sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Macroscópio – Será que queremos mesmo conhecer toda a verdade?

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

 
Não foi fácil preparar e escrever este Macroscópio. E não foi fácil pois ele é susceptível de perturbar algumas conveniências confortáveis – e a conveniência neste momento mais confortável sobre os escândalos que envolvem a Igreja Católica é que a actuação do Papa Francisco tem sido irrepreensível e as críticas que lhe são dirigidas apenas resultam da guerra entre conservadores e progressistas. Infelizmente as leituras que fiz desde a revelação da carta enviada pelo arcebispo Viganò foram demasiado perturbadoras para não partilhar com os leitores desta newsletter algumas delas. Sem pretensões de ter descoberto a verdade, mas com vontade de conhecer mesmo a verdade. E com dúvidas, muitas dúvidas.
 
Primeiro que tudo refira-se, em abono da verdade, que Portugal ainda não se confrontou com o tipo e dimensão de problemas que se tornaram em enormes escândalos nos Estados Unidos ou na Irlanda, na Bélgica ou no Chile, na Austrália ou na Alemanha. Os abusos cometidos por inúmeros membros do clero, alguns altamente responsáveis, fossem sobre crianças, fossem sobre adolescentes, fossem mesmo sobre jovens adultos, parecer-nos-ão uma realidade longínqua, e talvez por isso seja relativamente fácil “cerrar fileiras”. É isso mesmo que constato lendo a imprensa portuguesa. O cardeal António Marto foi o primeiro a sair em defesa do Papa Francisco, e em termos muito veementes numa entrevista a João Francisco Gomes no Observador: “Há uma campanha organizada pelos ultraconservadores para ferirem de morte o Papa Francisco”. Poucos dias depois também noticiávamos que os Bispos portugueses unem-se em carta de apoio ao Papa Francisco
 
Continuando nas páginas do Observador, dois padres de sensibilidades bem distintas saíram também em defesa de Francisco, Gonçalo Portocarrero de Almada (Papista, graças a Deus!) e Miguel Almeida (Casta Meretrix, onde sublinhou que “O Papa tem recebido o apoio incondicional de inúmeras Conferências Episcopais e os bispos portugueses não foram exceção. Com o seu silêncio, Bergoglio responde de modo exemplar à carta de Viganò.”) Católicos como Henrique Raposo elogiaram (este no Expresso) A calma de Francisco, enquanto Rita Fontoura, no Observador, foi taxativa: Je suis… Católica Apostólica Romana
 
(Sem entrar na discussão da carta de Viganò, mas com importantes esclarecimentos sobre o fenómeno da pedofilia, é importante ouvir a mais recente edição do programa da Antena Um E Deus Criou o Mundo, animado por Henrique Mota, onde é especialmente importante a contribuição da convidada, Dra. Margarida Neto. Também relevante é o texto publicado, ainda antes da carta ser conhecida, por Portal dos Jesuítas, Ponto PJ, e reproduzido no Observador, do padre Bruno Nobre –Abuso sexual: ousar uma cultura eclesial renovada.) 
 
Relativamente à carta que originou a mais recente tempestade, a Cátia Bruno preparou no Observador um Especial onde se dava conta da componente política do caso – Escândalos sexuais e uma guerra de poder dentro do Vaticano. O Papa Francisco enfrenta o seu “momento extraordinário” – e a Marta Leite Ferreira fez um apanhado das reacções da hierarquia da Igreja, “Desilusão” para uns, “puro ódio” para outros. O que dizem os bispos sobre a carta contra o Papa
 
O Arcebispo Viganò

Mas se estes textos dão boas pistas para começar a entrar no que se discute, antes de passar aos textos que nos deixam muito mais perturbados do que relatos sobre mais uma luta pelo poder no Vaticano, admito que muitos leitores conheçam mal, ou muito parcialmente, o que Viganò realmente escreveu. Uma síntese bem feita e bastante completa é a realizada por um dos principais sites de informação católica dos Estados Unidos, o National Catholic Register. Pode lê aqui: Ex-Nuncio Accuses Pope Francis of Failing to Act on McCarrick’s Abuse. E se quiser ler na íntegra as 11 páginas escritas pelo antigo núncio em Washington, pode fazer o download do scribd aqui.
 
Uma das coisas que notei nas minhas pesquisas é que, na imprensa anglo-saxónica, na mais liberal ou na mais conservadora, o tom crítico era pesado e nenhum dos lados saía bem – nem o arcebispo que fez as denúncias, nem o Papa que optou pelo silêncio. Um bom exemplo desse registou é esta peça da The Atlantic, The Power Play Driving the Latest Vatican Crisis, onde se notam as falhas na narrativa de Viganò mas também se reconhece, por exemplo, que este toca numa ferida quando “maps out of what he calls “homosexual networks” that he says are ruining the Vatican and the Church. The allegation may be news to some, but certainly won’t come as a surprise to anyone who’s spent any time at the Vatican. Whether the names Viganò singles out in the Vatican hierarchy are “active homosexuals,” as he alleges, there is no doubt that homosexuality is rampant in the Vatican, in spite of Catholic doctrine forbidding it.” Para além disso, “In addition to highlighting intrigue at the Vatican, the letter also exposes deep fault lines inside the Catholic hierarchy in the United States—what Ross Douthat in the Times has called “the Catholic civil war.”,sendo que que depois da carta aparecer “some U.S. bishops came out in defense of Francis, and others decidedly did not”. 
 
Vale a pena ler o texto do New York Times para que este trabalho remete, aquele em que Ross Douthat se interroga sobre What Did Pope Francis Know? E isso é tanto ou mais importante quanto este jornal costuma apoiar as posições mais progressistas, só que agora nele se escreveu que “The Catholic Church needs leaders who can purge corruption even among their own theological allies. The pope is failing that test.” Há uma enorme massa de informação nesta coluna, que coloca questões realmente incómodas. Por exemplo: “For Pope Francis, who talked a good game about disciplining bishops for covering up sex abuse, hauling a cover-up artist out of retirement for a synod on the family was a statement that ideological loyalties mattered more to him than personal misconduct: Sex abuse might be bad, but what really mattered was being on the correct side of the Catholic civil war.”

O Cardeal McCarrick
 
Esta questão é muito sensível por a figura da hierarquia que está no centro do escândalo, o Cardeal McCarrick, é alguém que fez parte do círculo dos homens de confiança do Papa Francisco, só tendo sido castigado, despromovido e afastado depois de conhecido o devastador relatório da Pensilvânia, onde se relatam dezenas de anos de abusos e se revela o comportamento predador daquele dignitário da Igreja. É de ficar com o estômago às voltas ler o relato da forma como actuava nesta peça do New York Times: He Preyed on Men Who Wanted to Be Priests. Then He Became a Cardinal. É nesse texto que também se recorda que, apesar deste seu comportamento, ele teve um importante papel na elaboração do documento de 2002 dos bispos norte-americanos que visava acabar com os abusos e com a protecção dos abusadores – a “Charter for the Protection of Children and Young People,” –, um documento que tem a particularidade de ter regras para os padres mas omitir o que fazer no caso de os abusadores serem bispos. 
 
Neste quadro é mais compreensível que a imprensa americana tenha, de uma forma geral, condenado a opção pelo silêncio do Santo Padre. Dois exemplos, sendo o primeiro de um jornal generalista, o Wall Street Journal, que no editorial Pope Francis in the Dock escreveu que esta “did not help himself when asked about the charges on his way home from Ireland on Sunday, saying he would neither confirm nor deny the allegations. More encouraging was the reaction from the president of the U.S. Conference of Catholic Bishops, Cardinal Daniel DiNardo. Far from dismissing Archbishop Viganò, he asked for a Vatican investigation and issued a statement saying “the questions raised deserve answers that are conclusive and based on evidence.” O segundo é de um site católico, First Things, onde um pároco de Nova Iorque, Gerald E. Murray, procurou explicar Why Francis Must Speak,considerando que a opção do Vaticano de ignorar os críticos, não sendo nova, não é recomendável: “Will the Viganò memo meet the same fate as the five Dubia on Amoris Laetitia submitted by Cardinal Burke et al.? For the good of the Church, the faithful must not let that happen. Francis should not be shown the misplaced charity of silence in response to his silence. Recall that Juan Barros would still be the bishop of Osorno, Chile, if the laity in particular had not kept insisting on the need to answer the question.
 
E aqui toca-se noutro ponto sensível: a forma desastrosa como o Papa Francisco lidou com um problema de abusos no Chile, que começou por negar para depois ter de reconhecer face à revolta dos fiéis. Só que esta não foi a única vez em que surgiram dúvidas sobre aquilo que Francisco sabia e a forma como isso se combinava com as suas escolhas para lugares de confiança. Nos textos que referirei a seguir há mais casos, uns mais conhecidos do que outros. Sandro Magister, um colunista do Corriere de la Sera que mantém uma coluna, Settimo Cielo, extremamente crítica deste Papa, recorda em Francis the Backslider. He Didn't Just Cover Up For McCarrick uma outra escolha de Francisco que sempre causou desconforto: “There is another one that looks like its exact twin. It concerns Monsignor Battista Ricca (...), whom he promoted on June 15, 2013, at the beginning of his pontificate, as prelate of the IOR, meaning the pope’s contact at the Vatican “bank,”  Ora sucede que o passado gay deste prelado é um dos segredos mais públicos do Vaticano. Por exemplo: “In Montevideo, between 1999 and 2001, Ricca cohabited with his lover, former Swiss army captain Patrick Haari, who had followed him there from Bern. And he also frequented cruising spots with young men, getting beaten up one time and another getting stuck in an elevator at the nunciature with an eighteen-year-old already known to the Uruguayan police.”

 
Mas se não devemos esquecer que este texto é o de um crítico frontal do Papa, já a leitura do trabalho de Damian Thompson para a Spectator, What has Pope Francis covered up?, não parece padecer do mesmo mal, até porque não poupa os antecessores de Francisco – “Popes John Paul II and Benedict XVI are also implicated; they did nothing, or almost nothing, while Mc-Carrick was seducing every seminarian he could get his hands on.” É um texto longo, com muitos factos, onde se reconhece que tendo havido uma evolução positiva na forma como a Igreja dos Estados Unidos tem vindo a abordar estes abusos, continua a haver a tais falhas comprometedores: “Since the US bishops issued new guidelines in Dallas in 2002, the incidence of abuse has fallen sharply. But there’s a catch. Bishops were exempted from the so-called Dallas Charter. Which was convenient for its author: Cardinal McCarrick — or ‘Uncle Ted’, as he invited his victims to call him as he groped them in his beach house.” Thompson não pode por isso compreender a reacção de quem sucedeu a McCarrick: “Cardinal Donald Wuerl, the current Archbishop of Washington, says he knew nothing of his predecessor’s serial abuse. That’s odd, given that even his janitor could have told him.” Sem tomar a defesa de Viganò – “His testimony has its contradictions and hyperbole” – também ele condena o silêncio papal: “When, on his flight back from Ireland, the Pope was given the chance to deny that Viganò told him about McCarrick, he refused to comment. As a result, Catholics don’t know whether the Vicar of Christ willingly revived the career of a sexual predator.”
 
Mas a grande questão que Damian Thompson deixa à nossa reflexão é também a mais incómoda: “Liberal Catholicism, for now, appears to have been hijacked by ‘Francisism’, a cult-like devotion to this pontiff that absolves him of all his sins, rather as he absolves those of his allies.” Porventura mesmo mais incómoda do a que aborda num outro texto também na Spectator, If Pope Francis resigns it could tear the Catholic Church apart, mesmo sendo dura a sua conclusão: “Medieval analogies notwithstanding, there is no precedent for the escalating chaos in the Catholic Church. And the individual chiefly responsible for that – whatever his degree of culpability in the case of McCarrick, and bearing in mind the failings of previous popes – is Francis.”
 
É por isso que deixei para o fim o texto de Michael Brendan Doughert na National Review, Catholic Bishops Beg for a Clear Policy against Evil.Igualmente cheio de detalhes sobre os bastidores destas batalhas e escândalos, considera que os “American bishops are now facing questions about what they knew and when have had to choose between looking clueless or complicit. So far, they are choosing the former. They are not, however, very persuasive in presenting themselves as ignorant of the rumors.” E esses rumores exigem esclarecimentos, sendo que o autor tem pouca esperança que eles sejam dados: “I don’t expect answers to these questions. But as a Catholic, I would find it satisfying to at least watch these men squirm or sweat while they lie to us, rather than delivering their lines in great comfort and an atmosphere of deference.”
 
É muito mais o que não sabemos do que aquilo que já foi tornado público e das respostas que foram dadas. Pelo que regresso ao meu ponto de partida: era mais confortável ver em tudo isto apenas o lado sujo de uma luta pelo poder na Igreja Católica, mas eu não sou capaz de me ficar pelo maniqueísmo dos “bons” e dos “maus” que há em todos os ambientes cheios de teorias da conspiração. Demasiada gente – demasiadas crianças e jovens – sofreram demasiado tempo para que a nossa exigência de conhecimento de toda verdade seja condicionada pelo lado de que se possa estar na tal “guerra civil” que há quem diga que se vive na Igreja Católica. 
 
Peço desculpa se vos desinquietei o fim-de-semana, mas não deixo por isso de vos desejar como sempre bom descanso, boas leituras e todo o espírito crítico. 

 
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