Hoje foi um dia bonançoso na política portuguesa, com um novo Presidente da República a tomar posse num clima de aparente concórdia. Sabemos todos que as coisas não estão muito fáceis – basta ler o trabalho do Nuno Martins no Observador sobre como o Plano B do Governo foi sempre Plano A em Bruxelas, ou ainda gelar quando uma coluna de mercados do influente Wall Street Journal começa com a frase “Lisbon, we have a problem” (resumo em português aqui) – mas soube bem esta pausa. No entanto, sem a querer estragar, vou dedicar este Macroscópio à tempestade que está a formar-se do outro lado da Europa, e nos pode cair em cima.
O meu ponto de partida desta vez é uma interessante entrevista de Viriato Soromenho Marques ao jornal I: “Só um milagre poderá salvar a Europa”. O professor universitário é um federalista de sempre, mas isso não o impede de estar muito pessimista sobre o rumo da União Europeia e de identificar os sinais de borrasca que se acumulam no horizonte (crise bancária, crise financeira, crise dos refugiados, Brexit…), traçando um diagnóstico em tintas carregadas: “Qualquer crise europeia vai ser sempre uma crise mundial. A Europa continua a ser a principal ameaça à estabilidade mundial, como em 1914 e em 1939. Não é o Daesh, não é a China. Nós somos o centro do furacão. Se a União Europeia se desmoronar as ondas sísmicas vão sentir-se em todo o mundo.” E o pior, na sua opinião, é que “Se cada um destes problemas fosse o único que a Europa tivesse já seria grande. Mas tudo isto é muito difícil. Só um milagre é que nos poderá salvar, qualquer coisa de inesperado.”
Esta semana realizou-se uma cimeira europeia com a Turquiapara tentar um acordo que permita enfrentar a crise dos refugiados, mas antes de irmos a ela tenho de passar pelo surpreende retrato que a alemã Der Spiegel faz do que se está a passar no seu país: Third Republic: Germany Enters a Dangerous New Political Era. Trata-se de um ensaio de Dirk Kurbjuweit onde o jornalista e comentador aborda uma realidade tão inesperada como inquietante:
Seven or eight months ago, Germany was a different country than it is today. There were no controversial political issues demanding immediate action and Chancellor Angela Merkel's leadership was uncontested. It was quiet and comfortable. But then the refugees began streaming into Europe and the country's sleepy tranquility came to a sudden end. Since then, disgusting eruptions of xenophobia have come in quick succession, a right-wing populist party is on its way to holding seats in several state parliaments, Merkel has gained approval from the center-left Social Democrats and from the Greens, some conservatives want to throw her out and the state is overwhelmed. Does anyone know what is happening? What is wrong with this country?
De facto quem sabe o que está a acontecer? Que surpresas nos reservarão os meses mais quentes do ano, quando voltar a ser fácil arriscar cruzar de barco o Mediterrâneo? O fluxo parece não ter fim, como se escreve em The scale of Europe’s migration crisis, um trabalho do Financial Times que vale sobretudo pelos números que apresenta e nos permitem ter uma ideia mais clara do que está em causa. Neste país onde receber 64 refugiados deu direito à presença de um ministro, uma secretária de Estado e uma mão cheia de altos funcionários imagina-se mal que “Data compiled by Eurostat show that a record 1.3m asylum seekers registered in the EU last year, up from just over 562,680 in 2014. Nearly 30 per cent came from Syria.”
Mas se estes são os números para os refugiados, não devemos esquecer que há também milhões que procuram apenas (como se “apenas” fosse apenas…) uma vida melhor. E se alguns países começam de novo a fechar fronteiras ou a declarar o estado de crise, outros debatem-se com sentimentos contraditórios, casa da Albânia, como conta a Economist em Refugees may start to cross over Albania. De facto como pode um país de emigrantes e poucos recursos lidar com migrantes vindos de outras parte do mundo, ainda mais pobres?
Para nós isto passa-se lá longe, do outro lado da Europa, por isso pouca atenção temos dado ao facto de, por exemplo, a necessidade de lidar com esta crise estar a levar a União Europeia e os seus líderes a contemporizar com uma Turquia onde Erdogan dá crescentes sinais de autoritarismo. Isso mesmo preocupa David Gardner, do Financial Times, que em Desperate Europe tiptoes around Turkey to clinch refugee deal nos chama a atenção para uma realidade preocupante: “President Erdogan chose this moment, right after talks with Donald Tusk, president of the EU Council, to show Europeans how much he respects the freedoms underpinning their union. While he opened with great fanfare a third bridge across the Bosphorus, physically linking Europe and Asia, his courts effectively closed the best-selling Zaman newspapers, one of the last media groups outside government control. Police violently dispersed protesters outside Zaman’s offices. Freedom of assembly is as constricted as freedom of expression in Mr Erdogan’s Turkey, and he seems happy to exhibit it.”
Mas há mais. A crise dos refugiados é apenas uma das mais recentes manifestações do tipo de choques a que estamos submetidos num mundo globalizado – isto quando, se calhar, os nossos sistemas políticos e as nossas democracias ainda estão apetrechadas para lidar com esse mundo globalizado. Dani Rodrik, professor na John F. Kennedy School of Government de Harvard, alerta para isso mesmo num artigo do Project Syndicate, The Politics of Anger. Eis como começa esse seu texto: “Perhaps the only surprising thing about the populist backlash that has overwhelmed the politics of many advanced democracies is that it has taken so long. Even two decades ago, it was easy to predict that mainstream politicians’ unwillingness to offer remedies for the insecurities and inequalities of our hyper-globalized age would create political space for demagogues with easy solutions. Back then, it was Ross Perot and Patrick Buchanan; today it is Donald Trump, Marine Le Pen, and sundry others. History never quite repeats itself, but its lessons are important nonetheless. We should recall that the first era of globalization, which reached its peak in the decades before World War I, eventually produced an even more severe political backlash.”
O período a que Rodrik se refere é o período entre guerras, um tempo que curiosamente também era recordado hoje, a propósito de um desses demagogos – Donald Trump – pelo colunista do Wall Street Journal Bret Stephens. Em The Return of the 1930s ele recorria à descrição do estilo de Mussolini feita pelo historiador inglês Piers Brendon num livro especialmente inspirador sobre essa década, “The Dark Valley”, para mostrar como ela assenta que nem uma luva em Donald Trump. Mesmo acrescentando: “So does this mean that Donald Trump is the second coming of Il Duce, or that yesteryear’s Fascists are today’s Trumpkins? Not exactly. But that doesn’t mean we should be indifferent to the parallels with the last dark age of Western politics.”
Vivemos sem dúvida tempos interessantes, porque perigosos. Daí que, mesmo neste dia de aparente bonança doméstica, tenha optado por um Macroscópio que nos ajuda a pensar sobre a tempestade que pode vir aí. Não fiquem deprimidos, fiquem antes prevenidos.
Bom descanso e até amanhã.
PS. Gravei hoje, com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, a 50ª edição do Conversas à Quinta. Desta vez estivemos a falar de “Alentejo Prometido”, o livro da polémica escrito por Henrique Raposo. Todos o tínhamos já lido (o que quase todos os que já falaram sobre não fizeram), pelo que a conversa não só foi informada, como inesperada e, até, desafiante. O vídeo está aqui e o podcast pode ser descarregado aqui.
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