segunda-feira, 7 de maio de 2018

Opinião | A tragédia de Sócrates

"Isto ultrapassa os limites do que é aceitável no convívio pessoal e político", diz Sócrates. "É uma injustiça." E tem toda a razão. Ultrapassou mesmo todos os limites.
     Fernanda Câncio

Vamos tentar uma coisa muito difícil: vamos esquecer que José Sócrates está acusado de uma série de crimes particularmente graves. Vamos esquecer o processo judicial e seus procedimentos, o aproveitamento político-partidário da questão, o comportamento de alguns media. Assentemos apenas em que, depois de ter sido primeiro-ministro sete anos e estabelecido residência em Paris durante algum tempo, de serem levantadas dúvidas sobre como conseguia sustentar-se e de o próprio assegurar denodada e indignadamente que o fazia graças a um empréstimo bancário e à ajuda da mãe, se soube que afinal as suas despesas eram suportadas por um amigo empresário - e em molhos de notas, à sorrelfa.

Vamos ignorar tudo menos isto: um ex PM que tratava como insulto qualquer pergunta ou dúvida sobre a proveniência dos fundos que lhe permitiam viver desafogadamente; que recusou receber pela sua prestação como comentador na RTP de 2013 a 2014; que ostentou, na saída do governo, a rejeição da subvenção vitalícia a que tinha direito por ser deputado eleito desde 1987 (e que agora está a receber), não teve afinal, desde que abandonou o governo até janeiro de 2013, quando se anunciou consultor da Octapharma, outros meios de subsistência senão o dinheiro do amigo (à generosidade do qual terá continuado a apelar mesmo quando auferia um ordenado de mais de 12 mil euros brutos por mês). Ou seja, fingiu ante toda a gente que tinha fortuna de família, rejeitando até rendimentos a que tinha direito como alguém que deles não necessitava. Urdiu uma teia de enganos. Mentiu, mentiu e tornou a mentir.

Mentiu ao país, ao seu partido, aos correligionários, aos camaradas, aos amigos. E mentiu tanto e tão bem que conseguiu que muita gente séria não só acreditasse nele como o defendesse, em privado e em público, como alguém que consideravam perseguido e alvo de campanhas de notícias falsas, boatos e assassinato de caráter (que, de resto, para ajudar a mentira a ser segura e atingir profundidade, existiram mesmo). Ao fazê-lo, não podia ignorar que estava não só a abusar da boa-fé dessas pessoas como a expô-las ao perigo de, se um dia se descobrisse a verdade, serem consideradas suas cúmplices e alvo do odioso expectável. Não podia ignorar que o partido que liderara, os governos a que presidira, até as políticas e ideias pelas quais pugnara, seriam conspurcados, como por lama tóxica, pela desonra face a tal revelação.

Este comportamento, que o próprio admitiu na primeira entrevista que deu a partir da prisão, sem, frise-se, pelo engano e mentira fazer qualquer ato de contrição, dar qualquer satisfação - e qual seria possível ou passível de satisfazer, diga-se - chegaria para clarificar a absoluta ausência de respeito pela verdade, pelas pessoas e por isso a que se dá o nome de bem comum de que padece José Sócrates.

E chegaria, devia chegar, para que qualquer pessoa, seja ou não do seu partido, reconheça que esta total deslealdade e falta de seriedade é suficiente para fazer um juízo ético e político sobre a sua conduta. Não é preciso falar de responsabilidades criminais, mesmo se a conduta descrita implica questionar por que carga de água um empresário pagaria, durante tanto tempo e sem aparente limite, as despesas de um amigo que tivera tais responsabilidades políticas, e por que motivo, se se trata de algo que o próprio vê tão sem problemas, isso foi cuidadosamente escondido não só do país como dos próximos.

Fazer publicamente esse juízo ético, no clima de caça às bruxas que se instalou após a revelação das mentiras de José Sócrates e das acusações de que é alvo, não é fácil. Quem sinta esse impulso, se for pessoa de bem, não pode deixar de ter pudor em bater em quem está por terra e temer ser confundido com a turba que clama por linchamento.

E para o seu partido -- um partido no qual Sócrates foi tão importante, até por ter sido o primeiro líder a conquistar uma maioria absoluta, e no qual tem ainda apoiantes que pelos vistos não se sentiram traídos com as suas mentiras nem acham nada de errado em um dirigente partidário e ex governante viver secretamente às custas de um empresário -- não era fácil declarar o óbvio. A saber, que independentemente de qualquer responsabilidade criminal alguém que age assim tem de ser persona non grata.

O PS esperou muito para o fazer e na verdade nem o fez bem. A sequência de declarações de dirigentes foi confusa e falou de suspeitas criminais - que estão por provar -- em vez de se centrar no iniludível: a assunção do próprio de que andou deliberadamente a enganar toda a gente. Confusas ou não, porém, as declarações levaram o ex-líder a finalmente libertar o partido do terrível peso da sua presença simbólica.

Mas, claro, José Sócrates sai vitimizando-se, falando de "embaraço mútuo" e ameaçando, segundo o Expresso, "vingar-se" - aventa mesmo "um amigo" que poderá "usar escutas a que teve acesso como arguido". Chocante, porém não surpreendente. De alguém com uma tal ausência de noção do bem e do mal, que instrumentalizou os melhores sentimentos dos seus próximos e dos seus camaradas e fez da mentira forma de vida não se pode esperar vergonha. Novidade e surpresa seria pedir desculpa; reconhecer o mal que fez. Mas a tragédia dele, que fez nossa, é que é de todo incapaz de se ver.

Fonte: DN
07 DE MAIO DE 201800:00

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