quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Opinião | A minha irmã iraniana

Quem diz que as feministas ocidentais querem a burqa nunca pensou um segundo sobre o que significa a burqa; quem diz que abandonaram as suas irmãs dos países islâmicos não sabe o que é o feminismo.
Fernanda Câncio
A mulher dança. Na rua, ao som de guitarras que duas pessoas (dois homens?) dedilham. Passam pessoas, apressadas, sem se deter a olhá-la, sem parecer reparar nela sequer. Ela continua, indiferente, dona de si, as pontas do lenço amarelo que lhe cobre a cabeça ondulando em coreografia paralela. "Mulher iraniana a dançar na rua em Teerão", esclarece quem partilha o vídeo, a jornalista americana-iraniana Farnaz Fassihi. "Dançar é proibido às mulheres, que estão a liderar o caminho para a mudança."

Olhar agora outra e outra vez para este vídeo e muitos outros que o Google encontra com o mesmo tema: iranianas a dançar na rua, no metro, num qualquer lugar público, belas, alegres, formidáveis, deslumbrantes, a desafiar essa lei grotesca, esse Estado grotesco e esses ditames religiosos grotescos que lhes negam a plena cidadania, que as obrigam a cobrir cabelo e corpo, que as criminalizam se tiverem sexo com um homem fora do casamento - quanto mais uma mulher -, que lhes interditam assistir a eventos desportivos, os preceitos que as impedem de tocar num homem que não seja seu familiar (e por tocar entenda-se o mero aperto de mão).

Tentar pensar tudo isto, tão impensável e caricatural como uma ficção distópica - como o Diário de Uma Serva, de Margaret Atwood - sabendo que é real, que submete mulheres como eu, exatamente como eu, com as mesmas referências, os mesmos gostos, as mesmas leituras, os mesmos discos favoritos, a mesma estética, a mesma ética, a mesma paixão pela liberdade, a mesmíssima urgência de viver, a respirar no mesmo fôlego, o mesmo ar. Submete-me nelas e com elas, porque é por serem o que sou - mulher -, por partilharem comigo essa identidade, que são menos pessoas, menos cidadãs, sempre menos do que um homem, sempre algo que é visto como existindo para eles, dependência do seu olhar, valoração, desejo, permissão, corpo a ser regrado e legislado em função disso: ser para o homem.

Sentir o insuportável disso, a raiva e a dor. E a admiração, até às lágrimas, por esta mulher que dança, esta mulher decerto mais nova do que eu que nunca soube o que é ser na lei cidadã de pleno direito, cujo presente é o meu passado, um presente que me avisa, me lembra de que é preciso continuar a lutar, sempre, porque o país dela, como Ferreira Fernandes lembrou há dias, é um país onde há 40 anos, quando o meu começava a dar-me os direitos que me negara à nascença, lhos tirou a ela. Saber por ela que tudo o que dou como natural me pode ser tirado, que todos os direitos conquistados me podem ser roubados, uma espécie de mundo ao contrário em que o automático estatuto de menoridade que tive ao nascer mulher nos anos 1960 num país cuja lei me negava o voto e dizia incapaz de ser juíza, procuradora, embaixadora, polícia ou militar, permitia a um marido ler-me a correspondência e decidir se eu podia ter um emprego, mandar a polícia devolver-me se eu decidisse fugir-lhe ou repudiar-me se me descobrisse não virgem na noite do casamento, estaria à minha frente e não atrás, futuro e não passado.

É porque partilhamos dessa noção e memória e urgência, eu e a mulher que dança, que só posso rir quando oiço e leio que as feministas ocidentais em vez de denunciarem o assédio e lutarem por leis que o criminalizem e contra os estereótipos de género em brinquedos, livros escolares e etc. deviam estar a lutar pelas mulheres "realmente oprimidas"; que as feministas ocidentais "não combatem a opressão das mulheres nos países muçulmanos por terem medo de ser intituladas islamofóbicas", que, em suma, as feministas ocidentais abandonaram as suas irmãs que vivem em países islâmicos. Já vi dito até que as feministas ocidentais querem é, quando exigem aos homens que deixem de assediar as mulheres, "impor a burqa". Naturalmente, quem isto diz nunca perdeu um segundo a pensar ou a informar-se sobre o que significa a burqa, o niqab, o hijab e demais farpelas impostas às mulheres em Estados islâmicos - nunca percebeu que o motivo desta imposição é o direito decretado dos homens aos corpos femininos, e o facto de se considerar que, perante uma mulher "não coberta", eles têm o direito de "se servir". Ou seja, assediar, forçar, usar até onde lhes apetecer, porque uma mulher sem homem e não "coberta" no espaço público é propriedade pública. É porque a mulher não é dona de si nem merece respeito a não ser que se resguarde do olhar masculino - idealmente mantendo-se fora do espaço público, que aos homens pertence - que a lei lhe impõe que se cubra e nada faça que possa "excitar" os homens, incluindo, claro, dançar. O mesmíssimo racional que se lê aqui no chamado Ocidente nas caixas de comentários de jornais em cada artigo sobre o #metoo e o assédio sexual: "Elas andam aí assim vestidas e depois queixam-se." Há diferença? Claro, um mundo: posso dançar na rua, sair de mini e decote e cabelo ao vento sem ser presa. Mas, imagine-se, quero mais. Quero que a rua seja minha como se instituiu que é dos homens; que o espaço público não me seja território hostil; que nenhum homem possa achar que me pode dizer ou fazer seja o que for contra a minha vontade só porque estou ali. A minha luta é a mesma da minha irmã que dança, reclamando para si o espaço público e o seu corpo no espaço público. Lutamos as duas pelo mesmo, contra o mesmo. E uma pela outra.

Fonte: DN

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