Foi mais uma semana de muita informação, e muita controvérsia, saída do remoinho da Presidência Trump, tal como foi uma semana de corrida contra o relógio dos deputados a aprovarem rios de legislação, alguma dela porventura sem escrutínio suficiente por parte da cidadania. Mas foi também a terceira semana de Julho, há cada vez mais pessoas de férias, e por isso este Macroscópio de fecho da semana andará mais em torno de leituras diferentes, as primeiras sobre a passagem de alguns importantes aniversários, a seguir mais alguns livros, por fim um pot-pourri de texto que vale mesmo a pena ler – sobretudo a pequena joia que guardei para o fim.
Comecemos então por um centenário, a do assassinato dos Romanov, ou seja, do último dos czares e da sua família mais próxima. Foi na noite de 16 para 17 de Julho de 1918, foi um crime dissimulado mas cuja ordem não pode ter sido dada senão por Lenine, alimentou muitos e variados mitos e ainda hoje suscita curiosidade e veneração (na Rússiaquase cem mil pessoas juntaram-se numa procissão de 21 km para assinalar este centenário), o que justifica que lhe dedica as primeiras sugestões de hoje.
A abrir um texto de grande qualidade saído no Observador (e sabem que em mim não são frequentes os elogios em causa própria): o especial 100 anos depois, haverá paz para os Romanov?, de Rita Cipriano, de que vos deixo apenas o arranque: “Por volta das três da manhã, todos os ocupantes da Casa Ipatiev estavam mortos. Nicolau, ex-czar de toda a Rússia, a mulher, os cinco filhos e os empregados que tinham percorrido com eles metade do país, foram brutalmente assassinados na adega da moradia de dois andares que, antes de o Exército Vermelho tomar conta de Ecaterimburgo, tinha pertencido a um engenheiro de minas abastado. Depois de assassinados, os cadáveres dos Romanov foram transportados dentro da carrinha Fiat até a um bosque, desfigurados com ácido sulfúrico e enterrados em duas valas com poucos centímetros de profundidade, abertas no meio de uma estrada. Depois de aplanada a terra, com a ajuda do camião, Yurovski e os seus homens fizeram um voto de silêncio: a noite de 16 para 17 de julho de 1918 nunca tinha acontecido.”
O título do texto na Time de Helen Rappaport – autora de uma obra recente sobre a família –The Romanov Family Died a Century Ago. It’s Time to Lay the Myths About Them to Rest, Too retoma a ideia da sobrevivência dos mitos que o texto do Observador já abordara, só que aqui trata-se de uma peça mais opinativa (e breve): “The Russian people and others fascinated by this history long for an end to the doubt, to the bogus claims of fraudsters and the proliferation of conspiracy theories. Closure did not come in time for the 100th anniversary, and the Russian Orthodox Church may choose, still, not to sanction the remains found in the Koptyaki Forest outside Ekaterinburg as indeed being those of the Romanov family. But, with or without its official blessing the science is now incontrovertible. The Romanovs all died at Ekaterinburg on July 17, 1918. May they all now rest in peace. And may the world see an end, at last, to the fantasies of the false claimants.”
Também num texto de opinião, José Milhazes recordou no Observador o enquadramento político do crime, em O assassinato da família real russa era inevitável, texto em que sublinha que “O assassinato de Ekaterimburgo não passou de um episódio do chamado “terror vermelho”, que ceifou milhões de vidas. Os comunistas começaram pelos nobres, mas depois a máquina de matar nunca mais parou.”
Voltando aos Romanov, deixo-vos mais duas referências que me pareceram interessantes e originais:
- The Romanovs’ Art of Survival é um ensaio de Anastasia Edel na New Tork Review of Books que nos revela um lado muito pouco conhecido da família: o seu lado de artitas. Neste trabalho, profusamente ilustrado, revela-se a arte de vários descendentes da família, uma vez que. “For many Romanov exiles—hounded, stripped of their wealth, living under the constant fear of further reprisals—art became, in part, a coping mechanism. Later, as the memory of the massacre gave way in its immediacy, new generations of Romanovs took to art for reasons not so different from the rest of us: to meditate, to understand, and to express. Over the twentieth century, the Romanovs produced a vast artistic trove that few are aware of, since most of their creative output was meant for family consumption.”
- Newly unearthed photos of the last tsar and his family show a forgotten empire é a recolha e apresentação, pela Quartz, de um conjunto de imagens inéditas que o projecto #Romanovs100, um arquivo russo, libertou por ocasião do centenários, imagens que retratam não apenas a família na sua intimidade, como encontros com outros monarcas ou participações em cerimónias religiosas.
Por fim referência obrigatória à monumental obra Os Romanov (1613-1825), do grande historiador Simon Sebag Montefiore, editado em Portugal em dois tomos: Volume 1 - Ascensãoe Volume 2 – Declínio, que o Observador apresentou aquando da sua chegada às livrarias no nosso país.
E uma vez que estamos a falar de aniversários e de livros, e da Rússia, dou um salto de 25 anos, até 1943, ao tórrido mês de Julho que testemunhou uma das mais importantes batalhas da II Guerra Mundial, uma batalha muito pouco referida entre nós. Refiro-me ao maior combate de tanques da história e que marcou o fim do poderio do exército alemão. Em Kursk: el gran choque de 8.000 tanques o El Mundo apresenta a obra do historiador militar Dennis E. Showalter que, tendo tido acesso a novo material dos arquivos russos, relata esse tremendo embate em "La batalla de Kursk", porventura a obra que fica como referência para este combate entre gigantes de aço e fogo. E que importante que ele foi: “A nivel militar y estratégico, no cabe duda de que la victoria soviética supuso un punto de inflexión en la guerra germano-soviética. Kursk fue la última gran ofensiva desde el punto de vista operativo del Ejército alemán en el Frente Oriental. El Ejército Rojo había madurado mucho durante los dos años de guerra y había logrado desarrollar una potencia de combate superior a la de los alemanes, que, ya muy desgastados, sólo podían diseñar una estrategia defensiva que retrasara lo inevitable: el avance hacia Berlín.”
Continuando nos livros, quero agora referir-vos um texto da National Review, Steven Pinker’s Enlightenment Now Is Mostly Right, onde se faz a defesa, mesmo que sem uma adesão completa às suas teses, da mais recente obra daquele filósofo inglês. Em síntese, “Apart from his answer to the question of secularism and meaning, with which some conservatives might differ, Pinker is nevertheless right about many things — about most things, I would argue. Generally his intellectual project is commendable. Pinker is a defender of liberal democracy, a fearless advocate of science, an opponent of all obscurantism, and an annihilator of reactionaries and revolutionaries. Everyone would do well to read him. The high priest of secular humanism has much to teach us.”
Para a parte final desta newsletter guardei os tais textos que, sem uma ordem muito específica, vos referirei por os achar dignos da vossa atenção. E começo precisamente por um surpreendente relato do El Pais, Los 500.000 muertos por la austeridad en España que no existieron, a fantástica história de como uma revista científica norte-americana encontrou meio milhão de mortos em Espanha por causa da austeridade, uma “descoberta” que porém não resistiu à mais banal análise e revelou um colossal erro estatístico dos autores do “estudo”. Como conta o diário madrileno, “Esta semana se publicaba en la importante revista de la Asociación de Salud Pública de EE UU un estudio sobre la mortalidad que provocaron en España las "políticas de austeridad" después de la crisis de 2008. "Para el período de seis años de 2011 a 2016, se espera que el exceso de muertes atribuibles a las políticas de austeridad supere las 540.000 muertes atribuidas a la Guerra Civil española en la primera mitad del siglo XX". Tão espectacular e aterrador, como errado e revelador do estado a que chegaram algumas publicações científicas e da falta de rigor, mesmo de elementar bom senso, de muitos estudiosos que, suspeito, são mais militantes de causa do que reais investigadores.
Já Stop hankering for the fantasy of a golden age, do historiador britânico Max Hastings, é um interessante desafio ao mais comum dos lugares comuns, aquele de “antes é que era bom”. Não é verdade, por muito que as crises que vivemos nos criem as maiores angústias: “Whatever is wrong with British life and for that matter politics today, we are in an incomparably better place than in 1940 or indeed 1945. I have written an entire book endorsing Churchill’s claim to be viewed as the greatest Englishman, but the last thing we need now in Downing Street is a Churchillian wannabe.” Em conclusão, “Britain is today a much less important nation than a century ago, but few of its inhabitants have good reason to wish to turn back the clock.”
Da imprensa portuguesa desta semana, e para além do trabalho que já referi sobre os Romanov no Observador, escolhi “Parecia possível acabar com a pobreza e com a desigualdade. Não é possível!”, uma entrevista de Maria José Morgado a Isabel Lucas que saiu no Público, uma conversa onde se percorre a vida da magistrada desde a sua infância e sem evitar a sua passagem pela militância política radical (altura em que a conheci, mas fazendo eu parte de um grupo rival). Entre outras passagens, achei interessante a sua franqueza – “Quando cheguei à faculdade, vi ali um terreno fértil para aderir àquelas ideias maoistas e marxistas-leninistas; as ideias revolucionárias. Parecia possível acabar com a pobreza e com a desigualdade. Não é possível!” – assim como o seu relato da ruptura com o MRPP – “Começámos a achar aquilo tudo um bocado caricato [o MRPP], e atrás do caricato começámos a ter uma posição muito crítica em relação ao marxismo-leninismo, ao maoísmo. O facto de eu ter estado presa pela segunda vez, então pelo COPCON, depois do 25 de Abril, ajudou-nos a perceber que aquilo não era nenhuma maneira de mudar o mundo.” Mulher que não olha a conveniências e diz mesmo o que pensa, adorei também o seu desafronto ao responder à pergunta sobre se ofacto de ser uma mulher a teria prejudicado na carreira: “Não, sempre fui beneficiada por ser mulher”. Depois até explica porquê, mas isso deixo para os meus leitores descobrirem.
E já que estamos a fazer referências a ideias que saem da norma, isso também é feito por Simon Kuper num texto do Financial Times com um politicamente muito incorrecto título: Why all parents need sabbaticals from their families. Uma afirmação sustentada na sua própria experiência recém-vivida por ter estado longe de casa algumas semanas por causa do Mundial de futebol: “Soon after the World Cup, I get a bonus: for the first time ever, my children have consented to go on a two-week sleep-away camp. For the first time in 12 years, my wife and I will have a fortnight alone together. This is wonderful. It is also terrifying — like starting a relationship from scratch.”
Inesperado também (ou talvez não) é o trabalho que encontrei em Long Reads, Hemingway’s Last Girl,um texto muito frontal (cruel?) de Rafia Zakaria cujo ponto de partida é o seguinte: “A lot of women loved Hemingway. Should you?” Já o ponto de chegada é duro e coloca o dedo numa ferida que, suspeito, muitos gostariam de nem sequer ver: “Literary misogyny lives on in the genealogy of characters and plots and dialogue and denouement. It also lives on in the adulation of untouched heroes, men like Hemingway with storied lives filled with maligned women. As long as they, the bad men of the literary past, are not held to account, the ones alive today can have hope, can believe that their artistic genius will absolve them now as it did those others then, everything continuing, excusing, rationalizing, and hiding their sins, just like it always has.”
Guardei para o fim o texto que, provavelmente, mais gozo me deu ler esta semana pela sua brutal frontalidade: Jean-Claude drunker, um duríssimo libelo acusatório escrito por Jean Quatremer, provavelmente o decano dos correspondentes de grandes jornais europeus em Bruxelas (escreve para o francês Liberation), e que entra a matar: “The atmosphere in Brussels has become, of late, reminiscent of the late Brezhnev era. We have a political system run by a bureaucratic apparatus which — just like the former USSR — serves to conceal important evidence. Especially when it comes to the health of its supreme leader, Jean-Claude Juncker.” Como estão a imaginar o pretexto próximo foram as tristes cenas protagonizadas pelo presidente da comissão numa cerimónia da NATO, em que teve de ser amparado, entre outros, pelo nosso primeiro-ministro, e apesar de o Observador ter já feito um resumo desse artigo (“Quando trazem um copo de água a Juncker todos sabem que é gin”) e de ter mostrado os vídeos comprometedores (Os andares e cumprimentos erráticos de Juncker), deixo-vos aqui esta passagem mais política do texto de Quatremer que foi publicado na britânica The Spectator: “The videos suggested a man manifestly seriously ill, unable to move alone. In other words, it raises the question of his ability to govern. It is no coincidence that he has become totally dependent on Martin Selmayr, his ambitious secretary general and former chief of staff (and architect of his ascent to the head of the EU). No wonder that Juncker tore up the rules of the European civil service to put Selmayr in charge of the whole 33,000-strong apparatus.”
E por hoje é tudo. Desejo a todos um bom fim-de-semana e, sendo caso disso, umas retemperadoras férias.
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