segunda-feira, 3 de junho de 2019

SOCIEDADE | Os doentes ressuscitados do Hospital de São João: quem morre, pode salvar


Christiana Martins

02.06.2019 às 16h40

Quando o ECMO, máquina que consegue substituir o coração e os pulmões, não recupera um doente, pode ajudar outro. Decretado o óbito, liga-se a máquina e tiram-se os órgãos.


Na passagem do ano de 2016 para 2017 foi feita a primeira recolha de rins no São João de um doente em paragem cardiocirculatória não programada (quando a paragem cardíaca é inesperada, habitualmente fora do hospital). Foi decretado o óbito e o doente ligado ao ECMO - a máquina que substitui o coração e os pulmões - para manter a circulação e os órgãos poderem ser recolhidos em melhor estado. O procedimento entrou na rotina do centro, mas Roberto Roncon, o coordenador, não se dá por satisfeito e quer avançar para o transplante de pulmões e para a recolha de órgãos de doentes em paragem cardiocirculatória programada (quando a paragem é prevista e ocorre no hospital, normalmente com doentes com hemorragias cerebrais catastróficas que não evoluem para morte cerebral mas que não recuperam a consciência). Não há data para os próximos passos e, até lá, é com o transplante de rins que a “tropa” — como Roncon define a equipa — continuará a mudar vidas.

Como a de Carlos Freitas, que desde 2013 passou mais de quatro mil horas sentado a filtrar o sangue. Com uma doença poliquística hereditária, o eletricista de 55 anos fazia diálise três vezes por semana. Uma rotina pesada até que, em janeiro do ano passado, Carlos foi chamado ao São João para receber um novo rim. Uma mulher de 67 anos entrara em paragem cardiocirculatória e foi ligada ao ECMO, permitindo que duas pessoas beneficiassem dos seus rins. Carlos teve então oportunidade para mudar de vida: “Voltei a ser dono do meu tempo.”

A extração de órgãos só pode acontecer em Portugal de dadores vivos, em morte cerebral e em paragem cardiocirculatória não programada. No entanto, o número de órgãos colhidos é insuficiente para responder às necessidades crescentes, sobretudo porque diminuíram os óbitos de origem traumática, como os acidentes de viação. Os especialistas reconhecem que é preciso encontrar alternativas. Um despacho de 2017 do então secretário de Estado-adjunto e da Saúde, Fernando Araújo, afirma que “um programa nacional de colheita de órgãos em dadores em paragem cardiocirculatória é um objetivo fundamental para melhorar a resposta às necessidades dos doentes que carecem de um transplante”.

O documento cita a experiência do São João e refere que “tendo sido previsto inicialmente oito casos por ano de dadores em paragem cardiocirculatória, registaram-se 27 casos de potenciais dadores” e que “encontrando-se prevista a colheita inicial de 16 rins por ano, registou-se a colheita de 44”. E dos 13 transplantes previstos, ocorreram 30. Com os olhos nestes resultados, a experiência do Porto foi exportada para Lisboa (para os centros hospitalares Lisboa Norte e Lisboa Central).

Questionado pelo Expresso sobre o alargamento do programa de recolha de órgãos aos pulmões, o conselho diretivo do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) explica que “a menor qualidade de alguns órgãos traduz-se em limitações na sua utilização para transplantação” e que “a experiência de menos de três anos [do São João] poderá vir a permitir que a colheita seja alargada no futuro a outros órgãos”. Quando? O IPST não é claro: “Todos os processos melhoram com a experiência e este caso não será diferente.” Mais distante ainda parece estar a possibilidade de recorrer à paragem cardiocirculatória programada, que, para ser adotada em Portugal, exige, primeiro, uma alteração legislativa.


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