sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Macroscópio – Keep cool. Afinal o calor vai e vem. Ou não?

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
 
A pior memória é, provavelmente, a meteorológica, pelo que se não fossem os serviços oficiais e os institutos de investigação cada período ais extremos levar-nos-ia sempre a dizer qualquer coisa como “nunca esteve tanto calor”, ou “não me lembro de tanto frio” ou ainda “nunca choveu tanto”. Por regra não é assim, mas às vezes é: os dias quentes que estamos a viver já permitiram que fossem batidos alguns records de temperatura máxima, e ainda faltará o dia mais quente (amanhã, sábado). E tudo isto depois de um mês de Julho que foi o mais frio dos últimos 30 anos. Sem esquecer que, ao mesmo tempo, onde devia ter estado mais fresco – o norte da Europa – tem estado afinal bem mais quente. E também com grandes fogos... a norte do Círculo Polar Ártico. Que se passa?
 
A resposta mais directa seria: “é complicado”. E é complicado porque há vários factores que interagem na formação de uma vaga de calor ou na viagem de uma nuvem de poeiras do Saara. Isso mesmo procurou explicar Marta Leite Ferreira num especial do Observador publicado antes dos termómetros começarem a subir, Porque é que está tanto calor? E onde é que o termómetro vai chegar quase aos 50ºC?, um texto onde se admitia que “o tempo parece mesmo estar trocado”. Sendo que “A culpa é uma vez mais do anticiclone dos Açores: “O papel do anticiclone dos Açores é bloquear os ares frios, que normalmente nesta altura do ano não conseguem chegar à Península Ibérica porque esse centro de alta pressão atmosférica estende-se até por cima de Portugal e Espanha. Só que até agora o anticiclone dos Açores estava bastante mais a oeste do que é normal para esta altura do ano, por isso o ar frio chegava cá”. Essa situação alterou-se nos últimos dias, mas, “como diz Fátima Espírito Santo, a verdade é que esta vaga de calor não significa que o verão tipicamente português tenha vindo para ficar”. Mais “Ricardo Tavares diz que “este calor não é o verão a chegar” porque apesar de as temperaturas permanecerem altas (mesmo muito altas) até pelo menos domingo, espera-se que elas comecem a amenizar já no início da próxima semana.”
 
Já bastante afogueada por estes dias irrespiráveis, Marta Leite Ferreira voltou à conversa com os meteorologistas para saber se Está demasiado calor ou é só mesmo o verão? A resposta é que, apesar dos records, provavelmente nem sequer estaremos a viver aquilo a que tecnicamente se chama uma “onda de calor”: “Esses 5ºC a mais nas nossas temperaturas não significam que estejamos a atravessar uma onda de calor, um fenómeno a que o país está habituado a assistir. Como o Instituto Português do Mar e da Atmosfera segue as indicações da Organização Meteorológica Mundial, então os nossos meteorologistas e climatólogos partem do princípio de que esse fenómeno só se verifica quando a temperatura está 5ºC acima da média durante pelo menos seis dias consecutivos. Em alguns sítios, essa diferença térmica é superior a esta mas não está previsto que se mantenha durante mais do que quatro dias: o calor extremo começou na quarta-feira, mas só se deve arrastar até domingo. No entanto, as previsões podem errar e o aviso vermelho devido ao calor até já foi prolongado até domingo à tarde. Se estas temperaturas se mantiverem até terça-feira, então sim os climatólogos assumem que estamos numa onda de calor.”
 
 
Saltando do Observador para o site do IPMA lá encontramos uma página dedicada à explicação do que é uma Onda de calor, página essa que nos ajuda a refrescar a memória pois “Desde a década de 1940, período em que existe informação meteorológica diária num maior numero de estações, têm-se verificado ondas de calor de extensão espaço temporal variável; no entanto, é a partir da década de 90 que se regista a maior frequência deste fenómeno”. Isso mesmo podemos perceber consultando a Pordata, que tem gráficos relativos ao “número de dias com onda de calor”. O que reproduzo acima é o relativo a Lisboa e por ele podemos ver que o fenómeno não é de hoje – tal como podemos notar que estes dias de altíssimas temperaturas têm sido mais frequentes nos últimos anos. 
 
Será que estamos a testemunhar uma tendência? Aparentemente sim, lemos no site da Universidade de Aveiro, onde se escreve que Investigação da UA prevê que ondas de calor vão aumentar cinco vezes em 100 anos. Em concreto conclui-se que nesse período de tempo “aumentam em cinco vezes o número de ondas de calor em toda a Península Ibérica e grande parte dos dias de verão serão dias de calor extremo”. O estudo foi publicado no Internacional Journal of Climatology e quem quiser ter acesso à sua fundamentação pode encontrá-lo e descarregá-lo (acesso pago) em Heat wave and cold spell changes in Iberia for a future climate scenario. E já que passámos para a escala da Península Ibérica podemos sempre consultar a longa lista de Olas de calor en España desde 1975, disponibilizada pela Agência Estatal de Meteorologia de Madrid. 
 
Antes de regressar aos jornais deixem-me ainda referir que um dos aspectos que tem merecido a atenção dos estudiosos é a variação da mortalidade nestas alturas. Encontrei dois estudos portugueses que são taxativos: morre-se mais quando a temperatura atinge estes valores inabituais. Ei-los: 
  • Efeitos de uma onda de calor na mortalidade da população do distrito de Lisboaé um trabalho já antigo, publicado em Abril de 1988, e refere-se a uma onda de calor de 1981. A sua conclusão foi que “É altamente provável que esse aumento da mortalidade tenha sido causado, directa e indirectamente, por uma onda de calor que se registou entre 12 e 17 de Junho. Tomando como referência a semana com maior número de óbitos (456), pode estimar-se, de modo muito conservador, que o excesso de mortalidade atribuível à onda de calor atingiu, pelo menos, os 323 óbitos no distrito de Lisboa. Se o fenómeno tiver, eventualmente, tido repercussões semelhantes em todos os restantes distritos do continente o número de óbitos associados à onda de calor poderá ter atingido valores tão elevados como cerca de 2300.
  • Relatório da onda de calor de 23/06 a 14/07 de 2013 em Portugal continentalfoi publicado pela DGS logo em Outubro de 2013 e, mesmo considerando que “a interpretação destes resultados deve ser muito cautelosa”, considerada que essa onda de calor “teve um impacto apreciável na saúde da população. De facto, todos os indicadores estudados registaram acréscimos, com especial destaque para a mortalidade, em relação à qual foi estimado um excesso de óbitos superior a 30%.” A seguir explicava-se que são os mais idosos os mais atingidos, concluindo que, “Por grupo etário, apenas foi observado excesso de mortalidade significativo na população acima dos 75 anos de idade”.

 
Regressando à imprensa, e começando pelo americano Vox, nele explica-se The disturbing reason heat waves can kill people in cooler climates. Com este aspecto interessante: “Heat waves are often most pronounced in dense, urban areas. Asphalt, concrete, steel, and glass soak up the summer weather and create a heat island, which can make a city upward of 22°F warmer than its surroundings. And the climate itself is becoming more erratic, with parts of the world seeing major temperature swings over the course of a few days, making it harder for people to adjust.”
 
 
A seguir, quando lemos textos como o do Guardian Why is Europe going through a heatwave? (de onde reproduzimos o mapa acima), começa a ficar claro que a maioria dos cientistas estabelece algum tipo de relação entre estas ondas de calor e as alterações climáticas. É um tema que a Wired desenvolveu mais e com mais cuidado, logo com menos certezas, em Is this summer’s heatwave a sign of things to come? It’s complicated. Neste texto notava-se que “It’s impossible to point to one hot summer as evidence of climate change, says Edward Hanna, professor of climate science and meteorology at the University of Lincoln. “You just can’t link individual events to climate change,” he says. “There’s a lot of natural variability [in weather] and we’re talking about seasonal changes which are always variable to some degree.” Mas mesmo fazendo estes alertas, pode-se começar a ter algumas ideias mais firmes: “In the UK there is only one near-certainty. Summers are likely to be hotter and heatwaves – when they do happen – will be more scorching. “It’s clear that there is a long term trend on that,” Shepherd says. “Because of climate change we will get more hot summers in general, and this is a good example of what’s going to come so it’s a good opportunity to think of our resilience and if we’re ready for such a thing.”
 
Ou seja, há mais gente a chegar às conclusões da equipa da Universidade de Aveiro que já citámos, existindo mesmo quem já tenha trabalhado os dados da actual onda de calor no norte da Europa, concluindo que Climate change made 2018 European heatwave up to ‘five times’ more likely, como se escreve no site Carbon Brief: “rapid assessment by scientists of the ongoing heatwave across northern Europe this summer has found that human-caused climate change made it as much as five times more likely to have occurred. The preliminary analysis, by a team of scientists at the World Weather Attribution network, uses data from seven weather stations in Ireland, the Netherlands, Denmark, Sweden, Norway and Finland. (,,,) The findings suggest that rising global temperatures have increased the likelihood of such hot temperatures by five times in Denmark, three times in the Netherlands and two times in Ireland.”
 
Por isso, e para alargar ainda mais os horizontes, salto para o El Pais e para um extenso e detalhado relato do que se tem passado nos países a que o calor chegou mais cedo do que a Portugal. Em La sorprendente ola de calor en los países donde hace frío viaja-se mesmo até à Sibéria, uma região estudada pelo meteorólogo americano Nicholas Humphrey: “Este experto de eventos extremos y cambio climático publicó el pasado 2 de julio en su blog un post en el que explicaba con asombro lo que estaba pasando en Siberia. “Es absolutamente increíble, uno de los eventos de calor más intensos que haya visto nunca en una latitud tan septentrional”, comentó. Humphrey afirma que el descenso del volumen de hielo por la ola de calor siberiana afectó sobre todo la costa ártica rusa. Un rápido calentamiento del mar puede acelerar la emisión de gases como el CO2 y el metano desde el permafrost, considera este experto.” A perspectiva é inquietante, mas como muitos dos eventos dos últimos meses “estén vinculados con anomalías en la circulación atmosférica (el movimiento de aire a gran escala)” temos de ser prudentes e “realizar más estudios para vincular un solo evento con el cambio climático. Uno de los puntos claves es observar si anomalías como las de este verano tienen continuidad en el tiempo, asegura. Pero las señales del calentamiento global son cada vez más evidentes, opina el meteorólogo. "No se puede decir que nunca haya hecho calor en Alaska o en Siberia en verano, pero que ahora y de forma tan frecuente ocurran estas anomalías cálidas es sintomático de que efectivamente el planeta se está calentando y sobre todo en estas zonas más hacia el norte del mundo", afirma.”
 
 
Antes de passar ao inevitável tema das alterações climáticas (onde há boas matérias para ler esta semana), deixem-me deixar-vos uma pequena pérola, um globo interactivo, em permanente actualização e que o criador baptizou simplesmente Earth, que descobri neste texto do Science Post, Cette animation nous le montre : la vague de chaleur est globale. Aqui fica o essencial da explicação do funcionamento deste modelo: “L’animation, conçue par le programmeur informatique Cameron Beccario, directeur de l’ingénierie d’Indeed Tokyo au Japon, est mise à jour toutes les 3 heures avec les données météorologiques tirées du système de prévision global des centres nationaux de prévision environnementale. Le système utilise des superordinateurs pour créer des modèles météorologiques à partir de diverses mesures, comme la température, l’humidité du sol, le vent, les courants océaniques et les précipitations.” Como se pode ver na imagem é possível escolher o ponto do globo de que queremos conhecer a temperatura, sendo aquela que mostro a da região de Lisboa hoje de manhã. 
 
Já quanto ao tema das alterações climáticas foi o escolhido para a capa desta semana da The Economist, assim como para o seu principal editorial, The world is losing the war against climate change. Como sempre é um texto denso que descreve várias dificuldades a ultrapassar, sendo que uma dela é poucas vezes referida: “the technical challenge of stripping carbon out of industries beyond power generation. Steel, cement, farming, transport and other forms of economic activity account for over half of global carbon emissions. They are technically harder to clean up than power generation and are protected by vested industrial interests. Successes can turn out to be illusory.” De facto são problemas que não se resolvem apenas com células fotovoltaicas ou ventoinhas nas cumeadas, mas que mesmo assim há esperança que os desafios tecnológicos sejam ultrapassados: “Technologists beaver away on sturdier grids, zero-carbon steel, even carbon-negative cement, whose production absorbs more CO{-2} than it releases. All these efforts and more—including research into “solar geoengineering” to reflect sunlight back into space—should be redoubled.”
 
 
Mas enquanto não chegamos há consequências destes dias quentes que temos de enfrentar, e os fogos florestais são por certo uma das mais prementes. O Telegraph faz um belo trabalho de reportagem em Europe in flames: How can we fight wildfires sweeping the continent - and is it too late to end the cycle?, um texto escrito por Joe Shute eBruno Manteigas e que inclui relatos tanto do que se passou agora da Grécia como do que se passou o ano passado em Pedrógão Grande. É também deste trabalho o mapa acima, onde se sinalizam as mais graves ocorrências deste ano de 2018. 
 
O incêndio de Pedrógão Grande é também uma referência de um texto da The Economist, Software can model how a wildfire will spread, um texto bem interessante porque nos conta como se pode melhorar muito a forma de combater um incêndio, mas um texto que também nos alerta para os limites actuais da ciência referindo precisamente o que se passou em Portugal o ano passado: “The most extreme 1% or so of wildfires, however, are likely to remain unmodellable for some time. These include the “explosive” wildfires that ravaged central Portugal last year. (...) Flames that rose roughly 100 metres into the sky during these fires generated a gale and searing “pyrocumulus” clouds, a process too complex for today’s best software to model, according to Marc Castellnou, a member of the technical commission that studied the disaster. Francisco Castro Rego, an expert on fire forecasting at the University of Lisbon, reckons that at least two more years of development will be needed to model such fires.”

 
Aqui chegado não sei se perderam o fôlego com o calor ou com a ambição e extensão deste Macroscópio. Mas como estou certo que este tema só pode suscitar a vossa curiosidade e interesse, e estamos também a entrar no fim-de-semana, alonguei-me um pouco mais. Sirva-se então esta newsletter acompanhada de uma bebida fresca e que ela possa ajudar-vos a relaxarem. Até para a semana. 
 
 
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