sábado, 9 de fevereiro de 2019

Macroscópio – A nossa História não é um detalhe. O heroísmo (com um grão de loucura) também não.

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Quando o Observador foi lançado, há quase cinco anos, estava muito enraizada a convicção de que ninguém lia textos longos na Internet. Eu sabia que essa ideia era um desses “mitos urbanos” que tantas vezes criam preconceitos, justificam imobilismos e bloqueiam a inovação. Sabia porque havia estudos que o demonstravam. E sabia porque, mesmo não sendo um “nativo digital”, me descobrira a ler mais facilmente textos longos online do que em papel. Por isso nunca tivemos medo de textos longos no Observador – nem nesta newsletter. E hoje vou mesmo dedicá-la por inteiro a alguns textos mais extensos, ensaios ou reportagens de grande qualidade que podem cumprir três funções: ajudar a preencher o fim-de-semana dos meus leitores, deixá-los mais ricos porque mais informados e dar-lhes perspectivas novas sobre alguns debates dos nossos dias. Tudo sem falar do Brexit ou da greve dos enfermeiros, por muito que esses temas ocupem a actualidade e nos inquietem.
 
A minha primeira recomendação vai para um longo ensaio da historiadora norte-americana Jill Lepore publicado na prestigiosa Foreign Affairs. Intitulado A New Americanism o seu verdadeiro objecto é a discussão da ideia de que todas as nações necessitam de uma história nacional (ou “Why a Nation Needs a National Story”). Mesmo que seguindo muito a evolução da historiografia norte-americana, esta texto aborda o delicado tema da relação entre a nação, a ideia nacional, o nacionalismo e as narrativas que lhe servem de suporte. Primeiro recorda como tudo começou: “Nation-states, when they form, imagine a past. That, at least in part, accounts for why modern historical writing arose with the nation-state. For more than a century, the nation-state was the central object of historical inquiry.” Depois nota que houve uma altura em que os historiadores se começaram a interessar por outros temas, porventura acreditndo que tínhamos entrado numa era pós-nacional: “By 1986 (...) a lot of historians in the United States had begun advocating a kind of historical cosmopolitanism, writing global rather than national history. (...) A few years later, after the onset of civil war in Bosnia, the political philosopher Michael Walzer grimly announced that “the tribes have returned.” They had never left. They’d only become harder for historians to see, because they weren’t really looking anymore.” O momento do “fim da História” foi também um momento do fim da ideia de que as nações necessitavam da “sua História”, mas esses dias passaram: “At the close of the Cold War, some commentators concluded that the American experiment had ended in triumph, that the United States had become all the world. But the American experiment had not in fact ended. A nation founded on revolution and universal rights will forever struggle against chaos and the forces of particularism. A nation born in contradiction will forever fight over the meaning of its history. But that doesn’t mean history is meaningless, or that anyone can afford to sit out the fight.” Com as necessárias distâncias, uma vez que Portugal não é os Estados Unidos, há aqui muita matéria para reflexão, até para enquadrar alguns debates recentes no nosso país.

 
Continuando a falar de História, a minha sugestão seguinte vai para o texto de um autor que é presença assídua no Macroscópio, José Carlos Fernandes, que em mais um dos seus especiais no Observador escreve sobre a Macedónia: a história, a glória e as tragédias de um país que é muito mais que um nome. Fazendo-nos seguir um fio da meada que recua aos tempos de Alexandre, o Grande e do seu pai, Filipe II, este texto percorre memórias de um daqueles cantos da Europa que às vezes parece demasiado carregado de História para viver em paz com o seu presente. Só para termos uma ideia de como ali nada é fácil, veja-se como tudo foi retalhado há sensivelmente um século: “O Tratado de Bucareste, em 1913, consagrou a repartição da “Macedónia geográfica” entre a Sérvia, que ficou com 38% do território, correspondendo às zonas de dominância étnica eslava, a norte (Macedónia Vardar, cujo nome provém do rio Vardar); a Grécia, que ficou com 52% do território, correspondendo às zonas de dominância étnica grega, a sul (Macedónia Aegea, por ser banhada pelo Mar Egeu); e a Bulgária, que ficou com 10% do território, a leste (Macedónia Pirin, por associação com os Montes Pirin). A partição nada teve de pacífica, já que durante as Guerras dos Balcãs, os sérvios e os búlgaros não se tinham limitado a combater os otomanos, guerreando também entre si pelo controlo da Macedónia e tentando erradicar as etnias e religiões rivais. Em cada uma das partes da “Macedónia geográfica” que lhes foram outorgadas pelo Tratado de Bucareste, cada um dos países promoveu activamente a expulsão de etnias “estrangeiras” e a assimilação linguística, religiosa e cultural ao padrão nacional. A I Guerra Mundial voltou a introduzir alterações significativas no mapa dos Balcãs: os impérios otomano e austro-húngaro foram desfeitos e das suas ruínas ergueu-se em 1918 o Estado dos Eslovenos, Croatas e Sérvios, que incluía a Macedónia Vardar. Quem assumiu a governação do novo estado foi o príncipe Alexandre da Sérvia, primeiro na qualidade de regente e, a partir de 1921 como Alexandre II da Sérvia. Em 1929, o nome do país foi alterado para Reino da Jugoslávia (isto é, “a terra dos eslavos do sul”) e o rei passou a intitular-se Alexandre I da Jugoslávia.” Como imaginam, ainda hoje... não é fácil.

 
Os próximos dois textos tratam eventos mais recentes e une-os uma palavra, ou uma ideia: socialismo. Ou socialismo real, não o imaginado que esse nunca passou disso mesmo, de imaginado. O primeiro é um inquérito da Alemã Der Spiegel a uma das menos conhecidos, mas nem por isso menos horrorosas práticas da República Democrática Alemã, a RDA, a Alemanha socialista que estava do lado de lá do Muro de Berlim. O que aqui se recorda é a prática das autoridades de retirarem os filhos às famílias que davam indicações de serem contra o regime, entregando as crianças para adopção a fieis e leais comunistas. Em The Little-Known Tragedy of Forced Adoptions in East Germany Annette Großbongardt conta precisamente como “The East German state had a habit of taking children from politically undesirable parents and giving them up for adoption. It is a horrific aspect of the communist regime that has never received the attention it deserves. That may now be changing.” Há muitos testemunhos arrepiantes, aqui fica apenas um: "Many of us became sick and experienced extreme anguish," says Andreas Laake, 58. Originally from Leipzig, he was stopped in 1984 by the GDR coast guard as he was trying to flee to the West across the Baltic Sea in a rubber dinghy together with his pregnant wife. Laake says he claimed full responsibility and was thrown in jail. When his wife gave birth, he wasn't even allowed to see the child and a court simply withdrew his parenting rights. His wife was presumably pressured into giving the child up for adoption. Andreas Laake found his son 29 years later. Other parents have also been able to track down their children -- but are often unable to make up for lost time. "You can't turn back the clock on life," says Laake. "We didn't watch our children grow up, we weren't there when they started school, when they won in sports, when they fell in love for the first time." Now, he continues searching on behalf of others. He has founded an organization called Stolen Children of the GDR, which has more than 1,700 members. "Seventy-year-old women come to me and say: Mr. Laake, I only have one wish left: I just want to know what happened to my child."

 
A Venezuela bolivariana nunca chegou – pelo menos até agora – aos extremos totalitários da RDA e dos regimes tutelados por Moscovo da Europa do Leste, e por isso houve muitos que viram nela a prova de que, afinal, era possível construir o socialismo sem reprimir o povo – e também sem o empobrecer. Hoje sabemos que o chavismo foi apenas mais uma trágica ilusão, mas é bom recordar como as coisas aconteceram, algo que Kristian Niemietz faz de forma muito clara no britânico Telegraph, em How socialism – not sanctions – destroyed Venezuela. Um primeiro ponto que esclarece é precisamente o relativo às sanções, o bode expiatório do regime mas que em nada contribuíram para o desastre económico: “Some of Venezuela’s erstwhile cheerleaders cite the impact of US sanctions for the country’s downfall (...). In 2014 the US government did indeed bring in personalised sanctions against several members of the Maduro regime, but asset freezes and travel bans could never have affected the wider economy so dramatically. It was only in August 2017 that the US government implemented a decisive economic sanction, banning the purchase of Venezuelan government bonds. By then, Venezuela had been in crisis for nearly four years, and its economy had already contracted by a third.” Neste momento a recessão ainda se agravou mais, a economia encolheu para metade do que era, mas o que se explica neste texto é como isso foi uma decorrência das políticas adoptadas pelo chavismo/madurismo: “Pre-Chávez Venezuela had its fair share of problems, but it was never a banana republic. It was a place which generally respected private property rights and the rule of law. Now, the government rapidly began expropriating land and nationalising heavy industries, farms, factories and other private businesses.Such measures frightened off domestic and overseas investors, and stripped the country of the capital and expertise needed to develop its natural resources. Destroying other industries left an economy already dependent on oil even more so. When Chavez was first elected, oil made up just over 70 per cent of Venezuela’s exports but by the time of his death it accounted for virtually all of it. This meant the entire country was dangerously exposed to fluctuations in the global oil market.” Como sabemos bastou acabarem os anos em que o petróleo esteve sobrevalorizado para a crise explodir. Como não podia deixar de acontecer.
 

Para o final desta newsletter guardei uma descoberta desconcertante e um relato apaixonante. A descoberta desconcertante é que Liberals and Conservatives React in Wildly Different Ways to Repulsive Pictures. Devo dizer que, tal como os cientistas que realizaram este estudo, fiquei de queixo caído ao saber que, “To a surprising degree, our political beliefs may derive from a specific aspect of our biological makeup: our propensity to feel physical revulsion.” O trabalho da The Atlantic começa por lembrar qual o ponto de partida da investigação, que foi na verdade o mais elementar: “Why do we have the political opinions we have? Why do we embrace one outlook toward the world and not another? How and why do our stances change? The answers to questions such as these are of course complex. Most people aren’t reading policy memos to inform every decision. Differences of opinion are shaped by contrasting life experiences: where you live; how you were raised; whether you’re rich or poor, young or old. Emotion comes into the picture, and emotion has a biological basis, at least in part.” Só que, “As Montague mapped the neuroimaging data against ideology, he recalls, “my jaw dropped.” The brains of liberals and conservatives reacted in wildly different ways to repulsive pictures: Both groups reacted, but different brain networks were stimulated. Just by looking at the subjects’ neural responses, in fact, Montague could predict with more than 95 percent accuracy whether they were liberal or conservative.” Os resultados foram tão surpreendentes que são os próprios investigadores a olhá-los com prudência: “Findings so dramatic, especially in the social sciences, should be viewed with caution until replicated. The axiom that extraordinary claims demand extraordinary proof clearly applies here. That said, Hibbing, Montague, and their colleagues are scarcely alone in linking disgust and ideology.” Mesmo assim, dá que pensar.
 

Mas fantástica, fantástica é esta reconstituição de como, há sensivelmente um ano, foram os salvos os miúdos que ficaram presos numa gruta na Tailândia. Into the dark – The inside story of an improbable team of divers, a near-impossible plan and the rescue of 12 boys from a Thai cave lê-se como um romance já que o autor, Shannon Gormley, escreve de forma apaixonada e apaixonante. E o que se passou, uma história sobre a qual julgávamos saber tudo, foi afinal muito mais dramático e heróico do que se poderia imaginar, e isso vê-se bem recordando as opções que se colocaram às equipas de socorro. Recordemo-las, na memória dos próprios:
Option one: Believe the children’s claims that they heard roosters crowing. Assume there is a chimney in the mountaintop leading to the kids and their coach. Find it, somehow. Pull the team out, somehow.
Option two: Assume there is no chimney. Make one. Drill through the rock—700 m. Pull the team out—700 m.
Option three: Leave the kids and their coach in the cave. In the dark. For four months. Send in food, letters and medical support. Wait for the rain to stop. For four months. Bring the team out the way they came in.
Option four: Do what no one has ever done before. Bring a dozen children and one adult, none of whom know how to dive or probably even swim, through a few kilometres of flooded cave in almost zero visibility and torrid currents.
Option one is unrealistic: the kids are probably hallucinating about the roosters. Option two is deadly: drilling could crush the children under falling rocks. Option three is torture: stuck on that small patch of dirt in the dark, surviving on water dripping off stalactites, the kids hadn’t lasted a few days before trying to claw their way out by scratching at the rock face with their bare hands; four months would be unendurable. And option four is madness. No one has ever tried anything like it before. Divers might die. The ones who don’t die might have to carry out a dozen dead children.
Tonight, the men choose madness. They want to dive the kids out. 
E a loucura, como sabemos, resultou. A audácia valeu a pena. Tal como vale bem a pena a meia hora que esta longa reportagem leva a ler. É bem empregue.
 
De resto, e até porque me despeço com esta maravilhosa sugestão, só posso desejar-vos um bom fim-de-semana de proveitosas leituras. Pelo menos.

 
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