segunda-feira, 3 de julho de 2017

Marcados Pelo Fogo

Todos os anos dezenas de bombeiros ficam gravemente queimados. Os que sobrevivem guardam na pele, e na vida, as marcas do combate. Reproduzimos o trabalho publicado no primeiro caderno a 7 de setembro de 2013, o ano do mortífero incêndio do Caramulo. Nesse ano, até à data de publicação desta reportagem, tinham morrido em serviço 7 bombeiros
O chefe José Costa vai logo avisando. “Olhe que isso não é assunto de que eu goste de falar.” A 6 de outubro de 2011, este bombeiro de Penedono, 51 anos, 30 certinhos de voluntário, foi combater mais um incêndio. O verão teimava em ficar e o pinhal de Baldos (Moimenta da Beira) em arder. “Éramos cinco, estendemos linhas de água e de repente o vento mudou. Em segundos fiquei rodeado de fogo, tudo ardia, o ar ardia, eu ardia. Foi tão rápido que o fato nem ardeu, só eu. E foi isso. Não há mais o que contar. É tudo para esquecer.”
Tenta manter a emoção fora do relato mas as palavras saem-lhe sem firmeza, com esforço, como se fosse uma obrigação resolver, avançar, esquecer. Mas como esquecer, se o corpo, o seu corpo, faz-lhe lembrar isso todos os dias. A barriga das pernas, os joelhos, as coxas, o abdómen, metade de um braço, o punho esquerdo, as costas, o rosto, até a voz, queimados, cicatrizados.
“Sofri queimaduras de 2º e 3º grau em 42% do corpo. Estive internado um mês em Coimbra, fizeram-me enxertos de pele, cirurgias reconstrutivas, mais um ano em casa sem sair. Dizem que um queimado é um doente para a vida, e eu acredito.” Voltou há poucos meses ao trabalho nos Bombeiros de Penedono, mas já não é operacional. Nem o corpo nem a cabeça o permitem. Ainda está em recuperação.
“Fui-me muito abaixo a seguir ao acidente. As dores, noites em claro, o espelho. A minha mulher e a minha filha a puxarem-me para cima, mas eu só matutava no que tinha acontecido, no que tinha corrido mal. E como ia ser depois? Eu sou bombeiro, é isso que eu sou.” O depois é agora. Ficou à frente da secretaria da corporação.
A sua segunda pele não gosta de sol, não aceita calor, não se hidrata sozinha, as cicatrizes ainda estão vivas, acentuam-se, mudam.
“Custa vê-los todos a sair para os fogos e eu ficar aqui. Não é que esteja pronto para ir… mas mexe cá dentro não ir.” Há uns dias decidiu tentar. Um incêndio perto. Foi. “Conduzi o carro de água, só isso, mas ainda estava a muitos metros do fogo e já não conseguia suportar o calor. Topei a cena e não voltei a fazer.” Outro dia, outro alerta.
Foi ao café, pegou no jornal. Na capa, um bombeiro morto. Ele, que não é homem para isso, foi-se abaixo. “Saí logo dali para não dar nas vistas. Ainda não sei lidar com isto, é como um trauma. Têm sido dias difíceis. Que verão, que agosto.” Setembro não começou melhor.
Só esta semana mais dois bombeiros morreram. Não no terreno, mas no hospital, ambos queimados com gravidade.

RESPIRAR FOGO MATA

Bernardo Cardoso faleceu na terça-feira no Hospital da Prelada, no Porto. Tinha 18 anos. Voluntário em Carregal do Sal, sofreu queimaduras de 2º e 3º graus em 55% do corpo – pernas, braços, dorso, face e pescoço – e lesões inalatórias profundas. O prognóstico foi sempre mau.
Mais do que pela extensão de pele atingida, a gravidade dos casos mede-se pela localização e pela profundidade dos ferimentos. A experiência diz aos médicos da Prelada que as lesões pulmonares agravam o prognóstico. Foi o que matou Bernardo. “Ficou a respirar numa área queimada durante muito tempo”, explica a internista Marta Azevedo. As broncofibroscopias diárias para aspirar a fuligem não chegaram para o salvar.
Não é fácil trabalhar na unidade de queimados. Entre 15% e 20% dos doentes graves acabam por morrer. São 150 a 200 vítimas mortais por ano.
Por vezes, os médicos só conhecem o verdadeiro rosto dos doentes pelas fotografias e passam semanas sem poder falar com eles. Mas todos conhecem os nomes de todos. E as suas histórias de vida. “O Bernardo fez 18 anos em fevereiro”, diz o cirurgião Alípio Silva. “Era filho único”, lembra Marta Azevedo.
Não foi o primeiro bombeiro a morrer-lhes este verão. António Ferreira, 45 anos, operador da central no quartel de Miranda do Douro, não resistiu às queimaduras em 80% do corpo. Foi a primeira vítima dos fogos florestais este ano.
Na unidade já só está um bombeiro, Daniel Falcão, de 25 anos. O fogo queimou-lhe 70% do corpo. O prognóstico é reservado. Mas já foi pior. A família acompanha-o através das janelas e dos intercomunicadores que compensam o isolamento forçado dos quartos individuais. É sempre assim. As infeções são o pior inimigo de um queimado.
No Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) a semana também foi marcada por mais um óbito. Há dois dias morreu Fernando Reis, 50 anos, voluntário em Valença desde 1987. Tinha 19% do corpo queimado. Parece pouco, mas atingiu a pior zona, crítica para a sua sobrevivência: extremidade cefálica, braços, tronco e pulmões.
Combatia um incêndio em Sanfins quando o vento revirou o fogo e o lançou na sua direção. Não teve como escapar.
Coimbra tem a maior das cinco unidades de queimados do país. A 28 de agosto, estava o incêndio da serra do Caramulo no auge, com as estatísticas de mortos e feridos a subir, o CHUC decidiu ativar o plano de contingência: nove camas de internamento na unidade, cinco camas de cuidados intensivos, uma área para doentes com dificuldades respiratórias, o bloco operatório convertido para suportar três cirurgias em simultâneo e ainda psicólogos de prontidão para acompanhar as vítimas.
“Sempre tivemos bombeiros queimados mas nunca estes números. Se não estou em erro, a última vez que ativámos o plano de contingência foi quando caiu um avião em Faro em 1992”, recorda Celso Cruzeiro, o diretor da unidade que tem atualmente quatro bombeiros internados. Dois com diagnóstico reservado, dois sem risco de vida.
“As vítimas de incêndios urbanos costumam ser mais graves, porque o fogo propaga-se em ambiente fechado. Mas o que vejo é que estes incêndios florestais são tão fortes que é como se o fogo estivesse aprisionado também, com um calor, um fumo e uma força imensos.” Quando os feridos chegam, Celso Cruzeiro anima-se se os ouve a gritar. Significa que as queimaduras não são tão graves assim, não atingiram as terminações nervosas.
Queimaduras de terceiro grau não doem. E raramente fazem vítimas mortais no terreno. As lesões só começam a agravar-se depois, a instalar-se, a enfraquecer o organismo. E a mente. “No caso dos bombeiros há quase sempre uma culpabilidade, ou porque conduziam a viatura, ou porque delinearam a estratégia, ou porque não ajudaram as populações.”

TRAUMA, STRESSE E DESÂNIMO

E é aqui, na mente, que entra António Reis Marques, diretor do serviço de psiquiatria e do centro de prevenção do trauma em Coimbra. “Há casos claros de stresse pós-traumático por quem viveu uma experiência extrema de perigo de morte, fobias que se criam, instabilidade emocional, quebra de ânimo.
São situações muito dolorosas, também relacionadas com a desfiguração corporal, que é preciso acompanhar desde logo e tratar devagarinho, com minúcia, como quem faz ponto cruz, e que não termina com a saída do hospital”, explica o psiquiatra.
Rui Ventura, 29 anos, queimado em 2002, foi arranjando truques para disfarçar as cicatrizes
Rui Ventura, 29 anos, queimado em 2002, foi arranjando truques para disfarçar as cicatrizes
Rui Ventura, 29 anos, teve alta de Coimbra há onze anos. Já teve tempo para equilibrar as emoções, mas elas continuam a rebelar-se. Basta morrer um bombeiro e volta tudo outra vez. “É como se fosse família, entro num luto doloroso”, conta este professor de Educação Física. Porque ele sabe o que o bombeiro passou, o terror, a morte cara a cara. Porque ele esteve lá. Ouviu o fogo zurrar, correr desalmado, viu-o chegar sem poder fugir.
Foi em 2002, Rui tinha 18 anos e poucos dias de terreno nos voluntários de Nelas. Ele e mais dois rapazes da mesma idade combatiam um incêndio em Caldas de Felgueiras quando foram surpreendidos. Tentaram correr atrás do carro de bombeiros pela estrada de alcatrão. O fogo a fazer 800 metros num ai.O fumo a não deixar ver nem os pés, a estrada a desaparecer. De repente só mato denso, giestas, pinhal. E as forças esgotadas perante um caminho sem saída.
Rui enfiou os colegas numa poça de água. Ele já não coube. Um deles ligou ao pai do telemóvel, despediu-se, mandou beijos à mãe. Rui ligou o 117, a linha de alerta de incêndios. Queria que o helicóptero despejasse ali água, mas não havia. Então viu uma pedra enorme. “Pensei: se me colocar atrás, o fogo passa tão veloz que talvez escape. Ajoelhei-me, pus as mãos na cabeça e esperei. Gritei, senti-me a queimar, o corpo a arder, a cara a derreter, o nariz, a boca.” Sobreviveram os três mas só ele se queimou. Ficou desfigurado.
No hospital a mãe não o reconheceu, pensou que estivesse a espreitar o quarto errado. Ele só se viu ao espelho dez dias depois, e pediu para morrer. Hoje as cicatrizes continuam lá, na cara e nos braços, mas ténues. As cirurgias e os cremes obrigatórios mantêm-se. Mas há muito que lhe deixaram de pagar as despesas médicas. O seguro não as abrange. De indemnização recebeu mil e poucos euros. À fúria de ter sido apanhado pelo fogo junta agora a revolta pelo “desprezo e abandono dos bombeiros”. “E a farda que nos dão? E as botas? Aquilo não protege ninguém. Somos voluntários mas não nos voluntariámos para morrer.” Rui manteve-se bombeiro, agora em Canas de Senhorim. Parte para cada incêndio com raiva e ganas de vingança. “Garanto-lhe que o fogo nunca mais me vai trair.”
Idem BPS

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