terça-feira, 5 de abril de 2016

Macroscópio – No Panamá não há só um canal e um alfaiate

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


É, para já, o tema da semana, e não sabemos de quantas mais semanas. A gigantesca fuga de informação que já é conhecida como Panama Papers permitiu a centenas de jornalistas de investigação (370 no total) o acesso a 40 anos de actividade uma firma de advogados do Panamá, a Mossak Fonseca, especializada na utilização do regime financeiro especial que vigora naquele país. Estamos perante um novelo enorme e complexo de que só agora começamos a puxar por algumas pontas. Comecemos, por isso, por procurar entender este caso.

Primeiro ponto: a fuga de informação deu-se para um jornal alemão, o Süddeustche Zeitung, que depois partilhou os documentos com o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), uma organização sem fins lucrativos com base nos Estados Unidos. É aliás no site dessa organização que pode ter acesso a muita da informação que está a ser disponibilizada aos órgãos de informação de todo o mundo – estudo no microsite especial do ICIJ The Panama Papers.

Segundo ponto: em Portugal foi o Expresso que se associou a esta investigação, mas por enquanto ainda não revelou o que nos suscitará mais curiosidade: onde estão os portugueses. Sendo certo que há já quem comece a disparar sobre os mensageiros – os jornalistas – em vez de fixar a mira no resultado da sua investigação, é importante citar um texto de ontem de Pedro Santos Guerreiro, no Expresso Diário, onde se explicava todo o processo do trabalho jornalístico, A aranha dentro da teia(paywall), procurando responder a perguntas como “O que são os Panama Papers? A que ritmo vai ser divulgada a investigação? Por que motivo é que os artigos saem a conta-gotas? Afinal, o que é que acaba de acontecer ao mundo?”Depois começa a explicar: “I know a guy who knows a guy who knows a guy.” Eu conheço uma pessoa que conhece uma pessoa que conhece uma pessoa – que trata disso. Eis a Mossack Fonseca. A firma de serviços offshore cujos ficheiros estão na base da maior fuga de informação de sempre. Ela não trata com clientes finais, não tem catálogo de vendas de práticas criminosas, diz que em 40 anos nunca foi sequer processada. Ela é a tecedora de teias que outros usam. É uma aranha vegetariana, não come carne. Os outros que a comam, isso é com eles. Os outros comem-na, isso é connosco. (…) A Mossack Fonseca é o prodigioso e pérfido Dédalo, arquiteto do labirinto que aprisionou o Minotauro num enlouquecimento entre-paredes. Não se sai incólume de uma viagem destas. Ainda bem.”

Terceiro ponto: onde posso perceber, de forma simples sintética, o que está em causa? Eis algumas sugestões:
A dimensão desta fuga de informação e a quantidade de políticos e figuras públicas envolvidas – o Observador continua a seguir todas as revelações e a acrescentar todo o necessário enquadramento, podendo encontrar todos os artigos aqui – pode ter consequências difíceis de prever. E há mesmo quem seja quase apocalíptico, como a revista Time: The Panama Papers Could Lead to Capitalism’s Great Crisis. Justificação:
To me, this is one of the key issues at work in the U.S. presidential election. Voters know at a gut level that our system of global capitalism is working mainly for the 1 %, not the 99 %. That’s a large part of why both Sanders and Trump have done well, because they tap into that truth, albeit in different ways. The Panama Papers illuminate a key aspect of why the system isn’t working–because globalization has allowed the capital and assets of the 1 % (be they individuals or corporations) to travel freely, while those of the 99 % cannot. Globalization is supposed to be about the free movement of people, goods, and capital. But in fact, the system is set up to enable that mobility mainly for the rich (or for large corporations). The result is global tax evasion, the offshoring of labor, and an elite that flies 35,000 feet over the problems of nation states and the tax payers within them.”

Uma parte desta percepção provém da forma como muitas vezes se faz uma amálgama de tudo, isto é, se misturam actividades legais e legítimas, mesmo do ponto de vista legal, com crimes de todo o tipo. Helena Matos alertou para isso mesmo hoje no Observador, em Aos papéis. Escreveu ela que “Generalizar vale a pena: entre o Almodovar e o Putin não há diferença. Entre o Messi e um traficante de droga ainda menos. Entre quem ganha licitamente muito dinheiro e procura pagar menos impostos e quem rouba ou obtém ganhos em actividades criminosas não está ser feita qualquer diferença”, sendo que “Neste momento é extraordinariamente impopular assinalar esta diferença. Mas ou temos a coragem de o fazer ou acabaremos todos delinquentes.” A seguir reflecte sobre a forma como o estado social está a dar lugar a um estado fiscal: “Autoritário. Intrusivo. Que não admite contestação.”

Esta abordagem contrasta com a que tem dominado os espaços de comentário. Dois exemplos, ambos retirados do Público. Primeiro, Manuel Carvalho em A putrefacção saiu da clandestinidade, num registo mais analítico: “A venalidade do poder político e financeiro é imensa. Haverá sempre um Estado falhado ou uma república das bananas pronta a tapar os olhos para beneficiar do afluxo de capitais. E nenhum país isolado consegue atacar uma doença com tantas metástases. Mas, se nos últimos anos houve uma oportunidade para o tentar, essa oportunidade está à nossa frente. A teia clandestina foi trazida à luz. O conforto da opacidade rompeu-se.” Depois, José Vítor Malheiros, em Os impostos são só para os trabalhadores e para os pobres, escrevendo de forma mais vincadamente opinativa: “O facto que esta fuga de informação põe em evidência é algo que a esmagadora maioria dos cidadãos continua a não querer ver: o facto de as leis serem aplicadas à massa de cidadãos trabalhadores, os cidadãos com menos rendimentos ou mesmo declaradamente pobres, que são obrigados a pagar os seus impostos, mas poupando ilegitimamente os mais poderosos, uma minoria de pessoas que detém quase toda a riqueza do mundo e que consegue viver à custa do sacrifício de todos os outros, comprando Lamborghinis com o dinheiro que não pagaram em impostos.”

Já os grandes diários económicos procuram sublinhar a diferença entre o que é legal e ilegal, mesmo fazendo-o com diferentes ênfases. No editorial do Financial Times, The Panama papers and the concealed wealth of nations, escreve-se, por exemplo, que “It is, of course, true that possession of a Panamanian corporate identity does not itself equate to evil intent. But the mini-state has done more than most “light touch” jurisdictions to make it easy to keep a dark secret. Not only does corporate ownership remain highly opaque; it is also the most significant financial centre to hold out against a global transparency initiative led by the OECD. Only Bahrain, Vanuatu and Nauru have similarly spurned the rules, which provide for tax data to be automatically exchanged.”

Outro editorial, o do Wall Street Journal, procura colocar The Panama Papers in Perspective. Eis o seu ponto mais relevante: “Governments have to enforce their tax laws. But it’s hard to see how the big question in this story is whether everyone with a company in Panama paid the correct amount of tax. The far more important question is how so many public officials in so many governments managed to accumulate so much money. (…) The mistake now would be to narrow the focus prematurely, zeroing in on tax avoidance that is a hobbyhorse of the political class but in this case is a distraction. The real news here are the incomes and far-flung bank accounts of the political class.”

Para não prolongar demasiado este Macroscópio, pois estamos apenas no início de um escândalo que vai continuar a alimentar muitas discussões e que deverá levar a mudanças na forma como o dinheiro circula no mundo, chamo a atenção para um texto de Luís Salgado Matos no blogue O Economista Português:
Panama Leaks: falsos Escândalos e verdadeiros Escandalizados. Duas passagens, à laia de aperitivo:
a) “A surpresa é falsa: todos sabemos que os países das Nações Unidas toleram os paraísos fiscais e ninguém supunha que os seus clientes residissem nos bairros da lata de Mumbay. Só que o recurso aos paraísos fiscais é suscetível de ser perfeitamente legal. O Panama leaks desvendará aqui um conflito entre o legal e o moral? Veremos. Mas é uma ilusão pensar que a União Europeia (UE) conseguirá a tributar os ricos com taxas  comunistas ao passo que os Estados Unidos e a Ásia os deixam ficar com a maior parte dos seus rendimentos.”
b) “O descrédito da UE revela-se total. Com razão. O leitor lembra-se do Luxemburg leaks, que há uns meses denunciou a evasão fiscal patrocinada pelo Grão-Ducado com a tolerância da UE? Sabe quantos processos criminais foram abertos? Foi aberto um. Sabe a quem? Aos jornalistas que denunciaram a evasão fiscal.

E por hoje é tudo. Com a certeza que esta procissão ainda vai no adro, despeço-me até amanhã.

 
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