quarta-feira, 4 de abril de 2018

Macroscópio – Os fantasmas do passado estão sempre a regressar

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Não é muito comum o Macroscópio partir de um único texto – habitualmente prefiro reunir vários textos que abordam um mesmo tema. Hoje, contudo, o meu ponto de partida é a coluna de Gideon Rachman no Financial Times, Anti-Semitism and the threat of identity politics. E é esta coluna porque ela remete para diferentes problemas que se cruzam sem aparente ligação mas que nos revelam que estamos a reviver fixações que as lições da História deveriam ter feito coisa do passado.
 
Como se percebe pelo título o que preocupa o principal analista de política internacional do grande jornal londrino foi a coincidência temporal de vários acontecimentos que, tendo natureza muito distinta, tinham em comum os sinais de antissemitismo: o assassinato em França de uma sobrevivente do Holocausto, Mireille Knoll; as polémicas sobre o alegado antissemitismo do líder dos trabalhistas britânicos, Jeremy Corbyn; e o repescar da retórica antissemita na campanha eleitoral na Hungria, protagonizada por Viktor Órban. Daí que Gideon Rachman se interrogue: “Are we reliving the 1930s? Not really. Contemporary anti-Semitism contains some loud echoes of the past — for example, the resurgence of the idea of Jews as a shadowy international network. But the new element is the way that anti-Semitism is now mixed in with bigger fights about Islam and Israel. For the far-left, a key enemy is often Israel, which is seen as an embodiment of western racism. For the far-right, the main enemy is Islam, which it identifies with terrorism and mass immigration. Both far-left and far-right often claim to be immune from anti-Semitism — either because they are anti-racists (the left) or because they are pro-Israel (the right). These complexities are embodied by Mr Orban. At a recent rally, the Hungarian prime minister used language laden with anti-Semitic imagery: “We are fighting an enemy that is different from us. Not open, but hiding; not straightforward but crafty . . . not national, but international, [and who] does not believe in working but speculating with money.”
 
Há um ponto importante no seu texto, a que regressarei neste Macroscópio: a forma como políticas que apostam no sublinhar das “identidades” conduzem, à esquerda e à direita, a assustadoras derivas: “The far-left and the far-right like to think of themselves as bitter enemies. But they have similarities that can make them breeding grounds for anti-Semitism. The link is their fondness for identity politics. Some on the far-right refer to themselves as “identitarians” and believe that they are fighting for white culture against Islam. The far-left also instinctively think in terms of communities, with their own spokesmen and lists of grievances. Identity politics is fundamentally illiberal because it imposes a group identity on individuals.”

 
Exagero? Não creio. Nos próximos dias terei de regressar ao tema das eleições húngaras e à deriva autoritária vivida nesse país, mas para já deixo-vos algumas indicações úteis, a começar pelos trabalhos do Politico Europa, que reuniu as suas análises, reportagens e entrevistas em Hungary’s election: The essential guide
 
Ainda sobre a Hungria e sobre o seu líder há mais dois textos que recomendo, ambos muito actuais mesmo que nenhum deles seja directamente sobre as eleições do próximo domingo. Ambos nos descrevem um país onde tudo parece correr bem mas onde assistimos aquela que é, porventura, a mais articulada e assumida tentativa de criar uma “democracia iliberal” na Europa.
 
O primeiro desses textos é Homo Orbánicus, uma recensão de Jan-Werner Müller ao livro Orbán: Hungary’s Strongman,de Paul Lendvai, um ensaio publicado na New York Review of Books. Naturalmente centrado na figura do homem forte de Budapeste, nele se sublinha, precisamente, que “Orbán now proclaimed his aim of creating an “illiberal state” based on the values of work, family, and nation (...). He cleverly ran together the political and economic meanings of “liberalism,” leaving open whether he was propounding economic nationalism or something politically authoritarian. The latter interpretation was ever more plausible, as Budapest sought to strengthen ties with Russia, Turkey, Azerbaijan, Kazakhstan, and other illiberal states.”
 
A Letter From Budapest é o testemunho mais pessoal de Susan Rubin Suleiman na revista judaica Tablet, um texto onde esta judia nascida na Hungria relata aquilo que viu e ouviu durante uma recente estadia na sua cidade natal, uma capital onde se vive bem e onde tudo parece correr normalmente se não nos preocuparmos com temas políticos nem nos incomodarmos demasiado com o teor dos discursos dominantes: “Today, once again, the political situation is rotten, but living in Budapest is very pleasant!” my friend quipped. He is not Jewish, but Jews have told me more or less the same thing. “Yes, much of the official discourse is anti-Semitic,” one Jewish friend told me. “But there have been no physical attacks against Jews here, or against synagogues, which is more than one can say for France or Belgium.”

 
Ora aqui está o dedo colocado na ferida, nomeadamente na ferida que o assassinato de Mireille Knoll reabriu em França, uma ferida que continua a incendiar paixões, um crime que trouxe milhares para as ruas de Paris numa “marcha branca” que reagiu mal à tentativa da extrema-direita de Marine Le Pen e da extrema-esquerda dos “insubmissos” se juntarem ao protesto. Uma ferida a que o Le Monde aponta o dedo de forma muito directa no editorialAntisémitisme, le refus de la banalisation: “Selon les derniers chiffres publiés en janvier par le ministère de l’intérieur, si les actes racistes ont globalement diminué en France en 2016, les actions violentes dont la population juive est la cible ont augmenté de façon très significative, passant de 77 à 97 faits avérés.”
 
No mesmo jornal o sociólogo Dominique Schnapper reflecte, numa entrevista – « L’antisémitisme est un signe inquiétant de l’affaiblissement de la démocratie » –sobre como o anti-semitismo contemporâneo tem facetas novas, sobretudo quando se manifesta mais à esquerda. Vale a pena ler: “Il y a toujours eu un courant hostile aux juifs chez les penseurs socialistes, depuis le XIXe siècle, ils s’opposaient aux juifs dans la mesure où ils assimilaient les juifs à la banque et au capitalisme – ce qui est un des thèmes favoris de l’antisémitisme. L’extrême gauche aujourd’hui comprend des militants qui déclarent ne pas être antisémites mais antisionistes, mais qui renouvellent ce courant de pensée. Ce n’est pas le cas de tous, bien sûr, mais cela existe effectivement. Or qu’est-ce qu’être antisioniste aujourd’hui ? Etre pour la destruction de l’Etat d’Israël ? Peut-on souhaiter la disparition d’un peuple, même s’il est né de la guerre ? Tous les Etats sont nés de la guerre.”
 

É assim que uma viagem que começou na direita radical, com o húngaro Viktor Órban, termina à esquerda com Jeremy Corbyn o qual está de novo envolvido numa controvérsia por causa de posições que tomou e que são criticadas como sendo sinais de antissemitismo. Uma dessas controvérsias envolve a sua crítica à retirada de um mural que havia sido pintado nas paredes de Londres (e que reproduzo acima), um mural com grosseiras referências antissemitas. Recorro ao insuspeito Guardian, habitual defensor de Corbyn, mas onde desta vez Michael Segalov foi muito duro: If you can’t see antisemitism, it’s time to open your eyes. Neste texto defende que todos no Partido Trabalhista deviam ter imediamente compreendido como aquele moral era ofensivo, tratando de explicar, detalhe a detalhe, como nele se juntam alguns dos mais comuns clichés do antissemitismo, mesmo do tipo mais virulento. Por exemplo: “It’s not just the big, hookednoses and evil expressions that make this iconography offensive and troubling, these depictions mirror antisemitic propaganda used by Hitler and the Nazis to whip up hatred that led to the massacre of millions of Jews. This extends to the table these figures are sat at, resting on human bodies, as the Nazis also depicted.”
 
A estranha cegueira de muitos no principal partido da oposição do Reino Unido levou Alastair Thomas a escrever na Spectator sobreWhy my generation is indifferent to anti-Semitism. Partindo de uma série de perguntas – “Why is it that young left-wingers find it so hard to care about anti-Semitism? Why is that huge group of self-proclaimed anti-racists and anti-fascists so unwilling to expel anti-Semites from the party?” –, o autor também se encontra entre os que defendem que tudo começa numa oposição a Israel e às suas políticas para terminar num mal disfarçado ódio aos judeus: “They find Israel, as a country, guilty of all kinds of crimes, and regard Jews, anywhere, as Zionist sympathisers. Within the far left, the de facto position is one of hostility and distrust, not just towards Zionists but towards Jewish communities wherever they are.”
 
Por isso, e para não vos deixar sem uma referência a um texto da imprensa portuguesa, a leitura das reflexões de Helena Matos, no Observador, em Teremos sempre Israel?, será sempre um desafiante complemento pois junta ainda outras preocupações às europeia inquietações com o eterno regresso de alguns fantasmas que assolaram durante séculos este nosso Velho Continente.
 
Mas por hoje é tudo, tenham boas leituras e possam aproveitar para repousar que amanhã é mais um dia de trabalho.
 
 
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