sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Macroscópio – Há 100 anos, a tragédia de uma revolução. E de uma ilusão trágica

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

24 de Outubro no calendário russo, 7 de Novembro no nosso calendário. 1917. Em Petrogrado um grupo bem organizado de militantes e soldados tomava de assalto o Palácio de Inverno, prendia o Governo Provisório e tomava o poder. O regime que instauraram duraria até 1991, mas nessas décadas a fé na doutrina que inspirou essa revolução tornou-se, para centenas de milhões de pessoas, numa tragédia imensa. Mais: como o grande historiador francês François Furet descreveu na sua obra magistral O Passado de uma Ilusão - Ensaio Sobre a Ideia Comunista no Século XX, essa ideologia cativou sucessivas gerações de pensadores, funcionando como aquilo a que Raymond Aron chamou O Ópio dos Intelectuais. Espantosamente, ou talvez não porque a memória dos povos é curta, ainda há quem celebre a terrível experiência russa. Em Portugal fazem-no naturalmente o PCP – que tem todo um programa de celebrações – mas também a universidade pública, onde por estes dias se realiza o III Congresso Internacional Karl Marx. Vale por isso a pena reunir neste Macroscópio alguns textos que ajudam a compreender o que se passou na Rússia em 1917 e como evoluiu o regime saído daqueles dias de Petrogrado.
 
Para uma visão de conjunto, como sempre muito informada e interessante, recupero o Conversas à Quinta da semana passada, Como o golpe de Lenine se transformou na Revolução de Outubro, no qual Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto explicam não só como a Revolução de Outubro mudou o mundo há 100 anos. Mais: discutem sobre se ela era mesmo inevitável ou foi sobretudo uma obra do génio de Lenine (podcast acessível aqui).
 
Sendo impossível referir toda a imensa bibliografia existente, aproveitemos a oportunidade de ter sido agora editada em Portugal “A Tragédia de um Povo”, um estudo clássico do historiador britânico Orlando Figes, até porque este esteve em Portugal e deu mais de uma entrevista. Antes porém apreciemos para conhecer uma passagem deste seu livro (um grosso tomo de 900 páginas), até porque o Observador pré-publicou um excerto que incide precisamente sobre o que se passou nos dias logo a seguir à tomada do poder: 1917. Dos autocratas de Smolny à tragédia de um povo. Como se retrata de forma muito vivida nesta passagem, “o ponto crucial do sucesso bolchevique foi um programa de construção e desestruturação do Estado. Nos escalões administrativos mais elevados, procuraram centralizar todo o poder nas mãos do partido e, recorrendo ao terror, exterminaram toda e qualquer oposição política”. Mais: “Desde os primórdios do novo regime, os donos do poder dedicaram-se a combater todos os partidos que se tinham pronunciado contra os acontecimentos de outubro. Para os bolcheviques, bastava apelidar estes partidos de «contrarrevolucionários»”, pelo que não surpreende que “Lenta mas gradualmente, surgia a forma do futuro Estado policial. A 5 de dezembro, o Comité Militar Revolucionário foi extinto e, dois dias depois, as suas incumbências passaram para a alçada da Cheka, órgão de segurança que, posteriormente, ganharia o título de KGB.”

 
Das entrevistas que Orlando Figes concedeu quando passou há poucos dias por Lisboa destaco duas:
  • “Não quero romancear Lenine como o ‘lado bom’ e Estaline como o ‘lado mau'”, que eu próprio realizei e foi publicada no Observador. Nele o historiador defendeu que “Era claro aquilo que se passava em outubro de 1917: havia apoio a um governo baseado nos sovietes, mas não havia apoio para um Estado bolchevique monopartidário. Este acaba por ser imposto de cima para baixo, depois da tomada do poder.” Mais adiante acrescentou que “Outubro é um “coup d'etat” na sua essência e não há qualquer dúvida sobre isso. Aliás é Trotsky que o admite em "A História da Revolução Russa". Até na altura chamaram-lhe uma insurreição.
  • “Não foi Marx que fez de Lenine um revolucionário, foi Lenine que tornou o marxismo revolucionário”, entrevista realizada por Teresa de Sousa para o Público, onde se pode ler, por exemplo, que Lenine “compreendeu o potencial revolucionário de tomar conta do Estado, para depois usar o Estado para exterminar os inimigos através de uma ditadura. A guerra civil é a coisa mais importante, que se tornou num mecanismo crucial das revoluções um pouco por todo o mundo. Nos nossos dias, o Daesh é bolchevique. A guerra civil é o mecanismo da revolução.”
 
Sobre Lenine saiu ainda um outro livro, Lenine, o Ditador — Um Retrato Íntimo, da autoria de Victor Sebestyen, que Isabel Lucas entrevistou também para o Público: “Lenine tomou o poder à maneira russa, e criou uma autocracia brutal”. Esta passagem da conversa entre os dois ajuda a compreender o título: “Como é que alguém que durante grande parte da vida viveu em pensões em várias cidades da Europa arranca com vinte seguidores e toma conta de um dos maiores impérios do mundo? Foi mais prático do que ideológico, tinha um programa e sabia como se organizar. Enquanto uns estavam no café a discutir a revolução, Lenine foi para o terreno pô-la em prática, como só era capaz de fazer alguém tão obcecado com o poder. Foi um dos indivíduos que fazem a História. Ele teria sempre tido sucesso em alguma coisa e provavelmente seria na política, qualquer que fosse a sua ideologia. Era russo e isso diz mais sobre ele do que o facto de ser marxista.” 
 
Continuando nos livros, passo de Lenine para Estaline, até porque acaba de sair o segundo volume de mais uma biografia, e esta verdadeiramente monumental. Escrita por um académico de Harvard, Stephen Kotkin, é sobre ela o interessante ensaio da New Yorker How Stalin Became Stalinist, que parte de uma ideia que ainda confunde muitos: “how the idealistic Soviet revolutionary came to preside over the bloodiest regime of his time.” Não é fácil sintetizar a resposta, mas uma parte dela está na forma como Estaline sucedeu de forma natural e quase inevitável a Lenine, uma questão para que Kotkin sugere várias resposta, nomeadamente a de que “Stalin was, quite simply, the man most qualified for the job. Trotsky claimed that Stalin was adept at manipulating the bureaucracy, and meant this as an insult. In fact, these were the skills necessary to govern a modern state, and they explain why Stalin had already won so much power while Lenin still lived. Trotsky did not have the talent for the dull work of administration. Even in exile, he was constantly undermining his allies and arguing with his friends. In Kotkin’s unsentimental appraisal, Trotsky was “just not the leader people thought he was, or that Stalin turned out to be.
 
(Pequeno mas importante aparte: ainda hoje muitos têm a ilusão de que, com Trotsky, não teríamos conhecido o terror das perseguições, mas essa é uma ideia que José Milhazes contraria veementemente em A Revolução russa teria um fim diferente se Trotski vencesse Estaline?, um texto saído no Observador onde defende que “As tentativas de branquear Trotski, como as de Francisco Louçã, em nada diferem das de branquear Lenine ou Estaline. Todos viam o futuro da URSS sem democracia e sem as mais elementares liberdades.”)
 

Mas voltemos ao livro de Kotkin já o Financial Times lhe fez uma entrevista –Stephen Kotkin explains how Stalin defined the Soviet system – que pode ser ouvida em podcast aqui. Num texto de apoio a essa conversa referem-se os dois volumes já publicadosdesta nova biografia, havendo também uma exlicação para a forma como Estaline chegou naturalmente ao poder: “Kotkin argues nobody feared Stalin because his despotic tendencies didn’t develop until much later. His personality was perfectly “normal” until the mid-1930s, and would have given no hint of his darker potential. Rather than something inherent in Stalin the man, the despotism, in Kotkin’s view, was a product of the system in which Stalin operated. It was the experience of wielding the power of life and death that changed Stalin from a brutal dictator into a capricious monster.
 
Regressando à biografia de Lenine de Victor Sebestyen, a revista judaica The Tablet analisa-o numa ressenção onde também refere a obra mais recente de Anne Applebaum, ‘Red Famine: Stalin’s War on Ukraine’. Em The Sickening Cost of Lenin’s RevolutionDavid Mikics procura explicar “why a century later the central amorality of the unfulfilled Utopian ideal is still with us”. Até porque só um conjunto muito extraordinário de circunstâncias permitiu a vitória dos bolcheviques em Outubro. Com feiro, “If Lenin had failed to return to Russia from Switzerland, if he had been injured in a street accident, if he had suffered a medical emergency, as would happen within a few years, the Bolshevik takeover would not have occurred. None of the other Bolshevik leaders—neither Stalin, nor Kamenev, nor Zinoviev, nor Trotsky—could have played his role.” 
 
(A The Tablet tem dedicado esta semana muitos artigos à Revolução de Outubro, que reuniu numa página especial, sendo que entre esses trabalhos há um com uma pergunta ainda perturbadora: Why Do American Jews Idealize Soviet Communism? A revista argumenta que isso não tem qualquer racionalidade, até porque a experiência comunista nunca verdadeiramente favoreceu os judeus, mesmo sendo judeus alguns dos seus líderes: “Regarding Jews and Judaism, Soviet Communism forbade the practice of religion and the study of Hebrew. The Jewish section of the Communist Party took the lead in persecuting rabbis and teachers, killing some, sending others to certain death. The Soviets hailed the 1929 Arab massacres of Jews in Palestine as the start of the Arab Communist Revolution and formulated the slogans of anti-Zionism that are the basis of anti-Semitism in America today. Soviet propaganda accused Jews of imperialism in the 1930s and (with the Arabs) of racism in the 1970s. (...) The Soviets used the Jewish anti-Fascist Committee to win American support during the Second World War and then executed its leadership in 1952.”)

 
Já a caminho do fim desta selecção de textos, recupero uma outra entrevista, esta saída no El Pais e que tem como protagonista um dos grandes historiadores da Rússia soviética, Richard Pipes. Para ele “No hubo nada positivo ni grandioso en la Revolución Rusa”, sendo curioso como encontra um fio condutor a ligar a autocracia czarista, a ditadura comunista e o autoritarismo putinista: Los rusos no soportan la debilidad. Les gustan los líderes fuertes. Hay una razón histórica por detrás de todo esto: el Estado ruso no ha sido nunca suficientemente coherente, y la única manera de darle coherencia es mediante la intervención de un líder potente. Todos los héroes de la historia rusa son personalidades fuertes: Iván el Terrible, Pedro el Grande, Alejandro III, Stalin, y ahora Putin, un autócrata que cuenta con la aprobación del 85% de la población.”
 
Noutro texto também no El Pais Santos Juliá reflecte sobre como ilusão comunista tocou tantos em tanto lado, especialmente nos meios intelectuais, onde ocorreu uma cegueira teimosa. Por isso em ¡Qué importan los hechos! recorda como muitos intelectuais procuraram justificar o injustificável. Por exemplo: “Jean Paul Sartre afirma que la violencia comunista era el humanismo proletario, la justicia sumaria de la historia. (...)  Aunque quizá el más tremendo testimonio que nos llega de aquel pasado sea el del humanista Maurice Merleau-Ponty que en su Humanismo y terror, partiendo del supuesto de que los comunistas encarnan la conciencia y los intereses del proletariado, única fuerza revolucionaria, considera que las purgas y los procesos no solo fueron táctica y estratégicamente sabios, sino históricamente justos. Una revolución, escribió Merleau-Ponty, no define el delito según el derecho establecido, sino según el de la sociedad que pretende instaurar. Nikolái Bujarin sufrió en su carne la atrocidad de este principio.”
 
E não houve atrocidade como a do Gulag, algo que António Araújo recordou num longo texto para o Público onde parte da obra de Aleksandr Soljenítsin para rever a mais importante bibliografia referente aos campos soviéticos. Em Gulag, mais um dia de vidaescreve, por exemplo, “Vários testemunhos garantem que as crianças da região de Kolymá [um das regiões onde existiam mais campos] ainda usam crânios humanos para transportar as amoras e os morangos silvestres que apanham na floresta”.
 
Não posso por tudo isto deixar de terminar recuperando um texto da Spectator já com alguns meses, da autoria de outro consagrado historiador, Max Hastings. Trata-se de The centenary of the Russian revolution should be mourned, not celebrated e nele se escreve, por exemplo, que “The 1789 French revolution killed only a few thousand aristocrats and transferred land to peasants, who thus became ardent upholders of property rights. The Russian version required liquidation of the entire governing class and transfer of land to collective ownership, an incomparably more radical proceeding.” Mais: “No modern reader can set down the works of Solzhenitsyn, Robert Conquest, Robert Service or Anne Applebaum without a sense of awe at the cruelties committed in the name of ‘the people’, the cause of Russian communism; cruelties indulged almost to this day by their western defenders. It bears notice that German people under the Nazis, with the exception of Jews, enjoyed much greater personal freedom than did Russians at any time after 1917.”
 
100 anos são 100 anos, e por isso peço perdão por este Macroscópio ainda mais longo do que o habitual, mas estando nós a entrar em mais um fim-de-semana, só posso desejar que ele seja inspirador para boas leituras. Até para a semana.  

 
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