quarta-feira, 22 de junho de 2016

Macroscópio – Agora que lá passámos, como ficará a Europa depois do Bremain (ou do Brexit)?

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Pronto. Portugal lá sofreu e lá empatou, o país respirou fundo apesar de uma prestação de fazer suster a respiração. Ora a suster a respiração é como estará amanhã toda Europa quando os britânicos forem finalmente votar no referendo mais aguardado dos últimos anos. Há muita ansiedade no ar, e não apenas no Reino Unido, onde hoje as duas campanhas deram o tudo por tudo na recta final para convencerem os indecisos numa consulta que as sondagens continuam a apresentar como muito indefinida, apesar dos avanços do “remain” nos últimos dias (vale a pena seguir a cobertura em directo do Observador). Seja lá como for, suceda o que suceder no Reino Unido, as ondas de choque vão sentir-se um pouco por toda a Europa, pelo que o Macroscópio vai procurar antecipar hoje um pouco do que poderá ser o “dia seguinte”.

De facto, como escreve Timothy Garton Ash no El Pais, emPiensen lo que piensen, voten, “Lo único en lo que están de acuerdo las dos partes de un debate cada vez más enconado es en que esta es la decisión más importante que van a tomar los británicos desde hace 40 años.” Trata-se de um texto que faz depois uma análise interessante do que pode significar uma alta participação eleitoral (ou uma elevada abstenção), sublinhando algumas especificidades menos conhecidas do sistema eleitoral britânico.

Conhecer o sistema britânico, e a forma de pensar dominante no Reino Unido, é também importante para perceber o que pode passar-se se não quisermos ficar pelas simplificações que reduzem tudo ao “medo” (como arma do “remain”) ou ao ódio (como argumento do “leave”). No Le Monde, Catherine Marshall, uma investigadora francesa especializada na civilização anglo-saxónica, esteve a responder a perguntas dos leitores – em #BrexitOrNot : « La critique revient toujours sur la légitimité démocratique des instances européennes » –, nomeadamente sobre o porquê de os ingleses terem tanta resistência a decisões tomadas fora do Reino Unido. Vale a pena ler a sua resposta:
Selon le constitutionnaliste victorien A.V. Dicey, il y a deux grands principes de la Constitution non codifiée britannique : la souveraineté parlementaire et la suprématie du droit. Depuis la glorieuse révolution de 1688, le pouvoir du parlement s’est affirmé par rapport au pouvoir de la Couronne. A partir du 19e siècle, plusieurs constitutionnalistes, Bagehot et Dicey en particulier, ont expliqué que la suprématie des lois du royaume votées par le parlement était l’édifice sur lequel reposait la Constitution. Cela signifie que seul le parlement peut faire et défaire les lois, et nulle autre institution ne peut se substituer à lui. Le parlement est souverain parce qu’il représente la nation, c’est donc bien une démocratie parlementaire, et cette souveraineté parlementaire ne peut pas se partager. C’est pourquoi la primauté du droit communautaire européen pose problème aux Britanniques.

Ora é precisamente este argumento da soberania do parlamento que vi ser retomado por João Pereira Coutinho na única coluna de um português que encontrei a defender abertamente o Brexit – só que publicada num jornal brasileiro, a Folha de São Paulo: O projétil europeu. Escreve ele, num texto em que cita Daniel Hannan, um dos defensores da saída do Reino Unido: “Os ingleses que defendem o "Brexit" nunca se opuseram a um mercado comum. O que eles não toleram, porque nunca toleraram, é a existência de um poder exterior que suplanta e marginaliza o papel secular do parlamento.” Para depois acrescentar: “É também por isso que espero pela saída do Reino Unido. A utopia federal que a União Europeia persegue é clara, e creio que irreversível. E essa utopia implica a rendição das soberanias nacionais a um único poder burocrático, centralizado –e incontrolado.”

Não é assim que pensa, bem pelo contrário, Rui Ramos, que aqui no Observador considerou que neste referendo Não é só a Europa, é a democracia que está em causa. Para ele “A UE é uma aliança de democracias, unidas por valores como os consubstanciados no Estado de direito, na economia de mercado e na protecção social. Não é verdade que a UE seja dominada por uma burocracia anónima, como clamam os demagogos: é dirigida por governos democraticamente eleitos em cada país e com apoio nos parlamentos nacionais. Esta aliança europeia (…) formou a base de um entendimento entre os grandes partidos democráticos da direita e da esquerda, que assim se puderam dividir em relação a políticas públicas, sem terem de se dividir em relação aos princípios constituintes do regime.”

Houve mesmo quem fosse mais radical, chegando mesmo a expressar-se de uma forma quase hostil para com o Reino Unido. Foi o caso de Manuel Villaverde Cabral também no Observador – em Irá a Inglaterra sair mesmo da UE? distingue a Inglaterra da Escócia, do País de Gales e da Irlanda do Norte, para considerar que “A perda do império é a causa remota da disposição mental soberanista dos ingleses das gerações mais antigas perante o continente europeu. Dividir e reinar foi sempre a sua divisa.” – ou de Paulo Rangel no Público – onde escreve, em A falsa pax britannica que “ao invés do que por aí propala a habitual brigada anglófila, o debate sobre o referendo do dia 23 de Junho tem sido básico, populista, em muitas ocasiões, repelente e aviltante”.

Mas passemos lá ao dia seguinte, começando por citar dois estudos. O primeiro é Out and down – Mapping the impact of Brexit, um relatório da The Economist Intelligence Unit, que analisou os diferentes sectores da economia britânica e previu que um possível Brexit terá um impacto económico muito negativo: “We expect real GDP in the UK to be 6% below our baseline forecast by 2020 if voters elect to leave. This economic pain would be coupled with political instability, as signi cant doubts emerge about government cohesion. The impact will be serious, and prolonged”. Já a Standard & Poor's estudou o impacto da possível saída do Reno Unido noutras economias em Who Has The Most To Lose From Brexit? Introducing The Brexit Sensitivity Index. O ponto a reter desta análise mais curta é que Portugal não está entre os 20 países onde o impacto será maior, como se verifica no gráfico abaixo:

 
Seja lá como for, como se escreve no Wall Street Journal, ‘Brexit’ Vote Will Change Europe, No Matter the Outcome. Isto porque, entre outras coisas, “The referendum, at a minimum, has delivered a shock to Europe’s political classes, calling into question what some had once regarded as an inevitable march toward a federal EU. “Obsessed with the idea of instant and total integration, we failed to notice that ordinary people, the citizens of Europe, do not share our Euro-enthusiasm,” European Council President Donald Tusk observed in a speech in late May. “The specter of a breakup is haunting Europe, and a vision of a federation doesn’t seem to me like the best answer to it.”

Ora aqui está um ponto importante, que o mesmo jornal retoma num longo editorial de defesa do “remain”, Britain and Europe’s Fate: A faltering Continent needs the U.K. more than vice versa. O diário económico de Nova Iorque é bastante claro: “The British people go to the polls Thursday in their most important vote since they elected Margaret Thatcher in 1979. While we hope Britain votes to remain in the European Union, the reasons have less to do with the sturdy British than with the damage an exit could do to a Europe that is failing to meet the challenges of the 21st century. America’s interests lie in a free and prosperous Europe, and we’ve long thought this is best served with Britain as part of the European Union to balance France and Germany.”

Mas se esta é a visão que parece predominar do outro lado do Atlântico, na Europa teme-se, entre outras coisas, o efeito de contágio. Isso mesmo se escreve no Le Figaro, em Brexit : le risque d'un effet domino en Europe. Por outras palavras: “Le risque est grand, en effet, que d'autres pays ne s'engouffrent dans la brèche ouverte par le Royaume-Uni, «soit en organisant à leur tour un référendum, soit en usant de chantage, en brandissant cette menace si Bruxelles ne cédait pas à leurs exigences, analyse Pauline Schnapper, professeur de civilisation britannique contemporaine à la Sorbonne nouvelle. La crainte dans beaucoup de capitales européennes est donc qu'un Brexit soit la première étape d'une désintégration progressive du projet européen»”.

No El Pais, em El continente paralizado, também se considera que “La pérdida de mayorías en los parlamentos y la catarata de plebiscitos dificultan la política europea”. Isto por “Estas citas electorales provocan un efecto hibernante”.

Na Europa teve-se de resto a sensação de que uma intervenção muito activa dos seus dirigentes na campanha britânica – à semelhança da intervenção sem meias palavras de Barak Obama, que se deslocou a Londres – até podia ser mal sucedida. Isso mesmo se refere em ¿A qué se debe el silencio de la UE en la campaña del 'brexit'?, uma análise do jornal online El Español. Em concreto: “En el colegio de comisarios de Juncker se discutió qué actitud adoptar frente al referéndum y la decisión fue quedarse al margen por la imagen negativa que tienen las instituciones europeas en Reino Unido. “Nos han retratado tan mal que nuestra intervención podía hacer más daño que bien”, asegura uno de los miembros de su equipo. El resultado es que en las ruedas de prensa diarias que ofrece el Ejecutivo comunitario a la prensa acreditada en Bruselas apenas se habla de la consulta, ni siquiera para desmentir argumentos falsos de los partidarios del brexit.”

No dia seguinte já todos se deverão manifestar, sendo de destacar a reunião dos quatro presidentes organizada pelo presidente do Conselho, Donald Tusk, com Jean-Claude Juncker (Comissão), Martin Schulz (Parlamento) e Mark Rutte (presidência holandesa). Teresa de Sousa procura antecipá-la, no Público, em precisamente O dia seguinte, onde escreve que “Nem sequer existe um consenso entre estas quatro figuras que representam as principais instituições europeias.”

Antes de terminar apenas mais umas referências breves. A primeira para o significativo apelo da maior revista alemã, a Spiegel: Don't Leave Us! Why Germany Needs the British. É muito curioso ver como o artigo argumenta a favor da permanência do Reino Unido: “We need the British because they belong to Europe, and because without them, the union of European peoples becomes pointless and lost. We need them because they are part of the community of pragmatic, reasonable countries and because they are politically, culturally and economically similar to us Germans. They are closer to us than the Portuguese or the Croatians; we share their scepticism of state profligacy; and we also share their frustration with the EU. Only with the British can we make the EU better and lead it into a new future. Without them, we would have to walk this path without a significant part of Europe alongside us.”

Outra perspectiva interessante, mas de sentido oposto, é a de John Mills, alguém que fez fortuna com um império de bens de consumo, que é um dos grandes financiadores do partido trabalhista e, ao mesmo tempo, figura de destaque na campanha pelo Brexit. Numa entrevista ao Observador – “O vosso vinho português vai continuar a ser bem-vindo” – ele dá a perspectiva de uma parte da esquerda britânica que também está pela saída: “É bem sabido que as grandes empresas preferem a continuidade na União Europeia, e fazem-no em interesse próprio. Eles querem que o Reino Unido seja dominado por uma organização supranacional que eles conseguem influenciar através do lóbi, para se certificarem que são aprovadas regulações que lhes convêm.”

Finalmente, um alerta da Foreign Policy que pode tocar milhões de pessoas: The Brexit Could Be Bad News for ‘Game of Thrones’. Isto porque, em concreto, “The European Union helps fund production of HBO’s epic in Northern Ireland. If the U.K. leaves, that money could too.” O que talvez seja argumento para muitos fãs irem esta quinta-feira às urnas.

Até lá, e até termos uma ideia do resultado, despeço-me com desejos de bom descanso, boas leituras e mais um pouco de reflexão sobre como este referendo, apesar de não ser nosso, já está a mudar um pouco a nossa Europa. O que pode fazer com um sorriso dos lábios apreciando um pouco do humor britânico (e do exagero) de Jonathan Pie...

 
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