Vários jovens numa escola, sentados ao computador, realizam uma tarefa de identificação do número de células que permanecem intactas, colaborando num estudo para desenvolvimento de fármacos para atacar células cancerígenas, num esforço colectivo de colaboração com uma investigação envolvendo milhares de voluntários em Portugal, Espanha e Brasil. Num subúrbio de Londres, com problemas de poluição, vários cidadãos realizam medições diárias da qualidade do ar, para as utilizarem como evidências nas negociações com a Câmara de Londres, apoiados por investigadores da University College. Uma pessoa, num local de Portugal, encontra uma planta que julga ser invasora; fotografa-a e usa uma aplicação no seu telemóvel para a enviar para os gestores do site, que validarão e assinalarão num mapa esse avistamento. Outros jovens de muitas escolas analisam imagens do Sol, de um longo registo diário do Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra, para um estudo das manchas solares, num intervalo de tempo de mais de 80 anos. Voluntários de escolas e associações realizam colectas regulares de invertebrados em um pequeno curso de água, numa aldeia no Brasil, para monitorizarem a qualidade da água desse recurso, que é um bem comum. Estes são exemplos de actividades realizadas por cidadãos que voluntariamente colaboram com um projecto científico, tornando possível investigação que seria impossível ou muito difícil de conduzir sem o seu contributo, ou que usam um projecto científico desenhado para responder às suas necessidades. Estas actividades designam-se por ciência cidadã e têm vindo a disseminar-se e a tornar-se cada vez mais frequentes e envolvendo cada vez mais participantes, um pouco por todo o mundo. Embora as primeiras iniciativas de envolvimento de cidadãos voluntários em projectos científicos sejam já bem antigas, só nos últimos anos o movimento adquiriu uma dimensão global, particularmente graças aos recursos da internet.
A ciência cidadã pode caracterizar-se como sendo qualquer iniciativa de carácter científico, envolvendo os cidadãos como participantes activos. Estas iniciativas podem assumir várias formas, ter origem em interesses dos investigadores que procuram colaboradores voluntários, ou nos cidadãos que procuram o uso do conhecimento científico para sustentarem, de uma forma objectiva, os seus argumentos ou terem possibilidade de confirmar ou não as suas preocupações. Muitos projectos de ciência cidadã têm uma preocupação mais didáctica e educativa; outros procuram a promoção e protecção do valor de um bem, em regra um bem natural, como uma floresta, um território, ou uma espécie ameaçada; outros ainda visam responder a questões de investigação fundamental, como a detecção de fenómenos astronómicos, ou aplicada, como estudos para combate de doenças. Mas, em todos os casos, temos a participação activa de cidadãos na recolha de dados, por vezes na análise e até no desenho dos projectos.
Muitos investigadores compreendem a importância da ciência cidadã, embora muitos outros exprimam dúvidas e receiem envolver-se nelas. Embora, o problema da qualidade dos dados para fins científicos seja crítico, na realidade isso é válido para qualquer projecto científico, havendo metodologias para melhorar a qualidade dos dados, reduzir o erro e garantir a validade das observações, mesmo que isso tenha que passar por simplificações de procedimentos. Mas, o maior problema será o da dificuldade em aceitar a invasão pelos cidadãos de domínios que eram exclusivos. Tal como as novas gerações de cientistas estão cada vez mais conscientes, familiarizados e disponíveis para comunicar e divulgar ciência, também a habituação com a ciência cidadã irá acontecer à medida que os projectos se forem diversificando e for sendo compreendido o seu potencial.
Embora em Portugal as iniciativas tenham, em geral, uma participação limitada, com excepções, em outros países, particularmente na Europa e Estados Unidos, há já uma forte planificação, com apoio directo dos governos a estruturas que visam a promoção de iniciativas que claramente aproximam a sociedade da actividade científica e capazes de contribuir para uma maior compreensão de como o conhecimento é produzido, em sociedades cada vez mais tecnológicas e dependentes do conhecimento científico para o seu desenvolvimento e a qualidade de vida das pessoas. Além dessas iniciativas nacionais, existem mesmo uma Associação Europeia de Ciência Cidadã e a própria União Europeia está muito interessada no fenómeno. Investigadores da Universidade de Coimbra e do Museu da Ciência estiveram mesmo envolvidos num projecto que produziu o livro branco da ciência cidadã para a União Europeia. O documento procura sintetizar o que é a ciência cidadã e avaliar que oportunidades se colocam com a sua expansão e consolidação.
Ao falarmos de ciência cidadã estamos, desde logo, a falar de maior cidadania, de um maior controlo que os cidadãos podem exercer sobre o espaço onde vivem, ter a possibilidade de contribuir para resolver problemas que se colocam a uma escala que não tem solução possível, excepto se através da acção colaborativa de muitas pessoas, em projectos com objectivos claros, de colectivamente colaborarmos num dos mais belos e fascinantes empreendimentos que a humanidade já desenvolveu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário