- Plinio Maria Solimeo
Nenhuma outra nação do Ocidente, teve um poeta épico que cantasse com tanto talento e profundidade suas glórias como Camões cantou as de Portugal. Com muito fogo, propriedade e senso poético, ele canta os grandes feitos marítimos e militares de sua pequena nação nos séculos XV e XVI, que maravilharam o mundo de então. “Cesse do sábio grego e do troiano, as navegações grandes que fizeram; cale-se de Alexandro e de Trajano, a fama das vitórias que tiveram; que eu canto o peito ilustre lusitano, a quem Netuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta”, afirma ele, com orgulhosa ousadia, em seu imortal Lusíadas.
Faltava, porém, alguém que cantasse os mesmos feitos em prosa, com riqueza de detalhes, alicerçados em documentos da época.
Fê-lo no século XX uma historiadora inglesa de origem francesa, Elaine Sanceau, que de modo surpreendente preencheu essa lacuna.
Quem teve a ventura de ler seus empolgantes livros sobre a epopeia dos nossos irmãos portugueses em seus séculos de glória, pode-se julgar afortunado. Pois neles ela descreve, com riqueza de detalhes e muita admiração, a incrível saga de uma pequena nação que descobriu mundos e fundou impérios, tornando-se a maior potência econômica de seu tempo.
Elaine Sanceau [foto ao lado] nasceu em Croydon, um dos maiores distritos comerciais fora do centro da Região de Londres, no ano de 1896, e faleceu em Leça do Balio, perto do Porto (Portugal), a 23 de dezembro de 1978.
Em sua infância estudou em Montreux, na Suíça, mudando-se depois com a família para o Brasil. Segundo o blog Torre da História Ibérica, “foi aí, em Terras de Vera Cruz, que Elaine Sanceau contactou, pela primeira vez, com a História de Portugal e, muito particularmente, com o período quinhentista, que desde logo lhe aguçou o interesse e lhe despertou o espírito de investigação”.
Isso de tal maneira, que em 1931 resolveu mudar-se para Portugal, a fim de aprofundar suas pesquisas históricas visitando as ricas fontes a seu dispor naquele país. Continua o citado blog: “Deste seu notável labor, resultaram obras que aliam uma extrema simplicidade de linguagem a um rigor histórico, que as tornam fontes de informação da maior confiança”. Pois, “nunca escreveu uma palavra ou uma frase sobre um monarca, um príncipe, um vice-rei, um marinheiro, um mercador, um soldado ou um capitão, sem que um prévio e exaustivo trabalho de investigação, de estudo e de análise, se realizasse nos arquivos portugueses — especialmente na Torre do Tombo e no Arquivo Histórico Ultramarino — com a ajuda de dedicados paleógrafos que punham o seu saber e conhecimento das letras quinhentistas e seiscentistas ao serviço da escritora”.
Por sua contribuição e empenho em divulgar em seus livros os feitos de Portugal, recebeu no país várias dignidades. Entre elas, tornou-se oficial da Ordem de Santiago da Espada e da Ordem do Infante D. Henrique, membro do Instituto de Coimbra e do Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, bem como sócia correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa.
“Todos os livros de Elaine Sanceau foram primeiramente redigidos na sua língua materna (o inglês), mas os seus excelentes conhecimentos de português tornaram-na uma crítica severa das traduções que as suas obras recebiam dos colaboradores portugueses” — comenta Torre da Histórica Ibérica.
Historiadora fecunda, de sua incansável pena saíram 38 volumosos estudos, 28 dos quais sobre o tempo que nos ocupa, incluindo vários sobre os portugueses no Brasil, entre eles Capitães do Brasil, e Os portugueses no Brasil.
Depois de uma profunda e exaustiva pesquisa, Elaine publicou seu primeiro grande estudo, Indies Adventures. The Amazing Career of Afonso de Albuquerque, que na tradução portuguesa tomou o título de Afonso de Albuquerque – O Sonho da Índia. Essa biografia do grande batalhador que por sua grande fama recebeu vários cognomes — o Grande, o César do Oriente, o Leão dos Mares, o Terribil e o Marte Português — é considerada por muitos como a obra-mestra da grande historiadora.
Sendo esse seu primeiro livro sobre o tema, em sua Introdução Elaine Sanceau descreve em rápidos traços o que a grande aventura portuguesa representou para a História e para o mundo:
“A expansão portuguesa de além-mar é fenômeno inexplicável à face da História. O desejo de expansão supõe falta de espaço, e os portugueses tinham mais do que o bastante na sua linda pátria pequenina; a população era muito a inferior a dois milhões. […] A razão por que havia este povo de sentir-se instigado a espalhar-se pelo mundo desconhecido, depois de ter alcançado a paz pela vitória sobre seus vizinhos (espanhóis e muçulmanos), é enigma indecifrável. ‘O reino está muito pobre e minguado de gente para guarnecer as terras de além-mar. Seria impossível conservá-las!’. Assim dizia o sábio infante D. Pedro em 1436, quando se premeditava a conquista de Tanger. Não se pode negar que fossem sensatas estas palavras. Todavia, menos de um século depois, sem qualquer auxílio de homens ou de dinheiro estranhos, Portugal estava senhor, não só de todas as cidades importantes de Marrocos, mas também de territórios em toda a costa da África, e impunha a sua vontade a metade dos reis da Ásia”.
Sanceau pondera com razão: “Não é de admirar que esta grandeza não fosse duradoura. Maravilha é que tenha existido. Para que um país, com os recursos de Portugal, pudesse conservar as suas conquistas, seria indispensável uma raça de heróis e o gênio que os dirigisse. A cópia de heróis não sofreu interrupção, mas o gênio não é hereditário. Houve, certamente, inúmeros grandes homens. […] o domínio português, para além dos mares, foi inaugurado e estabelecido por dois espíritos superiores que muito sobrelevam à sua geração: o infante D. Henrique, o Navegador foi a força que impeliu a nação a explorar o Atlântico desconhecido, a rasgar os mistérios do Globo terrestre, lançando-a assim no caminho da Índia. E o grande Afonso de Albuquerque [quadro acima] assentou os alicerces do Império do Oriente”.
Antes de falar desse extraordinário líder e forjador de reinos e impérios, julgamos oportuno ver como Elaine Sanceau desfaz a legenda negra com que os inimigos da religião tentaram menoscabar o motivo religioso que estava na arrière pensée e orientava os grandes desbravadores e descobridores ibéricos quinhentistas.
Escreve ela: “Há quem tenha explicado a ação dos portugueses no Oriente como simples corrida atrás do lucro. Foi muito mais do que isso: foi a última Cruzada, ato de defesa da Europa contra a ameaça muçulmana […]. É certo que Portugal pretendia apoderar-se do comércio das especiarias e aproveitá-lo em seu benefício. Mas onde está o governo, moderno ou medieval, que alguma vez seguisse política absolutamente desinteressada? […] É fato incontestável que se não tratava apenas de uma simples experiência comercial; os maiores dos seus capitães eram cruzados sinceros, e o seu ideal distante a libertação de Jerusalém. […] a cruz rubra de uma Ordem Militar figurava nas velas que, ano a ano, transportavam para além-mar os varões da Nação”.
Pois nossa santíssima religião estava tão entranhada na alma desses portugueses, que a primeira coisa que faziam nas terras conquistadas era transformar os lugares de culto pagão em igrejas. E se isso não era possível, uma de suas primeiras preocupações era construí-las. Em todo o linguajar, mesmo nas interjeições que esses guerreiros soltavam no ardor da batalha, estavam os dulcíssimos Nomes de Jesus, de Maria, ou de algum santo, que também davam nomes a quase todas as caravelas com que cruzavam os mares: Santa Maria, Santiago, Espírito Santo, São Cristóvão… E nelas, junto aos soldados e tripulantes, iam sempre sacerdotes, não só para ministrar os sacramentos aos navegantes, mas também para eventualmente levar o dom precioso da fé às terras a se descobrir ou conquistar. Basta considerar o número de igrejas e conventos do Brasil colonial para se ter disso uma ideia.
Voltando a Afonso de Albuquerque, Elaine Sanceau o descreve como sendo a figura mais genial do império português do Oriente. Ora ele surge como marinheiro, ora como soldado, estadista, administrador ou diplomata, com a mesma competência e saber em todas as situações, pondo sempre as suas múltiplas faculdades ao serviço de um único fim: fundar um poderoso império no Oriente, exaltar o rei e a pátria, e, sobretudo, difundir a fé. Muito avançado para a época, Afonso de Albuquerque governou povos de outras raças sem os escravizar, respeitou-lhes os costumes e deu-lhes liberdade religiosa, concedeu-lhes uma justiça que desconheciam, deixou-os participar no governo e preocupou-se com a educação e formação das novas gerações.
Pondera a lúcida e competente historiadora que esses “podem ser os fins declarados de toda administração colonial moderna, mas são teorias recentes. Não teria lembrado a muitos contemporâneos de Albuquerque ou posteriores, que um povo conquistado podia tornar-se mais feliz com a conquista. Considerar os naturais de uma colônia, não como meros servidores do branco, mas como súditos do mesmo estado, cujas liberdades são garantidas pela mesma bandeira, é idéia moderna. De todas estas idéias Albuquerque foi um precursor que tanto ultrapassara a sua época que, ao vagar o seu lugar, não havia quem o ocupasse. […] Em seis anos de governo [da Índia], sempre manietado pela falta de homens, de navios e de dinheiro, bem como pela estreiteza de vistas e pelas suspeitas injustas do rei, Albuquerque fez sentir sua influência desde a Arábia até a China, e apossou-se das chaves do Oceano Índico. A Pérsia, o Sião e a Abissínia solicitavam a sua amizade, ao mesmo tempo que uma dúzia de reizetes indianos, inquietos, se informavam dos seus desejos, enviando-lhe embaixadas respeitosas. […] Quando morreu, Portugal era a potência que na Ásia mais se fazia temer. Por única recompensa, teve a ingratidão real”.
A Wikipedia em português enumera alguns dos grandes feitos desse Albuquerque Terribil: “Destacou-se tanto pela ferocidade em batalha, como pelos muitos contatos diplomáticos que estabeleceu. Nomeado governador após uma longa carreira militar no Norte de África, em apenas seis anos — os últimos da sua vida — com uma força nunca superior a quatro mil homens sucedeu a estabelecer a capital do Estado Português da Índia em Goa; conquistar Malaca, ponto mais oriental do comércio Índico; chegar às ambicionadas “Ilhas das especiarias”, as ilhas Molucas; dominar Ormuz, entrada do golfo Pérsico; e estabelecer contatos diplomáticos com numerosos reinos da Índia, Etiópia, Reino do Sião, Pérsia e até o Império Mingue (China). Adem seria o único ponto estratégico cujo domínio falhou, embora tenha liderado a primeira frota europeia a navegar no mar Vermelho, a montante do estreito Babelmândebe”.
Não podendo nos alongar descrevendo as campanhas e batalhas do insuperável guerreiro, concluímos dizendo que, injustiçado pelo rei — que não reconhecendo seus grandes feitos e mal influenciado pelas intrigas de invejosos da Corte o substituiu no governo da Índia por um seu rival e inimigo, sem qualidades para o governo —, Albuquerque, então já doente, deixou-se morrer de desgosto à vista de sua maior conquista, Goa. Assim foi sua agonia, “Pediu o crucifixo que pendia na parede. ‘Senhor’, rezou, ‘por tua grande misericórdia e piedade, te aprouve derramar o teu precioso sangue na cruz por remissão dos pecadores; peço-te por tua tanta bondade, que nesta santa redenção que ao mundo fizeste, minha alma pecadora seja salva’. Ainda viveu toda a noite, enquanto o confessor lia o evangelho de São João”. Após receber os últimos Sacramentos da Santa Madre Igreja, “morreu no momento em que a nau largava âncora no porto de Goa, que tanto amava”.
ABIM
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