quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Macroscópio – A tragédia da Venezuela e as desculpas sobre o socialismo “de verdade”

15394f37-d15a-4db8-9900-7c4008f236fe.jpg

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

E pronto. O Macroscópio está de regresso, também com a sua rentrée mas fugindo das rentrées domésticas deste ano, até porque estas poucas novidades trouxeram. E enquanto os motores das políticas domésticas não aquecem vamos começar por falar da Venezuela, esse país onde vivem tantos portugueses e que parece mergulhado numa crise sem fim e com pouca esperança de reversão pacífica. Nas últimas semanas, nos últimos dias, essa crise começou a criar ondas de choque nos países vizinhos, já que o número de venezuelanos que tentam sair do país é cada vez maior – e saem em grossas colunas, como a da fotografia que abre esta newsletter, que encontrei numa muito reveladora fotogaleria da The Atlantic, Fleeing Venezuela’s Crushing Economic Crisis.
 
Ora, como explica Jorge Galindo no El Pais, El éxodo venezolano: un reto latinoamericano, a fuga para o Brasil, o Peru e, sobretudo a Colômbia, coloca esses países perante problemas novas, nunca antes enfrentados. Mais: “Hoy, una situación como la venezolana, que trasciende la política del día a día para convertirse en una crisis humanitaria, no sucede en el vacío. Sino que tiene lugar en ese mismo contexto de desigualdad estructural, divergencias ideológicas y ausencia de vías sólidas para la coordinación internacional.
 
E não se pense que o êxodo não tem razão de ser. Basta ler o especial do Observador, de João de Almeida Dias, Fome, doença e desespero: cinco venezuelanos contam o seu dia a dia, para encontrar testemunhos em primeira mão do colapso de um país. Assustador: “A alimentação escasseia e a população perde peso a um ritmo que surpreende todos — em 2017, cada adulto perdeu, em média, 11,2 quilos. A saúde, tão caótica que leva os médicos a aconselharem os doentes a não irem ao hospital, por risco de contágio, é tão pobre que arranjar medicamentos obriga a gestos impensáveis. A insegurança leva muitos a ficarem em casa ainda antes de o sol se pôr. Na política, oposição e governo mantêm, cada um do seu lado, um parlamento da sua escolha, numa altura em que as eleições livres são uma miragem. E o futuro só é possível, para muitos, fora de fronteiras.”

 
Patrick Chappatte, cartoonista do New York Times retratou a situação na ilustração que reproduzo acima, Maduro’s Wild Ride, e que dá uma boa imagem de como para o regime cada vez mais ditatorial o destino dos cidadãos comuns pouco conta, mas mesmo assim há quem em Portugal continue a celebrar este caos, ou não dedicasse a Festa do Avante que decorre este fim de semana uma sessão ao tema, significativamente intitulada Venezuela bolivariana - Resistir e avançar. E mesmo sem esquecer que, há pouco mais de um ano, eu próprio, numa coluna intitulada A lista dos cúmplices da tragédia da Venezuela também inclui o Bloco, Sócrates e Portas, tratava de responder a textos como o que nessa altura Boaventura Sousa Santos publicou no Expresso, Em defesa da Venezuela, a verdade é que a deterioração da situação económica nestes últimos meses justifica que regresse àquele pais latino-americano e ao porquê do que lá se vive. 
 
Começo por um texto mais antigo, também ele com um ano, mas que mantém toda a sua actualidade ou não fosse Mario Vargas Llosa o seu autor. Venezuela, hoysaiu no El Pais e nele se escreve que “No hay precedentes en la historia de América Latina de un país al que la demagogia estatista y colectivista haya destruido económica y socialmente como ha ocurrido en Venezuela. Lo extraordinario es que la política de destruir las empresas privadas, agigantando el sector público de manera elefantiásica, y poniendo cada vez más trabas a la inversión extranjera, se llevara a cabo cuando todo el mundo socialista, de la desaparecida URSS a China, de Vietnam a Cuba, comenzaba a dar marcha atrás, luego del fracaso de la socialización forzada de la economía. ¿Qué idea pasó por la cabeza de semejantes ignorantes? La utopía del paraíso socialista, una fabulación que, pese a los desmentidos que le inflige la realidad, siempre vuelve a levantar la cabeza y a seducir a masas ingenuas, que, pronto, serán las primeras víctimas de ese error.”
 
Este prémio Nobel da Literatura recorda também neste texto que antes desta deriva a Venezuela era uma das poucas democracias com alguma longevidade na América Latina, o que apesar dos erros dos seus governantes e da corrupção sempre permitia aos eleitores trocarem de governo quando assim o entendiam. Contudo, defende Mary Anastasia O’Grady no Wall Street Journal em Venezuela’s Long Road to Ruin, a verdade é que os males vinham detrás, sendo que “Few countries have provided such a perfect example of socialist policies in practice”. É um texto informado e detalhado onde se sublinha que “Learning from history is impossible if the narrative is wrong. So let’s clear the record: By the time Chávez was elected, Venezuela already had 40 years of socialism under its belt and precious little, if any, experience with free markets.” Surpreendidos? Talvez um pouco, mas a autora descreve as políticas de sucessivos governos democráticos que sempre preferiram uma economia estatizada e fortemente regulada, o que ajudou a criar as condições para a crise económica que, no final do século passado, gerou o descontentamento que permitiu a primeira, e essa legítima, eleição de Hugo Chávez. Eis um exemplo dessas políticas, um daqueles de que também temos ressonâncias no nosso país: “Rent control in Venezuela dates to 1939 but was not enforced by Pérez Jiménez. In August 1960 Betancourt revived it, passing a new rent-control law and prohibitions on eviction. Since then, “not one apartment rental building has been built,” writes Vladimir Chelminski in his 2017 book, “Venezuelan Society Checkmated.” The legendary slums that climb Caracas’s hillsides are a testament to this socialist stupidity.”
 
Mas mesmo assim a Venezuela era um país relativamente rico, graças às suas reservas de petróleo, porventura maiores do que as da própria Arábia Saudita. Só que o petróleo também pode ser uma maldição, como mostram estas duas décadas de chavismo. É algo que se recorda em Socialism Set Fire to Venezuela’s Oil Crisis, um texto de Julian Adorney para o site Real Clear World. É que, como nele se recorda, “the poorest economies in the world are characterized by oppressive government intervention. In 2014, the 40 least economically free nations had an average per capita GDP of $5,471 (in 2011 dollars). Compare that to $41,228 for the freest 40 nations. Abundant natural resources cannot make up for a lack of freedom”. Ora se a Venezuela já tinha pouca liberdade económica mesmo no tempo em que era democrática, como Hugo Chávez o que se passou com a indústria petrolífera – que já pertencia ao Estado – é do domínio do delírio: “Chavez closed Venezuela's oil fields to foreign investment and stopped reinvesting oil proceeds in the company. He fired 18,000 workers at PDVSA, replacing professional oil employees with inept but politically loyal workers. Bids started taking months longer to complete as staff kept changing their technical specifications. Fatal accidents and fires became more common, because Chavez’ yes-men didn’t understand how to safely run an oil refinery. PDVSA middle managers required Rolex bribes to schedule meetings.”

E se estes erros foram cometidos no tempo das vacas gordas, quando o petróleo estava a mais de 100 dólares o barril, quando o preço daquela matéria prima caiu tudo implodiu. É que José Carlos Díez, do El Pais, explica com clareza em Venezuela y la hiperinflación, um texto onde se recorda que “La revolución vivió el mayor súper ciclo de materias primas de la historia. El precio del petróleo cuando Hugo Chávez dejó la presidencia estaba por encima de 100 dólares, diez veces más que al llegar. Eso es el equivalente a una brutal transferencia de renta del resto del mundo a los venezolanos, que aumentó su PIB y sobre todo sus ingresos públicos derivados del petróleo.” Depois, quando o maná terminou, o preço do petróleo caiu e a capacidade de produção colapsou devido a anos de muito má gestão, o défice público disparou. Foi então que “El Gobierno presidido por Nicolás Maduro tardó en reaccionar y el déficit público se disparó. Sin acceso a los mercados de capitales internacionales, decidió financiar el gasto con inflación aumentando el dinero en circulación, el impuesto más injusto que afecta especialmente a los pobres. El resultado ha sido desastroso. La hiperinflación ha acabado con la capacidad de compra y los ahorros de todos los venezolanos.”

 
Assim chegámos ao que se vê nesta imagem, onde se mostram quantas notas são necessárias para pagar um simples rolo de papel higiénico. Por isso, para perceber o que pode estar para suceder, vale a pena ler 5 Key Questions on the Future of Venezuela, de Jose Cardenas no Real Clear World, onde se abordam as seguintes dúvidas: “Can Street Protests Be Sustained?”; “Will the Regional Response Get Stronger?”; “Will U.S. Play the Oil Card?”; “Will Divisions Within Chavismo Grow?” e “Will Venezuela’s International Enablers Double Down?”.Das respostas respiguei a passagem onde se defende que “Apart from Chavismo, the big question mark remains the Venezuelan military. As The Economist starkly put it, “[Maduro’s] future will be decided by the armed forces, not directly by the people. If they withdraw support from his beleaguered regime, change will come soon. If not, hunger and repression will continue.”
 
Esta mesma questão, a de uma revolta militar, é também central no texto do conhecido (e consagrado) Jon Lee Anderson para a New Yorker, How Long Can Nicolás Maduro Hang on to Power in Venezuela?Eis uma parte do que ele nos relata: “In a meeting I had with him not long ago, I asked Juan Manuel Santos, the President of Colombia and one of Maduro’s fiercest critics, if he believed a military coup against Maduro was likely. “Yes, I think so,” Santos said. He spoke of recent arrests of restive Venezuelan military officers by Maduro’s government, and said, “With each day that passes, it’s becoming more and more obvious that there is discontent within the military.” He added that Venezuelan military officers had been “asking questions of the international community to see how it would respond” in the event of a coup.”
 
Era bom que não se chegasse a este ponto, mas também era bom que sempre que ocorre mais um colapso do “socialismo real” não surgissem vozes influentes, e muito escutadas, a defenderem que o problema nunca é o socialismo, pois nunca estamos perante um socialismo “de verdade”, falemos nós da extinta URSS ou da China, da Coreia do Norte ou de Cuba, mesmo da Venezuela. É por isso que achei interessante indicar-vos um texto que encontrei no site Crítica, animado pelo filósofo Desidérito Murcho, um texto de Christopher FreimanSobre o socialismo “de verdade”. Não é um texto longo, mas é polémico pois contesta a ideia de que esses regimes nunca representam a pureza da ideia socialista e, por isso, não se pode condenar e socialismo pelos resultados obtidos. O que Freiman faz é estabelecer um paralelo: cita longamente o fundador do fascismo italiano, Mussolini, recordando o que este dizia serem os objectivos do seu regime, objectivos que naturalmente nunca foram alcançados. É assim que lança a pergunta provocatória:“Se ajuizamos o socialismo em termos dos seus ideais declarados e não a partir de seus resultados no mundo real, por que não fazer o mesmo em relação ao fascismo? É claro, a Itália de fato produziu um estado policial, difundiu a pobreza, “matou vários milhares de civis, bombardeou a Cruz Vermelha, usou gás venenoso, matou crianças de fome em campos de concentração e tentou aniquilar culturas consideradas inferiores”. Mas um fascista poderia simplesmente responder exatamente como fez Robinson e dizer o seguinte: “se não há justiça social, igualdade real entre os indivíduos e uma luta contra o privilégio, não há fascismo, não importa como os líderes dos países decidam chamar-se a si mesmos”. Poucos levariam a sério a resposta “isso não é fascismo de verdade”. Não vejo razão para tratar o socialismo de outra forma.”
 
Bem sei que não estamos habituados a argumentar com esta frontalidade em Portugal, mas é também para chamar a atenção para estes textos que fazem pensar ao abalarem, nem que seja pela provocação, a nossa modorra intelectual, que serve o Macroscópio. Mas por hoje é tudo, tenham boas leituras e um bom descanso. 

 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2018 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário