domingo, 28 de fevereiro de 2016

Wellington Cantal – A convicção de um guerreiro!


Wellington Cantal e Cida Cantal são pessoas simpaticíssimas. Ele cearense, da cidade de Caucaia, antiga Sore, ela paulistana.

Ambos são advogados, ambos são idealistas, ambos têm a mesma visão dos problemas da nossa Pátria e plena consciência de que é preciso coragem e determinação para resolvê-los.

Sou amigo e admirador do Cantal e da Cida, conheço pedaços da provação que ambos passaram por serem idealistas, portadores de nobres sentimentos humanos, usando sempre o seu saber, na defesa dos mais humildes e necessitados. Nesse mundo que vivemos desprovidos desses nobres sentimentos, reflexo da atuação da mídia irresponsável e sem compromissos com o social, propagando nas 24 horas do dia a violência, o sexo e a droga; faturando cada vez mais com essas matérias safadas numa eterna lavagem cerebral, no nosso pobre e sofrido povo.

Cantal fazia Direito em Fortaleza, rapaz estudioso não perdia os eventos culturais da cidade, logo não poderia deixar de comparecer à Conferência, que o famoso jurista, Miguel Reali, proferiu sobre A Teoria Tridimensional do Direito, tendo, no decorrer da mesma, feito algumas perguntas ao conferencista.

Após a conferência, na saída, o professor Joaquim Pimenta se aproximou e disse-lhe: “Jovem, você tem futuro, vá para o Rio de Janeiro”. Cantal respondeu-lhe: “Professor sou pobre, não tenho dinheiro, como é que eu faço?” “Vá, me procure”.

Deu-lhe o endereço de sua residência no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Isso foi em 1957. Joaquim Pimenta se encontrava em Fortaleza a fim de proferir uma conferência, comemorando o centenário de Clóvis Bevilácquia.

O professor Joaquim Pimenta, lecionava na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, era catedrático do Direito do Trabalho.

Foi um dos pais da Lei Sindical, datada de 1931, da Lei de 2/3, essa lei defendia o trabalhador brasileiro, obrigando as empresas estrangeiras instaladas no Brasil, a contratar 2/3 deles, e, também da Lei que presenteou o nosso trabalhador, com a sua Carteira Profissional, da Lei de Convenções Coletivas de Trabalho, de 1932, conforme afirma Mestre Arnaldo Sussekind, de quem foi professor, em depoimento, na sua riquíssima biografia, organizada por seis mãos femininas, Ângela Castro Gomes, Eliana da Fonte Peçanha e Regina de Moraes Morel, intitulada ARNALDO SUSSEKIND – Um Construtor do Direito do Trabalho.

A transferência de Cantal, da Faculdade de Fortaleza para a Faculdade do Rio de Janeiro - coisa inimaginável na época – foi obtida rapidamente, com o apoio do professor Joaquim Pimenta.

Filho de pais pobres, a luta de Cantal pela sobrevivência, no Rio de Janeiro, não lhe foi fácil, nada fácil. Vendedor de publicidade, de máquinas de datilografia, enfim, já estava matriculado, na Faculdade Federal, na capital da República, estudando. Uma vitória! Tinha como professores nomes ilustres como o de Joaquim Pimenta, Roberto Lira, Célio Boja, Hélio Gomes e outros. “A Faculdade do Catete era o esteio dos grandes mestres, ela pagava aos professores mais do que as outras, então todos os professores queriam ser professores lá”, afirma Cantal.

Na cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, visitava os sindicatos tentando vender as máquinas de datilografia. “Já estava no 4º ano quando conheci um grupo de advogados que trabalha para os sindicatos, Everaldo, Martins, José Geraldo Martins, José Maria, esses foram os meus primeiros mestres na advocacia trabalhista, eu fazia as audiências, aprendendo o 'beabá', dai passei a estudar mais o Direito do Trabalho, fiz outros cursos.

Forma-se em 1962, reside no Rio, instala seu escritório na Av. Presidente Kennedy, no centro de Caxias. A defesa dos trabalhadores e dos posseiros o empolga, seu escritório é movimentadissimo, são oito sindicatos de trabalhadores que recebem os seus serviços profissionais. Participa ativamente de atividades culturais e políticas, sem falar na defesa dos posseiros, na luta constante contra os grileiros, que forjavam títulos de propriedade nos cartórios, falsificavam documentos e expulsavam as famílias, famílias de posseiros que já estavam na terceira geração de posse daquelas terras, cultivando-as!

“Os grileiros eram militares, ou filhos de militares, eu era conhecido como advogado da CGT – Central Geral dos Trabalhadores. Quando eu entrava para conversar com o juiz, ele achava que eu atuava para subverter a ordem”.

O pai de um capitão que forjou esse título de propriedade, com um monte de jagunço, passou a expulsar os posseiros.

Eu entrei com uma Ação de Manutenção de Posse. Consegui uma liminar e para fazer cumprir essa liminar foi uma batalha tremenda. O Oficial de Justiça não queria ir. O Delegado de Polícia também não. A liminar precisava ser cumprida. Encontramos uma fórmula: Tinha um delegado de polícia, ele era amigo do Secretário da Segurança Pública, esse delegado era um homem sério, chamava-se Hélio Estrela. Daí, eu conseguir sustar a saída dos posseiros que estavam sendo expulsos por militares. O capitão do Exército, filho desse grileiro foi o que me prendeu em Caxias, o delegado Hélio Estrela, depois, com a Ditadura Militar, foi torturadissimo pelos seus colegas.

Cantal estava no Fórum, em Duque de Caxias, onde presidia a OAB da região, quando uma patrulha do Exército, comandada pelo Capitão Ronald Carvalho, filho do grileiro, o prende e o leva para a Vila Militar.  Lá, é interrogado, logo que chegou.

Com a convicção própria de um homem de bem, de um socialista, nega-se sistematicamente a denunciar seus colegas, companheiros e amigos. O capitão chefe do interrogatório manda levá-lo para cela, isso foi na tarde de sua prisão. Na madrugada trazem-no de volta, a frente do grupo está o filho do grileiro, capitão.

Ronald de Carvalho, que o prendeu. Fixando-me nos olhos, tomado de forte emoção e revolta, com a voz embargada, Cantal lembra-se dos sofrimentos que passou nas mãos desta 'besta-fera' fardada de capitão do Exército brasileiro. “Ele é uma figura que eu não posso esquecer. Torturava com muita frieza. Eu negava que era comunista. Essa confissão era o caminho para entregar outras pessoas, era o primeiro passo. Você confessa que é comunista. 'Mas que organização? ' “Quem eram os membros dessa organização?”

Acabado o interrogatório volta para cela. “De madrugada foram-me buscar. Já fui direto para o pau de arara. Isso era comandado pelo capitão Ronald de Carvalho, um sargento e mais 3 ou 4 soldados. Quando era necessária uma tortura mais sofisticada eles traziam uma equipe da Polícia Civil. Esse pessoal era mais sofisticado na tortura. Eles colocavam o sujeito pendurado, com os pés para cima, amarrados numa viga de ferro, tirava a roupa, enfiava um cassetete no seu anus, eu sai de lá com vários problemas: muito depauperado, magro, com problemas na coluna vertebral, com algumas vértebras quebradas, com essa cicatriz na testa, um tímpano estragado, escuto menos, quase nada, tudo isso sob o comando do Capitão Ronald de Carvalho, que eu vim encontrar depois, depois, muito tempo depois, na minha segunda prisão, aqui em São Paulo.

O meu advogado aqui em São Paulo, foi o Iberê Bandeira de Melo, no Rio o Modesto Silveira. O Iberê me disse: “Cantal, tem um juiz auditor, aqui na auditoria militar, ele quer te ver, chamava-se Nélson, foi seu colega na faculdade.”

“Nós chamávamos ele de Nelsinho, na faculdade. Não me opus. Marcamos. Cheguei com Iberê, o Nélson vem com sua beca de juiz, sentou, estendeu a mão, cumprimentei, ele não falou praticamente nada. Eu estava abatido, ele sabia que eu tinha sido torturado aqui no DOI-CODI. Esse encontro foi na auditoria militar, de repente eu olho para os componentes da mesa, e quem estava lá? O capitão Ronald de Carvalho, como auditor militar, um torturador, capitão há oito, quando da minha primeira prisão, virou coronel auditor militar, era tudo escolhido, era esse sujeito que ia me julgar.”

Pergunto ao Cantal qual seria sua reação se encontrasse o capitão Ronald de Carvalho, ele me responde: “Eu fui muito ajudado aqui em São Paulo por Dom Evaristo Arns, ele tinha uma áurea de Santo, ele passou para mim, alguma coisa espiritual, ele disse para eu não guardar muito ódio, nem rancor, nem mesmo pelos meus torturadores, porque são homens que certamente foram maus filhos, maus encaminhados na vida, porque quem vira torturador perdeu todo valor do ser humano. Se eu encontrasse o meu torturador eu perguntaria: Capitão, o senhor lembra-se daqueles episódios, daquelas torturas, valeu a pena para o senhor? O que é que o senhor lucrou? Eu lucrei mais amadurecimento, mais sabedoria diante da vida. E o senhor? Sua família como é que está hoje? Estão bem. Os seus filhos, soube educá-los?”

“A gente não muda nada com ódio e rancor!”

Cantal, após as torturas no pau de arara, porradas, cassetetes no anus, durante horas e horas, você já sai da sala de tortura estragado e volta para a cela, era madrugada, os companheiros de cela, esboçaram alguma reação?

Ele responde-me: “Geraldo, eu estava numa solitária, para sair da solitária a OAB lutou muito, pois eu tinha direito a uma cela especial como portador de curso universitário. A Auditoria mandou que eu fosse transferido para uma cela especial. O que eles fizeram? Eles pegaram uma cela isolada, fecharam toda ela com material escuro, não entrava uma réstia de luz, me puseram isolado e disseram: “Tai, estamos cumprindo as ordens da Auditoria, essa é sua cela especial”.

“Um colchão no chão e um buraco, pelo qual eu recebia comida. Fiquei um ano sem receber visitas, fiquei um ano sem tomar um banho de sol, passei, sem ler nada, sem falar com ninguém, um ano e pouco preso, na Vila Militar, no REI – Regimento Escola de Infantaria. No dia 13 de dezembro de 1968, foi baixado o Ato Institucional número 5. Foi o dia da maior tortura, eles gritavam: “Pronto! Acabou! A lei somos nós! Foi uma tortura terrível Geraldo, tortura de toda natureza, tudo o que não se pode imaginar".

Um dia, depois que fui para outra cela, um soldado deixou cair um pedaço de jornal, menos da metade de uma folha. Eu li e reli aquilo mil vezes, de outra feita um 'cabo', com dois soldados iam me levar comida diariamente, abriam a porta e me entregavam a comida. Esse cabo esperou que os saldados dessem alguns passos e deixou cair um livro. Era as poesias de Ho Chi Min, o libertador do Vietnã. Levei muito tempo para me lembrar, ou saber porque aquele rapaz fez aquilo! Lembrei-me, ele havia sido meu aluno.

“Como não tinham mais motivo para me torturar, me enviaram para o Regimento Caetano de Faria, da Polícia Militar. Um dia mandaram me buscar, eu pensei que ia começar tudo de novo. Aí me fizeram uma acareação com Arueira, esse elemento era do meio sindical, pertencia ao Partido Comunista, depois passou a ser informante deles, ficou conhecido como informante da polícia, ele dizia que eu era do Partido Comunista. Eu neguei na cara dele.”

“Passei seis meses no Regimento Caetano de Faria, só quando foi descoberto por um promotor, o meu advogado Modesto Silveira entrou com um Habeas Corpus e eu fui libertado. Vou para a clandestinidade, eu sabia que eles iam me buscar de novo, o capitão Ronald de Carvalho não se conformava que eu não tivesse falado nada. Isso é uma derrota para o torturador. Isso é uma derrota para o torturador, a maior vingança do torturado é não dar o que o torturador quer!”

“Eu estava fragilizado, não dormia há muito tempo. Os companheiros me mandaram para um clinica, para fazer terapia. O Dr. Saad, médico, membro do Comitê Central do PCB é que me aplicou a sonoterapia, dormi 15 dias”.

A repressão o procura. Alguns companheiros seus já desapareceram nas câmaras da tortura. É preciso tomar todas as precauções. De posse de documentação falsa, Cantal consegue embarcar, no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, seu destino é Paris. Após alguns dias em Paris, segue para Moscou.

“A solidariedade dos companheiros soviéticos foi excepcional. Passei 6 meses no Hospital Central de Moscou. Passei por duas operações”, diz-me Cantal.

Seis meses internado no hospital, duas operações para se recuperar das torturas que lhe foram praticadas, mais de um ano no REI, na Vila Militar, do Rio de Janeiro. Quanto nos entristece saber que as dependências das nossas gloriosas Forças Armadas, Forças Armadas que durante a Segunda Grande Guerra Mundial, comandada pelo saudoso General João Batista Mascarenhas de Moraes, escreveram as suas mais belas páginas, nos campos de batalha da Europa, lutando pela liberdade e combatendo, com rara coragem, o nazismo de Hitler e o fascismo de Mussolini. E pensar que os quartéis das Forças Armadas serviam de câmaras de torturas e abrigavam verdadeiros monstros, monstros que prendiam, espancavam e assassinavam covardemente as suas vítimas completamente indefesas. Rubens Paiva, Wladimir Herzog, David Capistrano, Luiz Maranhão, João Massena, são algumas delas. Conheci todas. Quanto isso nos mutila!

Quando deixa o hospital em Moscou, após um período de total recuperação, vai estudar. “Passei cinco anos na União Soviética, fiz doutorado. Eu era um rato de biblioteca, estudava horas, horas e horas. No Brasil se estuda pouco, os que gostam de estudar não têm recursos!”

Cantal encontrou muitos brasileiros em Moscou? Ele responde: “Muitos brasileiros, sul americanos, europeus, eu convivi muito com o pessoal que estava na guerra do Vietnã; companheiros mutilados, sem pernas, pessoal do Laus, pessoal da Guiné, dos Africanos. Do pessoal brasileiro, eu convivi muito, é uma memória saudosa que eu tenho de Gregório Bezerra, um grande líder comunista, tive um convívio muito rico com Gregório, inclusive ajudei-o a datilografar uma parte das suas memórias, quem também trabalhou as memórias do Gregório foi o Ferreira Goulart, ele fazia uma parte eu fazia outra. Convivi com esse pessoal todo. Convivi com o Prestes, a família do Prestes eu fui apanhar no aeroporto. Lá vinha Maria Prestes, com aquela penca de filhos, se eu não me engano eram 7.

“Eu tinha escritório na Senador Feijó, ao lado da Igreja, na Praça da Sé, nosso escritório era no 6º andar, as badaladas dos sinos, as 12 e às 18 horas, não dava 15 metros da minha mesa, eu achava lindo, assisti aqueles sinos badalarem.”

“Eu estava jurado de morte pelo CCC – Comando de Caça aos Comunistas, nós vivíamos numa corda bamba, eu estava no saguão, próximo ao elevador, quando eles invadiram com estrema violência, eu resisti à prisão. Foi o que salvou a minha vida, ter resistido, porque nesse período todo, eles prenderam vários companheiros que desapareceram.”

Meus colegas atravessaram a rua do outro lado estava a OAB, aí requereram Habeas Corpus, e aí legalizaram minha prisão. Quando cheguei no DOI-CODI, o comandante quando viu o meu estado, gritou: “Vocês são uns incompetentes, esse homem era para chegar sem ninguém, saber.” Porque as equipes de 'resgate' agiam de acordo com a pessoa que iriam prender, mas, no meu caso como houve resistência, 7 pessoas do prédio foram para o hospital, sem ter nada a ver com isso, todas quebradas também. Quando eu fui libertado, e voltei ao prédio, uma moça que lá trabalhava me disse: “Eu fui para o hospital, mas eu me vinguei, tá vendo estas unhas aqui, feri a cara de um deles de cima em baixo.”

“Essa reação foi que me salvou a vida, essa reação muitos companheiros passaram a praticá-la. Antes e Marighela e Apolônio Carvalho já haviam resistido.”

Porradas, pau de arara, cadeira do dragão, lembro-me que o líder sindical Antônio Aparecido Flores, meu saudoso amigo, que também como você foi barbaramente torturado, falava-me da tortura com os dois pés em cima de duas latas de óleo, se caísse era espancado por dois torturadores. Você que passou por tantas torturas, também passou por essa?

“Quando eu estava no DOPS, quando houve a Revolução Cravos, em Portugal, eu encontrei de passagem com Flores e o Afonso Deleles e outros dirigentes sindicais que estavam presos. Na minha cela, a cela dos intelectuais tinha alguns professores da USP, presos porque estavam lendo o 'Capital, de Karl Marx”.

“Esse tipo de tortura, foi ensinado pelos torturadores americanos, que vieram em 1972 ou 1974, dar curso em nosso País. Ensinaram alguns métodos a mais, esse, por exemplo, passou a ser muito difundido. Tinha outro: Deixar o cidadão de pé, com os braços erguidos no alto, amarrados numa viga de ferro, isolado do chão, fizeram isso com Neusa, na frente do marido, para variar colocaram ela de ponta cabeça, com os pés amarrados e pendurados numa barra de ferro.”

“Outra tortura, o cidadão fica de pé, com as mãos amarradas, dia e noite, se cair eles batem, batem, batem. Foi o que aconteceu comigo. Houve um momento que eu desmaiei. Levaram-me para o hospital, senão eu teria morrido, porque eu tive uma parada cardíaca”.

Pergunto ao Cantal, quanto tempo ele passou de pé, com as mãos amarradas, erguidas por cima da cabeça? Ele pensa por um certo tempo e responde: “Umas 48 horas seguidas é muito tempo, muito tempo, encapuzado. É uma questão do instinto humano, para não levar pancada. Resistir!

Mais uma pergunta: Como funciona a cabeça da vítima, após receber tanta violência?

“As primeiras horas, você fica muito oscilante entre o desespero e uma tentativa de encontrar o seu ponto de equilíbrio emocional. Para isso você tem que pensar!”

Pensar, refletir e lutar deveria se constituir numa tarefa prioritária da Nação. Não podemos, não queremos que o arbítrio se instale nunca mais sob os céus da nossa Pátria! Que a tortura, os assassinatos cometidos, dentro ou fora da nossas Forças Armadas, nas nossas Forças Auxiliares e nos organismos de segurança civil, nunca mais se repitam.

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