sexta-feira, 11 de março de 2016

Macroscópio – O Brasil antes de um domingo de alta tensão

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Devíamos dar mais atenção ao Brasil. E não apenas por ser o maior país de língua portuguesa. Na realidade o Brasil pareceu ser, há meia dúzia de anos, o país de todas as esperanças, a potência em ascensão, o líder dos BRICs, a nação que encontrara a fórmula mágica para casar crescimento económico com políticas sociais de enorme alcance. Hoje dir-se-ia que vive o pior pesadelo. Pesadelo económico: o “milagre” acabou, a recessão em 2015 foi a maior dos últimos 25 anos. E pesadelo político: os escândalos de corrupção chegaram ao topo do poder e à mais emblemática figura do Brasil do século XXI, Lula da Silva. É tempo pois de dedicar um Macroscópio ao que se passa naquele garnde país.

Rapidamente, um ponto da situação, com a ajuda do trabalho que o Observador tem vindo a fazer. A notícia-choque das últimas horas é o pedido, pelo Ministério Público, da prisão preventiva do antigo Presidente-operário. E a reacção violentadeste e do seu advogado. Tudo isto depois das buscas em casa de Lula e da notícia de que Dilma o poderia chamar para o Governopara o colocar ao abrigo da Justiça.



Rapidamente também recordar que o Observador fez um Explicador mal esta catadupa de notícias começou a ser conhecida: Lula é corrupto? 11 perguntas para entender o caso. Mas claro que a imprensa brasileira é mais exaustiva, sendo que uma boa síntese do que está em causa pode ser apreciada numa infografia do Globo (que reproduzo acima e que pode ser consultada aqui As suspeitas que pairam sobre Lula).

A pergunta que muitos farão é como se chegou aqui. E haverá duas respostas: a crise económica e a corrupção endémica. Para ajudar a compreender a primeira vou socorrer-me sobretudo das sínteses da imprensa anglo-saxónica, até porque se dá o caso de um dos mais influentes colunistas europeus ter estado recentemente no Brasil. Refiro-me a Ambrose Evans-Pritchard, do Telegraph, cujos três artigos merecem ser lidos. Vamos lá então ver porquê.

Em Brazil's ruling party aims to tap foreign reserves as policy fight escalates, AEP nota que “Rui Falcão, the PT’s president, personally drafted the crisis document known as the National Emergency Plan. He reportedly has the backing of former president Lula, Luiz Inacio da Silva. It calls for a draw-down on the country’s $371bn foreign reserves to finance a development and jobs fund, as well as demanding a sharp cut in interest rates, a move that would effectively strip the central bank of its independence. The 16 proposals together mark a dramatic shift back to the party’s Marxist roots and a rejection of its free-market concordat over recent years. While investors might be willing to accept use of the reserves to back up a stabilisation policy and radical reform, they would be horrified if it was used to finance a last-ditch populist agenda.”

Num artigo publicado quase à mesma hora, AEP tirava conclusões: Only the IMF can now save Brazil. Porquê? Porque “Almost nothing credible is being done to stop the debt trajectory spinning into orbit. Few believe that the ruling Workers Party is either capable or willing to take the drastic austerity measures needed to break out of the policy trap, or that it would suffice at this late stage even if they tried.”

No último artigo desta série, AEP faz uma leitura mais global das consequências da descida do Brasil aos infernos: Downfall of Brazil’s Lula marks end of Brics fantasy. Uma fantasia de que o próprio Brasil está a cordar dolorosamente: “As Brazil hits bottom, it is left with a budget deficit of 10pc of GDP, inflation of 11pc, and the highest real borrowing costs in the G20. Fixed investment collapsed at an 18pc rate last quarter. The country is caught in a policy trap. Interest payments make up so much of the budget that any monetary tightening risks making the deficit worse. “All the macro parameters indicate a vicious circle of self-perpetuating misery. The policy scope is non-existent,” said Dev Ashish, from Societe Generale. Swift regime change might break that vicious cycle. Sadly for long-suffering Brazilians, they are just as likely to endure a long and destructive political siege.”

Para completar esta minha ronda pela imprensa de língua inglesa, uma referência indispensável: a leitura de Mary Anastasia O’Grady, a especialista em América Latina do Wall Street Journal que tenta explicar-nos What Really Sank Brazil. Muitos pensam que a crise é, como noutros países produtores de petróleo, uma consequência da queda dos preços do crude. A sua tese é diferente, pois o Brasil é uma economia com uma outra dimensão – o problema é, na sua opinião, anos de políticas que não favoreceram o crescimento. Por exemplo: “Since the 1960s Brazil has pursued industrialization through high levels of protectionism and subsidies for domestic producers. The failure of that strategy is manifest. But letting uncompetitive businesses fail had political costs that Mr. da Silva and his successor, President Dilma Rousseff, weren’t willing to pay. Instead they increased protectionism and subsidies, and rapidly expanded credit through the Brazilian Development Bank (BNDES) and other state-owned banks. They also financed large government deficits with mostly domestic borrowing. The deficits were exacerbated by the tripling of the civil service during the PT governments and unjustified increases in the minimum wage and welfare and retirement benefits.”

Mas uma coisa é a crise económica, outra os elevados níveis de corrupção. E a  percepção de que esta chegou aos escalões mais altos do poder. Esse temas já foi analisado por dois colunistas do Observador, Maria João Avillez e João Marques de Almeida. Este último escreveu em Lula: a queda de um herói que “Independentemente das culpas individuais e das condenações, matérias que competem aos tribunais, é evidente que os governos do PT utilizaram dinheiros públicos para benefícios próprios e para o partido consolidar o seu poder. Os anos do PT no governo demonstram como o “capitalismo de Estado” beneficia muito mais quem está no poder do que a população e os cidadãos. Foi o que aconteceu no Brasil. O poder do PT não se limitava a regular a economia. Intervinha, controlava e decidia quem seriam os famosos “campeões nacionais” do mercado brasileiro. Como se nota, esse imenso poder traz vantagens financeiras.”

Já Maria João Avillez, que esta semana escreveu a partir do Brasil, relatou-nos a tensão política ao vivo em Lula ultrapassou Zika. Um dos pontos que lhe chamou mais a atenção foi a coragem e determinação do homem que tem liderado a investigação destes casos de corrupção, Sérgio Moro: “De outra geração, sobretudo de outra escola (viveu fora do Brasil, tem experiência internacional), Sérgio Moro possui boa formação intelectual e cívica, ainda não tem cinquenta anos, rodeia-se de colaboradores parecidos consigo. E não tem medo, apesar de “nem no banheiro ele ir sozinho” como se aqui se diz. Passou a viver “guardadíssimo” tal os, julgo que irreversíveis, “estragos” que vem fazendo naquilo que, digamos, era o habitual uso do poder de parte da classe política brasileira.”

Sendo que, acrescenta Maria João, “o duelo que opõe a operação Lava Jato e a teia lulista que, por todos os métodos e meios, tenta obstruir-lhe a passagem para a luz do dia, está para durar, impiedoso e feroz, de parte a parte.”

Antes de irmos ao Brasil para as reacções de última hora aos desenvolvimentos mais recentes, referência ainda para a análise de um dos jornalistas portugueses que segue com mais atenção a realidade brasileira, Manuel Carvalho, que no Público, emSamba de um país encurralado, não tem meias medidas: “Mergulhado num pântano moral e embrulhado numa crise política que afunda a economia, o Brasil vive o seu pior drama de décadas. Os protestos para a destituição da Presidente reacendem-se, a ingovernabilidade está no ar e o arco da corrupção alarga-se. Os brasileiros precisam de um divã para entender”. Interessante é a sua nota como tudo isto parece ter feito o país do PT retroceder quase 30 anos: “João Vaccari Neto, secretário das Finanças do PT, está preso; Delcídio do Amaral, senador do PT, também; João Santana, o poderoso “marqueteiro” do PT, foi detido no dia 23 de Fevereiro por suspeitas de ter recebido ilegalmente três milhões de dólares da mesma construtora. Uma sondagem recente indicava que só 12% dos brasileiros se dizem simpatizantes do partido: o mesmo valor de 1988, quando Lula era o “sapo barbudo”, um projecto de líder político limitado ao proletariado paulista. E neste acentuar de denúncias, de suspeitas e de prisões, a base de legitimidade de Dilma e do PT vai-se perdendo.”



Este fim-de-semana essa base de legitimidade vai ter de passar pela prova das ruas, com manifestações de sinal contrário a serem convocadas para dezenas de cidades um pouco por todo o país. A temperatura política sobe, pelo que vale a pena dar uma olhada em algumas das mais recentes colunas de opinião da imprensa brasileira. Eis uma brevíssima e muito aleatória selecção:
  • Clóvis Rossi, com uma posição mais neutra, na Folha de São Paulo, em Vai haver golpe?: “Se por golpe se entender o afastamento da presidente da República pelos meios constitucionais há, sim, uma enorme possibilidade de que haja golpe no Brasil, mais cedo que tarde. O fato, cada vez mais evidente, é que o que os argentinos adoram chamar de "poderes fácticos" abandonaram Dilma Rousseff (ou nunca a adotaram). "Poderes fácticos" são, antes e acima de tudo, os agentes de mercado, financeiro ou produtivo. Mas são também a mídia (televisão mais que qualquer outro meio), o mundo político, menos influente do que se pensa, e as instituições da sociedade organizada, ainda menos influentes, até porque são pouco organizadas. As que se dizem contra o "golpe" são também contra a política de Dilma.”
  • Luis Fernando Verissimo, crítico da acção da polícia no caso de Lula da Silva, no Estado de São Paulo, em A intenção do carnaval: “Ninguém está imune a ela [a Lei e a Justiça], de acordo, mas a biografia de alguém deveria valer alguma coisa ao se avaliar sua posição, acima ou abaixo da lei. Para ficar só nos ex-presidentes: o Fernando Henrique Cardoso, pelo seu histórico de intelectual engajado e homem público – não importa o que você pensa do governo dele – não merece ver sua vida privada transformada numa novela das 9 e ter que dar explicações sobre um assunto que é só da conta dele e da família dele. Da mesma forma, o Lula, pelo sua história, pelo que ele representa, deveria ter outras considerações além da pequena regalia de não precisar usar algemas.”
  • Reinaldo Azevedo, que há muito critica o poder pêtista, na Veja, em Nem o pior adversário do PT imaginaria fim tão melancólico: “As versões variam pouco, com algumas coincidências. Segundo uma delas, Dilma convidou Lula para ocupar um ministério, mas ele teria recusado. Segundo a outra, ele vai usar este fim de semana para pensar. O que há de inequívoco nas duas? Aquilo que muitos tratavam de forma jocosa, como o limite rumo à impossibilidade, aconteceu: a ainda presidente realmente fez o convite. E ele até poderia escolher a pasta. Bem, faz sentido! Na prática, ele já escolheu a cadeira dela. A coisa é escandalosa até para os padrões petistas. Mas não deixa de ter a sua graça: a presidente prestes a ser impichada formaliza a posição de Lula, que hoje já comanda o governo, entronizando-o como o rei do Brasil.”
Em tempos o grande escritor judeu-austríaco Stefan Zweig, fugido do nazismo e refugiado na cidade brasileira de Petrópolis, escreveu um livro que fez sonhar: Brasil, País do Futuro. Depois de anos em que o sonho pareceu ganhar asas, o futuro teima de novo em não chegar. Mas fiquemos atentos. Nomeadamente a perceber “que” Brasil desfilará nas ruas este fim-de-semana.

Entretanto, tenham bom descanso, aproveitem a melhoria anunciada do tempo, vão seguindo a actualidade no Observadore, já sabem, contem comigo de volta na segunda-feira. Até lá.

PS. Comecei este Macroscópio dizendo que devíamos dar mais atenção ao Brasil. A verdade é que, entretanto, o Brasil não liga nada a Portugal. Dizem-me de lá que saída de Cavaco Silva e a entrada de Marcelo Rebelo de Sousa não mereceu uma notícia, mesmo de rodapé, em nenhum dos grandes jornais brasileiros. Sinal dos tempos…

 
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