quinta-feira, 30 de maio de 2019

Opinião | Ainda sobre a flecha de Notre-Dame

Renato Murta de Vasconcelos

Muito se escreveu sobre o incêndio da catedral de Notre-Dame de Paris, ocorrido no dia 15 de abril, uma segunda-feira da Semana Santa. Contudo, dada a incomensurável relevância do tema, nunca será demasiado retornar a ele.
O trágico incêndio deixou Paris — e o mundo inteiro — estuporado. O desaparecimento de uma joia de beleza única da civilização cristã produzia, no mesmo momento em que acontecia, uma sensação de desamparo, de impotência, de uma perda irremediável.
Notre-Dame, a catedral-escrínio, receptáculo da coroa de Espinhos de Nosso Senhor, a catedral-fortaleza, guardiã da túnica do rei-cruzado São Luís IX, onde o gênio do espírito francês deixou o que de melhor elaborou a Idade Média, ameaçava ruir.
O auge desse sentimento de desamparo, com a correlata tristeza que se abatia sobre os expectadores do sinistro, se deu quando, em meio às gigantescas labaredas, desmoronou-se a flecha da catedral.
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A flecha de Notre-Dame, a última parte do majestoso templo gótico a ser construída, foi edificada entre 1220 e 1230. Ela tem uma história interessante. A construção da catedral iniciou-se em 1163, sob o reinado de Luís VI, e só terminou inteiramente em 1245, em pleno reinado de São Luís IX.
Dotada de duas torres massivas e severas a protegerem a maravilha arquitetônico-teológica da fachada, em cujo centro nós contemplamos a rosácea que emoldura a estátua de Nossa Senhora, Rainha do Céu e da Terra, a flecha concentrava o que a catedral tinha de melhor: a busca do sublime, da suprema perfeição, das realidades diáfanas e transcendentes da Fé cristã, a verdadeira luz da Idade Média.
Essa, que foi a primeira flecha da catedral continha seis sinos, um dos quais de madeira para ser tocado na Semana Santa, ornou Notre-Dame por mais de cinco séculos. Mas os inexoráveis dentes do tempo — tempus edax rerum — os que nada poupam, não lhe abriram com reverência uma exceção: a bela flecha estava inclinada, ameaçava ruir e precisava ser restaurada.
Em 1787, no ano da Assembleia dos Notáveis, nos primórdios desse grande incêndio religioso-social que foi a Revolução Francesa, começaram os trabalhos… não de restauração, mas de demolição. Uma tragédia histórico-arquitetônica terminada em 1792. O que houve? Uma horrenda “decapitação da flecha“, totalmente desmontada e substituída por uma medonha placa de bronze.
Assim, em pleno auge da Revolução Francesa, quando a monarquia estava sendo derrubada para se aboletar em seu lugar a república jacobina, concluiu-se a “execução” da primeira e multissecular flecha de Notre-Dame, precedendo de meses a decapitação do monarca Luís XVI.
Victor Hugo, em sua célebre obra Notre-Dame de Paris, publicada em 1831, conta a história da primeira flecha, lamentando a “marmita” de bronze que a substituiu. Mas sua longa vida permitiu-lhe ver a segunda, toda inspirada na primeira, construída pelo arquiteto Viollet-le-Duc em 1859.
No século XIX, por sete décadas, Notre-Dame permaneceu desfigurada. Faltava-lhe a flecha. Agora, depois do incêndio do mês passado, existe o grande risco de os republicanos de hoje imitarem os de 1792. O presidente Macron já externou seu desejo de restaurar Notre-Dame segundo padrões modernos. Não sem suscitar imensa indignação de incontáveis franceses que, aliviados, puderam assistir, no início deste mês, a uma campanha da TFP francesa nas ruas de Paris em prol da plena e fiel restauração de Notre-Dame.
Oxalá a Franca e o mundo não tenham que esperar 70 anos por essa restauração.

ABIM

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