terça-feira, 5 de julho de 2016

Macroscópio – Evocações, saudades e lições a aprender com o passado e o exemplo

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Elie Wiesel. Michel Rocard. Eis duas grandes figuras que deixaram o nosso convívio no intervalo de poucas horas.
La Somme há 100 anos, Filadélfia há 240. Uma batalha como não houvera outra. Uma declaração de independência como não voltou a haver outra. 1 de Julho, 4 de Julho.
O Macroscópio de hoje, como já estarão a perceber, será dedicado à memória desses dois grandes vultos e à evocação desses dois momentos marcantes da história que nos trouxe até ao mundo em que vivemos.

Elie Wiesel, aquele que sobreviveu à noite

Sobrevivente do Holocausto, escritor, activista, Prémio Nobel da Paz. Morreu este fim de semana aos 87 anos, deixando um legado de mais de 50 livros e, sobretudo, tendo-nos inspirado pelo seu exemplo. Eis alguns textos que o recordam e cuja leitura recomendo:
  • Elie Wiesel, o Tzadik, foi escrito para o Observador por Ester Mucznik e enquadra a figura do resistente e do pensador na tradição judaica, procurando encontrar-lhe um significado, mesmo quando isso é difícil e pouco óbvio: “Para um homem profundamente religioso como era Wiesel antes do Holocausto, o “silêncio de Deus” na época é uma questão lancinante que percorre muitos dos seus livros. Mas esta questão nunca é resolvida pela perda da fé. Para Wiesel a dúvida resolve-se pelo questionamento, pelo debate intimo, através da conversação milenária que os judeus entretêm com Deus. Antes do Holocausto, a religião era para ele aceitação; depois de Auschwitz é sinónimo de revolta. À boa maneira judaica, no seguimento de Abraão, Moisés ou Job, o dialogo com o divino inclui a discussão, o afrontamento e desafio: Acreditar em Deus, apesar de Deus.”
  • Elie Wiesel: “Se esquecermos, somos culpados” é o obituário preparado pelo escritor Nuno Costa Santos também para o Observador. Dele destaco esta passagem: “Apesar de todos os questionamentos e perplexidades, nunca se revelou ressentido nesse esforço de manter acesos os acontecimentos medonhos e na sua defesa dos direitos humanos. Era um homem que, antes de mais, apesar dos seis milhões de judeus assinados, procurava o bem. Sempre ancorado nos seus primeiros anos de vida, de onde nunca saiu realmente. “Para nós, judeus, o começo é uma necessidade fundadora. O início preocupa-nos mais do que fim. Como dizia Walter Benjamim, mergulhamos no futuro às arrecuas”.
  • Elie Wiesel, Auschwitz Survivor and Nobel Peace Prize Winner, Dies at 87, o longo obituário escrito por Joseph Berger para o New York Times, onde se recorda um dos momentos mais intensos, e mais dramáticos, da vida daquele sobrevivente de Auschwitz (onde teve de trabalhar no sub-campo de Buna) e Buchenwald:  “When Buna was evacuated as the Russians approached, its prisoners were forced to run for miles through high snow. Those who stumbled were crushed in the stampede. After the prisoners were taken by train to another camp, Buchenwald, Mr. Wiesel watched his father succumb to dysentery and starvation and shamefully confessed that he had wished to be relieved of the burden of sustaining him. When his father’s body was taken away on Jan. 29, 1945, he could not weep. “I had no more tears,” he wrote. On April 11, after eating nothing for six days, Mr. Wiesel was among those liberated by the United States Third Army. Years later, he identified himself in a famous photograph among the skeletal men lying supine in a Buchenwald barracks.” (A fotografia que abre este Macroscópio é precisamente de Elie Wiesel junto a uma reprodução da famosa imagem em que ele também aparece.)
  • Elie Wiesel’s great mission on behalf of Soviet Jews, um texto em que o famoso dissidente soviético Natan Sharansky recorda o activista, o homem que se bateu por inúmeras causas que não apenas a do seu povo: “Elie Wiesel’s humanism, his active concern for the voiceless, hardly stopped with his fellow Jews. He spoke out against massacres in Bosnia, Cambodia and Sudan, against apartheid in South Africa, and against the burning of black churches in the United States. He became, as others have said, the conscience of the world. Yet he never gave up or sacrificed even a bit of his concern for the Jewish people. He did not feel he had to give up his Jewish loyalty or national pride to be a better spokesman for others. To the contrary: It was the tragedy of his people that generated his concern for the world — a world he felt God had abandoned — and it was his belief in universal ideas that helped him to ultimately reconcile with his Jewish God.”
  • Remembering Elie Wiesel, o obituário da The Atlantic, onde se recorda que o Prémio Nobel da Paz, “In his acceptance speech, he spoke of the need to keep the Holocaust’s memory alive to prevent future genocides. “We must always take sides. Neutrality helps the oppressor, never the victim. Silence encourages the tormentor, never the tormented. Sometimes we must interfere,” he said. “When human lives are endangered, when human dignity is in jeopardy, national borders and sensitivities become irrelevant. Wherever men or women are persecuted because of their race, religion, or political views, that place must—at that moment—become the center of the universe.”


Michel Rocard, o socialista que lutou por uma outra esquerda


Quem passou por um stand de revistas estrangeiras na última semana talvez tenha reparado na capa da Le Point que era toda para uma entrevista com Michel Rocard, o antigo primeiro-ministro francês, um socialista heterodoxo que se escutava sempre com atenção e respeito pela sua inteligência e cultura. Não saberia é que essa entrevista era a última que Rocard tinha dado, pois morreu este fim-de-semana. Centro por isso a minha evocação do antigo dirigente socialista exclusivamente na cobertura feita pelo Le Point.
  • Michel Rocard, l'homme de la deuxième gauche, o obituário que nos recorda que “Michel Rocard a vécu une longue et tumultueuse carrière politique qui l'a laissé assez loin de son rêve, l'Élysée, où ira son grand rival François Mitterrand dont il fut le Premier ministre de 1988 à 1991. Se qualifiant de « social-démocrate de dialogue », il entendait incarner une vision rénovée de la gauche, portée par une forte exigence morale, prenant en compte « les contraintes de l'économie mondialisée » sans « renoncer aux ambitions sociales ». Il fut, selon ses amis, le premier à gauche à introduire la notion de rigueur financière. Pour lui, la « deuxième gauche, qu'il inspira, devait être « décentralisatrice, régionaliste, héritière de la tradition autogestionnaire ».”
  • Michel Rocard : La gauche française est la plus rétrograde d’Europe, a transcrição da longa entrevista que ocupou 14 páginas da edição impressa, mas que infelizmente só pode ser lida na íntegra comprando o acesso electrónico à edição do Le Point. Dela deixo uma passagem muito significativa: “La gauche française est un enfant déformé de naissance. Nous avons marié deux modèles de société radicalement différents, le jacobinisme et le marxisme. Pas de souveraineté des collectivités territoriales, pas de souveraineté des universités, tout est gouverné par le sommet, ça c’est le jacobinisme. Avec la prétention d’avoir une analyse rationnelle de la production, ça c’est le marxisme. Et, particularité française, la volonté révolutionnaire de travailler à la démolition du capitalisme, ce qui explique l’absence de dialogue social et de culture économique. Pourquoi voulez-vous comprendre le système puisqu’il faut en mettre un autre à la place ? 
    (O Le Figaro tem uma síntese da entrevista que pode ser lidaaqui. Breve passagem, também interessante: “Plus généralement, l'ancien premier ministre dressait une fois de plus un constat sévère de l'état de la gauche. «Oui, la gauche a perdu la bataille des idées, et pas seulement en France», constatait-il. «La gauche française est un enfant déformé de naissance. Nous avons marié deux modèles de société radicalement différents, le jacobinisme et le marxisme», analysait-il.”


A batalha de La Somme, uma daquelas em que se fez o terrível século XX


A I Guerra Mundial tinha começado há quase dois anos e, em Verdun, os alemães tinham lançado uma gigantesca ofensiva que estava a colocar à prova todo o sistema francês – e a consagrar Pétain como um grande chefe militar. Para tentar aliviar a pressão alemã, os britânicos lançaram, a 1 de Julho de 1916, uma ofensiva mais a norte, na região conhecida como La Somme. No primeiro e terrível dia de batalha morreriam nos campos enlameados e fustigados pela artilharia 19 mil soldados britânicos, e mais 38 mil ficaram feridos. Não surpreende por isso que La Somme ocupe hoje um lugar especial no imaginário dos ingleses, tal como Verdun ocupa no dos franceses. É uma batalha que vale a pena recordar, o que faço através de duas referências:
  • The Lessons of the Somme, um texto de David Frum na The Atlantic onde se defende que “The first day of the Somme ended in catastrophe, and the campaign in futility, not because the British commanders were idiots, but because the problems they faced were too new and too hard. All these assessments have been absorbed by specialists, but none has made much impress on the public imagination. What’s been left behind, instead, is a memory of the Somme as the place—of all places—where the supposedly orderly certitudes of the Victorian era were bullet-riddled and smashed to bloody human fragments.”
  • The World War I battle that continues to haunt Europe, uma análise de George F. Will no Washington Post, onde se considera que “In the next world war, the distinction between the front lines and the home front would be erased. In 1918, Randolph Bourne, witnessing the mass mobilization of society, including its thoughts, distilled into seven words the essence of the 20th century: “War is the health of the state.” Relations among government, the economy and the individual were forever altered, to the advantage of government.”

 
A Revolução Americana: Life, Liberty and the pursuit of Happiness.

Poucos documentos políticos e constitucionais referem a palavra “felicidade”. Mas ela está logo nas primeiras linhas documento aprovado a 4 de Julho de 1776, ou seja, há 240 anos, por um conjunto de delegados das 13 colónias britânicas na América do Norte reunidos em Filadélfia. Trata-se da Declaração de Independência, um texto venerado pelos norte-americanos e que teve enorme influência no estabelecimentos dos direitos humanos como direitos universais e inalienáveis. Por isso ainda hoje se celebra o “4th of July” em todos os Estados Unidos e se continua a escrever e reflectir sobre o significado desse documento fundador da república americana. Deixo-vos também duas referências, uma delas portuguesa:
  • Patriotismo e internacionalismo: a propósito da Revolução Americana, um texto de João Carlos Espada no Observador onde ele evoca a intervenção do director do Journal of Democracy, com sede em Washington, no Estoril Political Forum que decorreu a semana passada no Estoril: “Marc Plattner recordou que o enraizamento nacional veio a revelar-se inseparável da experiência democrática de auto-governo. “Formas de governo não fundadas no consentimento dos cidadãos podem viver sem o sentimento nacional, mas a democracia não pode. Apesar dos perigos inerentes às formas malévolas de nacionalismo, o sentimento nacional fornece a coesão necessária para que um povo possa auto-governar-se.”
  • America’s Founding Changed Human History Forever, um texto do editor da National Review onde se considera que “The beauty of the American Founding was not that it provided a detailed roadmap that could predict the minutiae of the future in glorious perpetuity, but that it laid out for all people a set of timeless and universal ideals, the veracity and applicability of which are contingent upon neither the transient mood of the mob nor the present state of technology. Among those ideals are that “all men are created equal,” and that they “are endowed by their Creator with certain unalienable Rights”; that “Governments are instituted among Men” in order to “secure” their “rights”; that legitimate power derives “from the consent of the governed”; and that if any such government is seized or corrupted by tyrants, “it is the Right of the People to alter or to abolish it.” 

Já vai longo este Macroscópio, mas espero que estas referências mais do que fechar temas, tenham suscitada a curiosidade dos leitores por saberem mais sobre estas duas grandes figuras que nos deixaram e aqueles dois momentos marcantes da nossa história comum. Sendo tudo por hoje, despeço-me com votos de bom descanso.

 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2016 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa

Nenhum comentário:

Postar um comentário