Obrigatório Ver
Todos temos
culpa nesta morte. Não há desculpas possíveis
Por João
Adelino Faria
Arrepiou-nos
a todos. Incomodou-nos a todos. Tirou-nos o sono, o apetite, não conseguimos
afastar a imagem da nossa cabeça. Preferíamos não ter visto, muitos desviaram o
olhar e alguns correram a beijar os filhos com mais ternura e medo do que
nunca. É por tudo isto que o corpo de uma pequena criança morta na praia tem
que ser mostrado ao mundo inteiro.
Numa redação somos obrigados a ver tudo.
Como jornalistas não podemos desviar o olhar quando as imagens que nos chegam
da guerra, de terrorismo ou dos migrantes naufragados nos incomodam. É nossa
obrigação ver tudo para selecionar depois o que devemos mostrar aos
espectadores ou leitores. Faz parte da nossa função. Muitas vezes tentamos esconder
as lágrimas quando vemos as imagens "em bruto" e antes de as
selecionarmos para lhes dar significado jornalístico. Outras vezes, na
intimidade de uma cabine de edição de imagem, engolimos soluços e combatemos
nós na garganta para contar uma história onde temos de ocultar as piores
imagens para preservar dignidades e sensibilidades. O mais difícil é decidir
sempre o que devemos ou não mostrar.
Há situações em
que não há dúvidas. Imagens como as da semana passada de um jornalista a matar
a tiro os colegas em direto, os corpos esventrados por um atentado, as
decapitações dos reféns do Estado Islâmico ou os sinistrados de uma acidente
não devem ser mostradas nem reproduzidas. Ao colocar este tipo de imagens num
jornal ou televisão estamos a incentivar mais crimes, a dar publicidade a
assassinos e terroristas ou simplesmente a explorar a dor em busca de mais
audiências.
Diferente é a
imagem desta criança, filha de migrantes que fugiam da guerra da Síria. Uma
família que preferiu arriscar a vida dos filhos a morrer debaixo das bombas ou
à fome. Infelizmente, as portas desta nossa fortaleza a que chamamos Europa
estavam trancadas com medos e hipocrisias. E eles morreram sozinhos, na praia,
afogados como milhares de outros. É nossa obrigação mostrar agora a derradeira
imagem de Aylan, de 3 anos. Ele não pode morrer em vão! Ao fazer as manchetes
de todo o planeta, a brutalidade desta fotografia, de uma criança morta porque
queria desesperadamente sobreviver, pode tornar-se no símbolo capaz de derrubar
muros, leis e aproveitamentos políticos. A dureza desta imagem cala de uma só
vez os mais poderosos de todo o mundo.
Todos temos
culpa nesta morte. Não há desculpas possíveis. É bom que nos incomode, nos tire
o sono e nos confronte sem piedade com o espelho do nosso egoísmo e hipocrisia.
É por isso que ela não deve ser ocultada sob qualquer falso pretexto ou pudor.
Quanto mais vezes for mostrada, mais forte será. Que a imagem desta criança
morta se transforme na arma capaz de mudar o mundo e de nos recordar todos os
dias porque somos humanos.
04/09/2015 | 23:59 | Dinheiro Vivo
Postado por Joaquim Carlos, Coordenador do Projecto Imagem e Comunicação. Sigma-nos pelo site: www.adasca.pt
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