sábado, 27 de outubro de 2018

O fascínio do deslocamento

Nossa história é marcada pela ação antes mesmo da concepção, quando os espermatozoides empreendem uma corrida desesperada em direção ao óvulo com o objetivo de fecundá-lo. Ou seja, todos nós somos resultado desse primeiro movimento


Nossa história é marcada pela ação antes mesmo da concepção, quando os espermatozoides empreendem uma corrida desesperada em direção ao óvulo com o objetivo de fecundá-lo. Ou seja, todos nós somos resultado desse primeiro movimento – e ao longo da vida outros tantos pautam cada etapa do desenvolvimento. Abrimos e fechamos as pálpebras, movemos a língua para pronunciar sons e nos fazermos entender, sorrimos, exibimos no rosto o que sentimos, agitamos os braços, engatinhamos, andamos, pulamos, dançamos, chutamos, digitamos, atiramos objetos para longe e os trazemos para perto. Dentro do corpo o sangue corre, o ar entra e sai dos pulmões e os sinais eletroquímicos transmitidos pelos neurônios estão em constante atividade, acionando redes sinápticas e promovendo associações. 

Também fora de nós nada parece estar parado. O ir e vir ao nosso redor – e a necessidade constante de nos deslocarmos – associa-se à energia vital, à busca da agregação. A tendência a simplesmente deixar-se ficar, sem ligar-se a nada (sem mover-se em direção a nada), aproxima-se da ideia de pulsão de morte, proposta por Freud. 

Num outro plano, os movimentos (não por acaso chamados assim) sociais, culturais e econômicos são transformadores e afetam a maneira como as pessoas sentem, pensam e desejam. Nessa íntima comunicação entre o dentro e o fora, exemplos concretos ancoram ideias abstratas; sensações e ações que parecem triviais como franzir a testa, segurar objetos macios ou ásperos ou fazer sinal de positivo influenciam operações cognitivas complexas, julgamento social, linguagem, percepção e raciocínio.

Quando observamos gestos, certas regiões cerebrais impedem a transmissão de sinais do córtex pré-motor para os neurônios motores executores, um mecanismo parcialmente inexistente em pessoas com ecopraxia (imitação repetitiva de movimentos). Quando nos curvamos diante de um paciente com essa síndrome neurológica, ele também se curva – simplesmente imita o gesto, sem saber por que o fez. O limiar entre a simulação interna e a atividade motora concreta, porém, muitas vezes é reduzido também em pessoas saudáveis – como no caso do bocejo, altamente contagiante. E sim, há movimento no bocejo, assim como nas expressões faciais, no sorriso, no pensamento. É dessa gama de movimentos, mais ou menos sutis, intimamente conectados ao cérebro e à mente que trata esta edição especial Corpo e cérebro em movimento. Por mais quietos que estejamos – como neste momento, lendo este texto – universos físicos e mentais se movem em nós. Para dar continuidade a esse processo fascinante, basta continuar deslizando os olhos linha após linha pela edição.

Gláucia Leal, Editora-chefe.

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