sexta-feira, 21 de maio de 2021

As bem-aventuranças e a glória celeste

“As bem-aventuranças” (1436-1443), Fra Angelico, afresco do convento de San Marco, em Florença.

  • Plinio Maria Solimeo

Diz São Mateus em seu Evangelho que Nosso Senhor Jesus Cristo “percorria toda a Galileia […] grandes multidões seguiam-no da Galileia e da Decápole, e de Jerusalém e da Judeia”. O Divino Salvador, “vendo a multidão, subiu ao monte, e quando se sentou, aproximaram-se dele os discípulos. E, abrindo a boca, Ele os ensinava dizendo, bem-aventurados…” (4, 23-25; 5, 1 e ss.), iniciando assim o que ficou conhecido como o famoso Sermão da Montanha.

São Lucas põe esse episódio logo depois de Nosso Senhor ter escolhido seus 12 discípulos e, descendo do monte em que estavam, curou muitos doentes e expulsou vários demônios. Em seguida, “levantando os olhos sobre os discípulos, Ele dizia: bem-aventurados…”.

Esse evangelista cita apenas quatro das oito bem-aventuranças mencionadas por São Mateus. Sobre isso comenta a revista Permanência: “[São] Lucas narra que o sermão do Senhor foi feito às turbas. Por isso enumera as bem-aventuranças conforme a capacidade delas, que só conheciam a felicidade voluptuosa, temporal e terrena”. As quatro citadas por ele são: “Bem-aventurados os pobres, porque vosso é o reino de Deus; Bem-aventurados os que agora padeceis fome, porque sereis fartos; Bem-aventurados os que agora chorais, porque rireis; Bem-aventurados sereis quando vos odiarem os homens, vos excomungarem, e vos maldisserem e proscreverem vosso nome como mau, por amor do Filho do Homem. Alegrai-vos naquele dia e regozijai-vos, pois grande será a vossa recompensa no Céu”.

Entretanto, vamos comentar as oito bem-aventuranças citadas por São Mateus, porque elas englobam também as acima.

Sobre as bem-aventuranças ou a felicidade que elas supõem, afirma o erudito diácono e teólogo Douglas Mcmanaman, do Catholic Education Resource Center:

“O filósofo grego Aristóteles apontou que a felicidade genuína (eudaemonia) é completa e suficiente em si mesma. Isto é, não é precária e depende de fatores externos como o clima ou o mercado de ações. Assim, a verdadeira felicidade perdura. Mas a felicidade não era possível para todos, segundo Aristóteles, e aquela sobre a qual ele fala é a felicidade natural, o resultado da estabilidade emocional proporcionada pelas virtudes e a alegria da contemplação natural das coisas mais elevadas. Mas Jesus é Deus em carne, e Deus se fez homem para que o homem pudesse ‘se tornar’ Deus, por assim dizer, isto é, para que ele pudesse ser elevado pela graça divina, que é uma participação na vida sobrenatural de Deus; é entrando na Pessoa de Cristo que entramos em sua alegria”.

O saudoso arcebispo de São Paulo D. Duarte Leopoldo e Silva, comentando em sua célebre Concordância dos Santos Evangelhos essa passagem de São Mateus, diz:

“O Sermão da Montanha é chamado o epítome, ou resumo do Cristianismo, o símbolo do Evangelho, o texto da Nova Lei. Ele é para a Igreja o que são as tábuas do Sinai para a Sinagoga. É a lei do amor sucedendo à lei do temor. O Deus feito homem a promulga sobre uma montanha verdejante, cercado de seus discípulos e de grande multidão de povo. A palavra de Deus escapa-lhe dos lábios fluente e acessível ainda aos mais ignorantes. Ela diz toda a verdade que os homens devem saber, ensina tudo o que é preciso fazer para a salvação, anima, fortifica, dirige e eleva. Ocupa-se dos pequeninos e dos pobres, tem consolações e esperanças ainda para os mais abandonados. É profunda, e ao mesmo tempo simples e suave. É o mais belo e mais tocante ensinamento que ainda ouviram os homens. Enfim, para assinalar um lugar no reino do Céu com a autoridade com que o faz Jesus neste belíssimo discurso, é preciso ter descido do Céu, é preciso ser Deus”.

As oito bem-aventuranças que constam nesse apóstolo e evangelista no início do Sermão da Montanha, segundo o Catecismo da Igreja Católica, “nos ensinam o fim último, ao qual Deus nos chama: O Reino de Deus, a visão de Deus, a participação na natureza divina, a vida eterna, a filiação divina e o repouso em Deus”. E o Catecismo chamado de São Pio X acrescenta: “Jesus Cristo propôs-nos as Bem-aventuranças para nos fazer detestar as máximas do mundo, e para nos convidar a amar e praticar as máximas do seu Evangelho”.

Passamos a apresentar essas bem-aventuranças, segundo os comentários de vários teólogos e estudiosos do assunto.

Primeira bem-aventurança: Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. (Versículo 3)

Em sua edição da Bíblia, o Pe. Matos Soares comenta que a expressão “pobres de espírito” traduzir-se-ia melhor como “pobres pelo espírito”, pois para ele “são os pobres voluntários e os que têm o coração desapegado das riquezas, E, segundo o sentido da Sagrada Escritura no Antigo Testamento, os humildes, os que confiam unicamente em Deus”.

Ao que D. Duarte Leopoldo acrescenta: “Pobres de espírito não são os tolos, os idiotas, os ignorantes etc., como erradamente entendem alguns. São os humildes, os que não têm apego aos bens da Terra, os que voluntariamente renunciaram a ele para mais de perto seguirem a Jesus Cristo. Assim, pois, um pobre mal satisfeito com a sua sorte, dominado pela ambição e pelo orgulho, é um rico de espírito; não é para ele o reino do Céu. Do mesmo modo, no seio da abundância e na prosperidade, pode um rico ser pobre de espírito pelo nenhum apego aos bens da fortuna, pelo espírito de caridade e submissão à vontade de Deus. O santo homem Jó é um dos mais belos exemplos desta verdade”. Porém, “não basta produzir frutos; é preciso produzi-los na paciência. A paciência é a vida de provação, não é o sentimento de uma hora, mas a perseverança na força, nascida de um princípio permanente e sobrenatural: é um ato repetido até o fim da vida, é a virtude em estado de hábito”.

O Terceiro Catecismo da Doutrina Cristã, conhecido como Catecismo de São Pio X, diz a respeito da primeira bem-aventurança: “Os pobres de espírito, segundo o Evangelho, são aqueles que têm o coração desapegado das riquezas; fazem bom uso delas, se as possuem; não as procuram com solicitude, se não as têm; e sofrem com resignação a perda delas, se lhes são tiradas”.

Pelo que afirma o teólogo e diácono Mcmanaman: “Essa é a primeira e mais fundamental condição para pertencer a Cristo e, portanto, a primeira condição para entrar na alegria do Reino de Deus. Aqueles que são pobres em termos de riqueza material estão profundamente cientes de sua carência. Da mesma forma, aqueles que são pobres de espírito estão cientes de sua carência espiritual, isto é, estão cientes de sua necessidade absoluta de Deus; assim, eles se abrem para Ele. O resultado desse simples ato de abertura é o presente do reino dos céus”.

Por sua vez, a respeito dessa primeira bem-aventurança, diz o célebre jesuíta Cornélio a Lápide: “A fim de que o espírito, ocupado tão somente com os bens temporais, não ponha menos cuidado em possuir os bens eternos, o cristão deve ter tanta confiança na divina Providência, diz São Gregório, que, ainda quando não se possa procurar o necessário para a vida, deve estar bem convencido de que o necessário nunca lhe haverá de faltar”.

Segunda bem-aventurança: Bem-aventurados os mansos, porque eles possuirão a Terra. (Versículo 4)

O diácono Mcmanaman comenta a respeito desta segunda bem-aventurança: “Um espírito manso é um espírito gentil. Os pobres de espírito que choram a miséria dos outros porque realmente conhecem essa miséria e são movidos a compartilhá-la, são gentis para com os que sofrem. Os mansos não se ofendem rapidamente com os outros; são muito pacientes com eles porque sabem que Deus sempre foi paciente com eles. Os mansos são controlados, controlam suas emoções, em particular a paixão da ira. Mansidão, entretanto, não significa a supressão da ira. Lembre-se de que Jesus ficou zangado com os cambistas no templo e os expulsou. A ira que é governada pela razão e é uma resposta à verdadeira injustiça, não é pecaminosa, mas virtuosa; a decisão deliberada de manter a ira viva em um espírito de falta de perdão, entretanto, é pecaminosa”.

Pelo que o grande pregador francês do século XVII, Bossuet — citado pelo Pe. Royo Marin, O.P. em sua Teologia da Perfeição Cristã —,completa: “Podemos dizer, se observamos o que se passa dentro de nós, que nossas paixões são todas redutíveis de amor, que engloba e suscita todas as outras. O ódio por algum objeto não surge a não ser por causa do amor que temos por alguma outra coisa. Eu odeio a doença porque amo a saúde. […] Aversão e tristeza são um amor que afasta alguém de um mal que o privaria de seu bem. […] A ira é um amor que se irrita ao ver que alguém o quer privar de seu bem, e se levanta para defendê-lo. Em uma palavra, reprimi o amor, e não haverá paixões; suscite o amor, e todas as outras paixões nascerão”.

Acrescenta o Pe. Royo Marin na obra citada: “Quando nos deixamos levar por um impulso desordenado, sentimos imediatamente a dor do remorso. Se, pelo contrário, resistimos a esse impulso, experimentamos uma sensação de satisfação do dever cumprido. Isso é uma prova convincente do fato de que somos agentes livres com relação ao impulso das paixões, e que seu controle e governo está em nossas mãos. […] Não há dúvida de que há graves dificuldades e obstáculos no começo, mas gradualmente a pessoa pode obter perfeito controle de si mesmo. […] Primeiro, é necessário estar firmemente convencido da necessidade de combater as paixões desordenadas por causa da grande perturbação que causa em nós. As paixões perturbam nosso espírito, impedem a reflexão, tornam impossível formular um juízo sereno e balanceado, enfraquecem a vontade, exaltam a imaginação, provocam uma mudança nos órgãos corporais, e ameaçam destruir a paz de espírito e a tranqüilidade de consciência. […] Do ponto de vista psicológico, não há dúvida de que o melhor remédio contra as paixões desordenadas é a firme e decidida vontade de vencê-las. Mas uma vontade puramente teórica ou desejo platônico não é suficiente; tem que haver uma decisão enérgica e determinada, que se traduz em ação pelo uso dos meios necessários de obter a vitória, e especialmente se é o caso de combater uma paixão que está profundamente enraizada por um longo período de mau uso”.

Nesse sentido, adverte Cornélio a Lapide: “Cuidai de que não desapareça jamais a mansidão de vosso coração, diz Santo Agostinho: De corde lenitas non recedat (Medit.).Não vos vingueis por vossa própria conta, mas dai lugar a que passe a cólera, diz São Paulo” (Rm 12, 19). Deixai passar a ira, isto é, guardai silêncio, cedei àquele que se enfurece, sede dóceis, sofrei com paciência a injúria, não digais nada até que a calma tenha modificado vosso coração para que caiba nele a doçura e a caridade. Jesus Cristo, diz Santo Agostinho, pronunciou estas palavras: ‘Aprendei de Mim’, não a fazer um mundo, não a criar as coisas visíveis e invisíveis, não a criar outras maravilhas aqui na Terra, nem a ressuscitar os mortos; mas, sim, aprendei de Mim como ser manso e humilde de coração. A mansidão e a humildade são irmãs, como a ira é irmã do orgulho. O homem não pode ser manso se não é humilde e se o sopro das paixões não se acalma em seu coração. O mar está tranquilo somente quando os ventos cessam”.

Porque, como diz D. Duarte Leopoldo: “Os mansos — isto é, os que não murmuram nem se irritam, os que evitam a discórdia, os que sabem perdoar com generosidade as ofensas alheias, aqueles, enfim, que suportam o peso da vida conformados com a vontade de Deus — possuirão a Terra, isto é, a Terra dos vivos, o Céu. Todavia, mesmo neste mundo, a paciência é uma arma poderosa para vencer ainda as maiores resistências”.

Terceira bem-aventurança: Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. (Versículo 5)

O Catecismo de São Pio X diz desta bem-aventurança: “Os que choram e todavia são chamados bem-aventurados, são aqueles que sofrem com resignação as tribulações, e que se afligem pelos pecados cometidos, pelos males e pelos escândalos que se veem no mundo, pela ausência do céu, e pelo perigo de perder a fé”.

A esse respeito, comenta o diácono Douglas: “Parece um tanto paradoxal que o enlutado possa ser chamado de ‘feliz’ [bem-aventurado], mas essa bem-aventurança se refere a um tipo especial de luto. Se amamos a Deus, amaremos todos os que pertencem a Deus, e todo ser humano, sem exceção, vem de Deus e é amado por Deus com um amor incompreensível. E assim, quanto mais entramos no coração de Deus, mais descobrimos nosso próximo ali, e então somos movidos a voltar à Terra, por assim dizer, e vamos procurá-lo, porque sabemos que lá iremos encontrar o Deus que começamos a amar: descobrimos nosso próximo em Deus e redescobrimos Deus em nosso próximo. Porque os amamos como ‘um outro eu’, o sofrimento deles também se torna nosso. Choramos por eles, pois é tão difícil permanecer indiferente ao sofrimento dos outros depois que descobrimos e entramos no coração de Deus. São os pecados do homem, a fria indiferença dos outros para com Deus e o próximo que nos enchem de tristeza. Esta, porém, é uma tristeza abençoada, uma tristeza que não é incompatível com a alegria, mas existe com ela, pois é a alegria de ter sido convidado para a tristeza de Cristo, que é uma tristeza cheia de alegria”.

Ao que acrescenta Cornélio a Lapide: “A compaixão e uma terna amizade são um bem que está em contrapeso ao mal causado pela dor. Aquele que se compadece proporciona ao coração lastimado um alívio proporcionado a seus sofrimentos: toma a metade das aflições que pesam sobre o desgraçado; e este, fortificado, sofre com mais facilidade e resignação aquelas provas a que está sujeito. Uma carga dividida faz-se menos pesada. […] Quem está enfermo que eu não esteja enfermo com ele? — pergunta aquele grande Apóstolo aos Coríntios: ‘Quis infirmatur, et ego non infirmor?’ (2 Cor 2, 29). Se um membro padece, todos os membros se compadecem: ‘Si quid patitur unum membrum, compatiuntur omnia membra’(1 Cor 12, 26).Sede todos, diz São Pedro, de um mesmo coração, compassivos, amorosos para com todos os irmãos, misericordiosos, modestos, humildes, não pagando mal com mal, nem maldição com maldição, antes, pelo contrário, bens ou bênçãos, porque a isto sois chamados, a fim de que possuais a herança da bênção celestial (cf. 1 Pd 3, 8-9)”.

D. Duarte Leopoldo observa: “Bem-aventurados os que choram os seus pecados e os dos seus irmãos. Santas lágrimas que tanta consolação merece no Céu. Também as lágrimas que, todos os dias e com tanta abundância, caem dos olhos dos pobres, dos aflitos, dos doentes e abandonados têm bem-aventurança. ‘Lázaro só teve males na vida’, diz Abraão ao mau rico, ‘agora ele é consolado’”.

Falando sobre a razão pela qual devemos chorar e sofrer por nossos pecados, diz o Pe. Royo Marin: “Cada pecado, mesmo que pareça insignificante, é uma desordem, e por isso mesmo é uma deformidade e feiúra da alma, uma vez que a beleza da alma consiste no esplendor da ordem. Consequentemente, qualquer coisa que por sua natureza tenda a destruir o pecado ou apagar sua marca na alma deve, por isso mesmo, embelezá-la. Por essa razão o sofrimento purifica e embeleza a alma. […] É impossível medir o poder redentor do sofrimento oferecido à justiça divina com uma fé viva e um ardente amor através das Chagas de Cristo”.

Quarta bem-aventurança: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão saciados. (Versículo 6)

Comenta o Pe. Royo Marin: “A palavra justiça é frequentemente usada na Escritura como sinônimo de santidade; mas como uma virtude especial é um hábito sobrenatural que inclina a vontade constantemente e perpetuamente a render a cada qual o que lhe é estritamente devido. […] Sua importância tanto na vida social quanto pessoal é evidente. Ela põe as coisas em sua reta ordem, e desse modo prepara o caminho para a verdadeira paz, que Santo Agostinho define como a tranquilidade da ordem, e a Escritura como obra da justiça”.

D. Duarte explica que “fome e sede de justiça é a necessidade que sente toda alma boa e reta, todo coração bem formado, de fazer a vontade de Deus, essa vontade de que Jesus fazia o seu alimento. O meu alimento é fazer a vontade daquele que Me enviou. Bem-aventurados os que devoram com prazer o pão que Jesus lhes apresenta, e bebem com delícia a água que Ele ofereceu à Samaritana”.

O diácono Mcmanaman observa: “Os indiferentes não sofrem pelas feridas dos outros. […] Muitos, na verdade, se deleitam secretamente com os infortúnios dos outros, razão pela qual as más notícias se espalham rapidamente. Muitos simplesmente não se irritam com as injustiças ao seu redor e, embora eles sejam muito apaixonados por seus objetivos, essas ambições geralmente têm pouco a ver com tornar este mundo mais justo, e mais a ver com sua própria realização individual. Aqueles que entraram em Cristo sofrerão muita fome e sede, porque há muita injustiça ao nosso redor. Quanto mais intenso for o seu amor, mais intensa será a sua fome e sede; bem-aventurado se você vive com este tipo de fome e sede, porque isso significa que você entrou na fome e sede de Cristo”.

Quinta bem-aventurança: Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. (Versículo 7)

Comenta o saudoso Arcebispo de São Paulo, “Os misericordiosos, isto é, os que perdoam, os que se compadecem das misérias do próximo, os que choram com os que choram, os que curam as feridas do corpo e da alma daqueles que sofrem; enfim, os justos, bons e dedicados, no último dia Nosso Senhor será também misericordioso para com eles”.

“Um dos modos de se ser misericordioso é praticando a tão esquecida virtude da afabilidade”, como diz o Pe. Royo Marin: “Há numerosos atos ou manifestações da virtude da afabilidade, e todos eles derivam da amizade por nossos próximos. Benignidade, polidez, simples louvor, indulgência, sincera gratidão, hospitalidade, paciência, mansidão, refinamento de palavras e atos etc. Essa preciosa virtude é de extrema importância, não somente na associação com amigos, vizinhos e estranhos, mas de um modo especial dentro do círculo da própria família, onde é muitas vezes negligenciada”.

A isso acrescenta o diácono teólogo: “Cristo revelou Deus como misericórdia absoluta. Ele veio para morrer por nós e cancelar a dívida do pecado, que não pudemos pagar. A palavra latina para misericórdia é ‘misericordia’ (miser, cor, dia). A palavra significa o coração (cor) de Deus, tocando nossa miséria (de avarento). Deus entra em nossa miséria tornando-se homem na Pessoa de Cristo. Ele o faz para injetar o conforto de sua presença nas profundezas de nossas trevas para que, quando a vida se torna escura para nós, não tenhamos que sofrer sozinhos. Quando somos tocados por sua misericórdia, também nos tornamos misericordiosos; segui-lo é nos tornarmos canal da sua misericórdia”.

Comentando a virtude da concórdia, afirma Cornélio a Lapide: “Em três coisas compraz-se o meu coração, diz o Eclesiástico, as quais são da aprovação de Deus e dos homens: a concórdia entre os irmãos e parentes, o amor dos próximos, e um marido e mulher bem unidos entre si (Pr 25, 1-2). A concórdia entre irmãos é a paz, diz São Agostinho; a concórdia entre irmãos é a vontade de Deus, a alegria de Jesus Cristo, a perfeição da santidade, a regra de justiça, o fundo da doutrina, a zeladora dos costumes, e em todas as coisas um a disciplina digna de louvor: ‘Pax concordia fratrum, concordia fratrum voluntas Dei est, juncunditas Christi, perfectio sanctitatis, justitiae regula, matéria doctrinae, morum custodia, atque in rebus omnibus laudabilis disciplina (Sentent.)’Ali onde há a concórdia, ali está Jesus Cristo, ali está Deus, ali está toda a Santa Trindade, formando, de certo modo, naqueles que vivem bem unidos, uma trindade na unidade, isto é, a união dos espíritos, dos corações e das ações”.

Sexta bem-aventurança: Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus. (Versículo 8)

Eis o comentário que faz John P. Van Kasteren em The Catholic Encyclopedia sobre essa bem-aventurança: “De acordo com a terminologia bíblica, ‘pureza de coração’ (versículo 8) não pode ser encontrada exclusivamente na castidade interior, nem mesmo, como muitos estudiosos propõem, em uma pureza de consciência geral, em oposição à pureza levítica ou legal, exigida pelos Escribas e fariseus. Pelo menos o lugar apropriado para tal bênção não parece ser entre a misericórdia (versículo 7) e a pacificação (versículo 9), nem depois da virtude aparentemente mais abrangente da fome e sede de justiça. Mas frequentemente no Antigo e no Novo Testamento (Gn 20: 5; Jó 33: 3, Sl 23: 4 (24: 4) e 72: 1 (73: 1); 1 Tm 1: 5; 2 Tm 2:22) o ‘coração puro’ é a boa intenção simples e sincera, o ‘olho são’ de São Mateus (6:22). E, portanto, oposto às consequências não confessadas dos fariseus (Mt 6: 1-6, 16-18; 7: 15; 23: 5-7, 14) Este ‘olho são’ ou ‘coração puro’ é mais do que necessário nas obras de misericórdia (versículo 7) e zelo (versículo 9) em favor do próximo. E é lógico que a bênção, prometida a esta contínua busca pela glória de Deus, deve consistir na ‘visão’ sobrenatural do próprio Deus, o último objetivo e fim do reino celestial em sua conclusão”.

A esse respeito, comenta o citado diácono Douglas que “O que é puro não se mistura. Por exemplo, falamos de xarope de bordo puro que não é misturado com qualquer outra coisa. Ser puro de coração é ter um amor indiviso por Deus, um coração não misturado com qualquer outro amor competitivo. Algumas pessoas amam a criação mais do que o Criador; eles amam as coisas; eles adoram coisas, riquezas, os prazeres da Terra, a glorificação do eu etc. Eles podem amar a Deus, mas seu amor está misturado com um amor desordenado de si mesmo”.

Por sua vez, observa D. Duarte: “Os corações puros, desprendidos dos sentimentos carnais e sensuais que mancham o corpo e a alma; os corações abertos a tudo o que é nobre, santo, justo, amável e virtuoso, a tudo o que é louvável nos bons costumes, como diz São Paulo. Esses corações verão a Deus neste mundo, através das sombras da fé, e no Céu O contemplarão face a face. Pelo contrário, a impureza de coração é o maior obstáculo, e quase sempre o único, que encontram as verdades da Religião”.

Sétima bem-aventurança: Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus. (Versículo 9)

Sobre esta bem-aventurança, diz o citado diácono: “A palavra latina para paz é ‘pax’, que significa unidade. Conforme profetizou Ezequiel, o Senhor reunirá seu povo de todas as nações; pois o amor une, o ódio divide. Um pacificador é aquele que se esforça para unir, para manter uma harmonia genuína entre as pessoas. Um pacificador não é um ‘pacifista’; antes, ele está disposto a ‘fazer’ a paz, a trabalhar por ela, até mesmo a lutar por ela. Um agressor injusto, que pode incluir uma nação inteira, tem a intenção de destruir a paz; portanto, um verdadeiro pacificador está até disposto a pegar em armas e lutar, talvez morrer pelo pax da nação, como fizeram nossos veteranos de guerra. Portanto, não há exigência de que alguém se torne um pacifista se for um cristão”.

Já John P. Van Kasteren afirma: “Os ‘pacíficos’ (versículo 9) são aqueles que não apenas vivem em paz com os outros, mas também fazem o possível para preservar a paz e a amizade entre a humanidade e entre Deus e o homem, e para restaurá-la quando for perturbada. É por causa desta obra piedosa, ‘uma imitação do amor de Deus pelo homem’, como São Gregório de Nissa o denomina, que eles serão chamados de filhos de Deus, ‘filhos de vosso Pai que está nos céus’ (Mt 5 : 45)”.

Por outro lado, diz D. Duarte: “Os pacíficos, os que odeiam as discussões, dissensões e demandas injustas; os que buscam, de preferência, tudo o que une e aproxima os corações; os que têm, por assim dizer, o culto dos direitos alheios. Filhos da paz, eles preferem ceder o seu direito, para não defendê-lo com quebra da caridade”.

Oitava bem-aventurança: Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. (Versículo 10)

Escreve a revista Permanência: “A oitava bem-aventurança é uma confirmação e manifestação de todas as precedentes. Pois, quem está firmado na pobreza do espírito e na mansidão e nas demais bem-aventuranças, não se afasta, por isso mesmo, desses bens por nenhuma perseguição. Por outro, a oitava bem-aventurança concerne, de certo modo, às sete precedentes”.

“Esta bem-aventurança final — diz o diácono MCManaman — implica claramente que existe uma diferença real entre alegria e prazer; pois não há prazer em ser perseguido, mas encontramos uma alegria secreta nos próprios recessos da alma, pois nos demos conta de que recebemos o dom de ser atraído para o próprio coração do silêncio dele. Cristo é alegria, e é sendo perseguido por causa dele que realmente O conhecemos. O silêncio de Cristo é mais alegre do que as maiores alegrias que a Terra tem para oferecer, e é isso que a perseguição por causa de Cristo faz por nós, nos tira do barulho do mundo e nos leva ao descanso profundo de seu outro silêncio mundano . Jesus pode dar bem-aventurança àqueles que sofrem por pertencerem a ele, porque ele não é um mero homem; ele é totalmente Deus e totalmente homem, e como Deus escolheu juntar-se à natureza humana para injetar no sofrimento humano a própria alegria de sua vida sobrenatural, que é tão diferente de qualquer outra alegria que de fato nos deixa em silêncio. Nós descansamos nele; pois encontramos tudo o que o coração humano procura, mas não pode encontrar fora dele”.

Ao que afirma Van Kasteren: “Assim, por uma inclusão não incomum na poesia bíblica, a última bênção remonta à primeira e à segunda. Os piedosos, cujos sentimentos e desejos, cujas obras e sofrimentos são apresentados diante de nós, serão abençoados e felizes por sua participação no reino messiânico, aqui e no além. E visto nos versos intermediários parecem expressar, em imagens parciais da única bem-aventurança sem fim, a mesma posse da salvação messiânica. As oito condições exigidas constituem a lei fundamental do reino, a própria essência e medula da perfeição cristã. Por sua profundidade e amplitude de pensamento, e sua influência prática na vida cristã, a passagem pode ser colocada no mesmo nível do Decálogo no Antigo, e do Pai Nosso no Novo Testamento, e superou ambos em sua beleza poética de estrutura”.

Concluímos com D. Duarte Leopoldo: “A justiça é a causa de Deus. Os perseguidos combatem por Ele, e Ele se encarrega de os recompensar como merecem, e ainda mais do que merecem”.

ABIM

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