament elections. Within one year, we will see if united Europe still exists or if it doesn't.”
 
Esta entrevista não terá passado despercebida a Wolfgang Munchau, o colunista de assuntos europeus do Financial Times, que, num texto republicado pelo Diário de Notícias, discorreu sobre  A ameaça do destemido Matteo Salvini à ordem estabelecida da UE. Há uma reflexão nesse texto que me pareceu especialmente pertinente – e assustadora: “O problema com a UE é que a sua estabilidade depende de pessoas como Salvini e Trump nunca chegarem ao poder. Corre o risco de se tornar a República de Weimar dos nossos tempos - uma construção adequada apenas para um clima político moderado.”

 
É neste quadro que surgem outros políticos que não se podem ignorar, mesmo vindo de países mais pequenos. William Cook chama a atenção para um deles na Spectator – mais exactamente para o chanceler austríaco, líder do país que acaba de assumir a presidência da União Europeia, super-jovem e com uma abordagem tão heterodoxa à governação que muitos não sabem se o devem classificar como apenas mais um líder do centro-direita, se como um populista moderado. Em Why Sebastian Kurz is Europe’s most important politician recorda-se como ele tão feito vingar as suas posições: “‘We’ve long since been calling for these protection areas, safe zones, landing centres, or whatever you want to call them,’ he said. ‘This idea has now prevailed.’ It’s prevailed because Kurz can build bridges between centrists and populists – between East and West. What gives Kurz this ability to bring these opposing attitudes together? It’s partly a matter of history, and geography. To the east, Austria has land borders with the populist strongholds of Hungary, Slovakia, Slovenia and the Czech Republic – all part of the Austrian empire a hundred years ago. To the west, it has a long land border – and a common currency – with Germany (specifically, Bavaria), its cultural and linguistic hinterland.” Estas circunstâncias, mais o seu talento, levam aquela revista a defender que, na Europa, não se deve olhar apenas para Macron com o líder dos tempos pós-Merkel: “Austria’s six months in the EU Presidency is exactly what the EU needs. Will the EU deliver on its promises and tighten up on immigration? Who knows, but right now the Austrian Chancellor is Europe’s best hope for turning fine words into decisive actions. For better or worse, the last decade of EU politics has been driven by Angela Merkel. It may be that the next ten years will be driven not so much by Emmanuel Macron, but by Sebastian Kurz.”
 
Como vêm, os americanos são mesmo capazes de ter razão. Apesar de Trump, e mesmo unindo-se contra ele no que toca à política comercial, há tanta coisa que ainda divide os europeus que o presidente dos Estados Unidos pode continuar a tweetar sem que das palavras se passe à acção. Pelo menos é o que até agora tem acontecido. De resto deixo-vos com esta reflexão e os habituais votos de bom descanso e boas leituras. 

 
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