terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Macroscópio – Mário Soares, o adeus. O que vale a pena ler

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
A morte de Mário Soares, aos 92 anos, dominou a atenção de todos ao longo dos últimos dias. Recordou-se a sua vida, recuperaram-se entrevistas, recolheram-se depoimentos, folhearam-se álbuns de velhas fotografias e vídeos com muitas décadas. Não é possível, no Macroscópio, resumir ou mesmo agregar tudo o que de relevante foi publicado ou emitido, mas é possível reunir alguns trabalhos que ajudarão os leitores a “navegar” entre o muito que foi publicado – na suposição de que já não estão um pouco saturados com tanta informação. Agrupá-los em diferentes blocos.
 
92 anos de vida e de luta
 
Em Portugal não existe a tradição do obituário como arte maior do jornalismo (como sucede nos países anglo-saxónicos, por exemplo), mas mesmo assim, para quem quiser percorrer a biografia de Mário Soares, aqui ficam algumas sugestões:

 
Entre o testemunho pessoal e o retrato de vida
 
De entre os textos que fizeram, num registo mais analítico, o retrato de Mário Soares e procuram fixar o seu contributo para a História, há quatro que, na minha opinião, se destacam. Dois de duas jornalistas. Os outros dois de historiadores.  
  • Mário Soares, o lutador, de Maria João Avillez no Observador, o testemunho de uma jornalista que o acompanhou em muitos dos momentos cruciais da sua vida política e que neste texto recorda inúmeros e significativos episódios dessa sua experiência. Como a memória que tem do jantar do 80º aniversário, aquele em que Mário Soares anunciou que se retiraria, para sempre, da política, uma garantia que depois não cumpriria: “Fizemos aliás os dois mal: eu, por ter acreditado; o dr. Soares, por não ter cumprido. Mais uma vez, não teve importância. Os seus combates – os que mudaram irreversivelmente o rumo das coisas – já estavam inscritos na História.
  • Amava a vida. E, portanto, a Liberdade, de Teresa de Sousa, no Público, um texto mais político: “Tinha uma força anímica difícil de acompanhar. Dava-se bem com toda a gente. Mas não perdoava facilmente a quem o traía. Tinha enormes defeitos que eram o preço das suas qualidades únicas. Como quase todos os grandes líderes das democracias com quem conviveu ou que admirou. Churchill ou Brandt. Como eles, a História tinha um encontro marcado com ele ao qual não faltou e para o qual esteve à altura. (…) Acreditava nos homens de carne e osso. Na vida. E, portanto, na liberdade. Sophia foi talvez quem o descreveu melhor, numa simples frase. “Apoio a candidatura de Mário Soares à Presidência da República sabendo que, haja o que houver, ele estará sempre onde estiver a liberdade e onde estiver a coragem.”
  • Pai fundador e enfant terrible: Mário Soares e a democracia em Portugal, de Rui Ramos no Observador, um ensaio de grande fôlego sobre o papel do fundador do PS no Portugal democratico. Nele nota que, “Tanto como o clássico “pai fundador” do actual regime, Mário Soares foi também o seu “enfant terrible”: o “sapo” que muitos tiveram de engolir, a pedra no caminho de quase todos. No presente regime democrático, Soares enfrentou e contestou toda a gente: : em 1975, Álvaro Cunhal; em 1980, o general Eanes, mas também Francisco Sá Carneiro; em 1994, Cavaco Silva, mas também António Guterres; em 2014, Pedro Passos Coelho, mas também António José Seguro. Não houve ninguém em Portugal, da direita à esquerda, que não tivesse tido Soares como adversário num momento ou noutro.
  • Como Portugal passou da revolução à democracia, de David Castaño, de novo no Observador, um outro ensaio onde se explica que as divergências quanto à presença de militares na Constituinte foram só o início do afastamento entre PS e PCP, um afastamento que não deixaria de se aprofundar até ao 25 de Novembro de 1975, passando por temas tão sensíveis e determinantes como a questão sindical e a liberdade de imprensa.
 

Momentos controversos, horas que foram determinantes
 
Para além da visão de conjunto proporcionada pelos relatos de vida e pelas aproximações mais analíticas, contaram-se inúmeras histórias, algumas detalhando o que se passou em alguns momentos-chave (o famoso comício da Alameda Dom Afonso Henriques, em 1975, o debate com Álvaro Cunhal), outra recordando alguns aspectos mais controversos, ou pelo menos mais discutidos, do seu legado, como as suas responsabilidades na descolonização. Aqui ficam mais algumas referências:
  • papel de Mário Soares na descolonização, um assunto que é analisado por Joaquim Vieira na sua biografia “Mário Soares – Uma Vida”. O Observador publica um excerto do capítulo “A descolonização”, onde se procura saber se o político que então era ministro dos Negócios Estrangeiros tinha razão quando dizia que “foi um milagre a descolonização que se fez”. Na verdade, qual foi o seu papel nesse processo? E foi ele uma figura principal ou acabou por ser ultrapassado pelo MFA?
  • comício_da Alameda feito em aliança_com a Igreja para combater o PCP, um texto onde Ana Sá Lopes recordou, no jornal Sol, aquele momento-chave do PREC: «Paranóicos», «dementes»,  «irresponsáveis que não representam o povo português». No comício da Fonte Luminosa, Soares colocou o PS como a maior força anti-PCP daquele tempo.
  • As 3 horas 40 minutos e 52 segundos mais importantes da vida de Soares, a reconstituição por Miguel Pinheiro, no Observador, do histórico debate com Álvaro Cunhal na RTP, em Novembro de 1975: "Aquilo de que o Partido Comunista deu provas durante estes meses é que quer transformar este país numa ditadura", acusou Soares. E Cunhal respondeu: "Olhe que não, olhe que não".
  • Kerensky português na análise de Kissinger, uma pequena nota de Fernando Madaíl no Diário de Notícias onde se recorda que, “Num erro de análise, o americano "levou tempo a convencer-se de que Mário Soares era uma escolha acertada como interlocutor", escreveria Hall Themido, ao ponto de, em conversas informais com o embaixador, considerar que se tratava de "um político ingénuo" (Dez Anos em Washington).”
  • A "paulada" que virou as presidenciais de 86, a evocação por Judith Menezes e Sousa, no Jornal de Notícias, da agressão a Mário Soares na campanha presidencial de 1986, quando passava pela Marinha Grande: "Fui agredido mas isso não me impediu de circular em Portugal porque Portugal é uma terra de liberdade, não é Moscovo".
  • Viagem pela Lisboa de Mário Soares, um curioso texto de Ferreira Fernandes no Diário de Notícias onde o jornalista nos leva a conhecer locais da capital frequentados pelo ex-Presidente, uma menos conhecidos, outros mais conhecidos, outros nem por isso: “Não vale a pena a deslocação a um lugar onde Soares, ainda em vida, já tinha uma placa: "Praça Mário Soares", inóspita rotunda cortada por eixos viários, entre o cemitério de Benfica e a Pontinha. Não vai com ele, é lugar seco, onde as pessoas só atravessam sentadas em automóvel e se cruzam segundo as regras de prioridade e sem lembrança, nem de ontem, quanto mais da infância. Um erro de casting, o nome daquela praça.”

 
Finalmente, uma mão cheia de textos de opinião
 
A quase totalidade dos textos de opinião em que se procura fazer um balanço/retrato do que foi a vida de Mário Soares enaltecem o seu papel na construção da nossa democracia, sem deixarem por isso de – muitos deles – referirem as suas controvérsias e erros. Aqui fica uma amostra que procurei fosse representativa:
  • O que conta são os melhores anos de Mário Soares, o texto que eu próprio escrevi no Observador onde defendo que, apesar de tudo o que lhe podemos criticar, o que ressalva é o papel que teve em salvar a nossa democracia e a nossa liberdade em momentos em que isso era especial difícil. Mais: “Não é possível compreender Mário Soares e o que ele representou na política portuguesa nos últimos 70 anos sem ter bem presentes estas duas características pessoais: uma enorme autoconfiança e um ilimitado optimismo. A que há que acrescentar a coragem – não a coragem irresponsável de quem se crê indestrutível, mas a coragem de quem tem um sentido do destino e a convicção de se tem sempre de dar a cara na hora no combate.”
  • O fim de uma era, de Henrique Monteiro, no Expresso Diário, um texto com uma componente pessoal onde se sublinha que Soares “Viveu e lutou com uma coragem assinalável e, sobretudo, levando a sério o que fazia, nunca se permitiu furtar a uma gargalhada, mesmo que inconveniente, furar o protocolo, mesmo que um pouco irresponsavelmente, e fazer o que lhe apetecia, mesmo que inconscientemente. Como Churchill – e neste aspeto há um paralelo claro – conseguia ser simultaneamente uma criança mimada e um estadista ímpar. Transformava inimigos em amigos (o vice-versa foi muito mais raro) e nunca se esqueceu daqueles que lhe foram leais ainda que com ele não concordassem. Mais do que um homem, é um símbolo.”
  • O íman do mundo, de José Manuel dos Santos, um dos seus colaboradores mais próximos ao longo de décadas, e que no Público escreveu que “Soares achava que a literatura é o grande íman do mundo, tornando-o menos insuficiente, mais inteligível, menos opaco, mais incandescente. Era herdeiro de um ideia de literatura como imortalidade.”
  • Mário Soares: liberdade como modo de vida habitual, de João Carlos Espada, também ele um colaborador nos anos de Belém, e que no Observador defendeu que Soares “consagrou a democracia como “regime da regra”: o regime que obedece a regras imparciais, e não a propósitos ou “causas” de grupos particulares. Com a sua “Presidência de todos os Portugueses” e a coabitação com Cavaco Silva, Mário Soares tornou habitual a liberdade entre nós. Já não uma causa de combate ou uma promessa de perfeição, mas — simplesmente, fundamentalmente — um modo de vida habitual que aprendemos a usufruir tranquilamente.
  • Mário Soares deixou-nos e deixou-nos tudo, de Miguel Esteves Cardoso no Público, uma prosa longe do que tem sido registo mais recente do cronista: “Era um revolucionário burguês. Os burgueses criticaram-no por ser revolucionário e os revolucionários criticaram-no por ser burguês. Era por isso que ele é tão refrescantemente moderno: ainda não nos aproximámos do que ele queria para nós.”
  • Mário Soares 1924-2017. Nem hagiografia, nem travessura, de Henrique Raposo no Expresso Diário, um texto que seleccionei por ser talvez o que assume mais distâncias – “O triunfo da mitologia soarista deve-se à força de soares e à desistência intelectual e moral da direita” – mas sem deixar de distribuir outras farpas: “Ele liderou a resistência à violência da extrema-esquerda maoista e à ditadura emergente de Cunhal – dois projetos radicais que eram apoiados pela maioria dos jornalistas e intelectuais. Ou seja, o meio intelectual que hoje está a chorar a morte de Soares com esta enjoativa unanimidade é o mesmo meio intelectual que odiava Soares.”
  • Já pode ser estátua, de Daniel Oliveira no mesmo Expresso Diário, alguém que se situa no outra lado do espectro político e não o ilude: “O maior elogio que posso fazer a Mário Soares é aquele que poucos farão por estes dias, em que a canonização simula consensos que nunca existiram: ele está entre as figuras mais odiadas e mais amadas deste País. Como apenas acontece aos políticos que fazem escolhas difíceis. (…) Soares escolheu o combate ao fascismo e os saudosistas não o suportam. Escolheu a descolonização e os retornados odeiam-no. Escolheu a democracia liberal e a CEE e os comunistas não lhe perdoam.”
  • Um grande plebeu, uma nota breve de António Barreto no Diário de Notícias, onde aquele que foi seu ministro duas vezes, depois rompeu, e depois ainda foi seu conselheiro nas críticas Presidenciais de 1986, escreve que “Foi excessivo em tudo, nas virtudes e nos defeitos. Nos acertos e nos erros. Mas, no essencial, na liberdade, na dele e na dos outros, foi justo, foi certeiro, foi inflexível.
  • A pátria já não tem pai, de Ana Sá Lopes no jornal i, um texto que é também um testemunho de uma das jornalistas com quem mais falava nos últimos tempos: “Mário Soares gostava de falar do passado, cada vez mais à medida que envelhecia, o que é normal na vida. Nos últimos tempos, principalmente depois da morte de Maria Barroso, falava mais do passado do que do futuro.
  • Soares defendeu o papel da Igreja, a Nota de Abertura da Rádio Renascença, que registo pelo seu significado:  “A Rádio Renascença tem história e memória. Exactamente por esta razão, e perante a notícia da morte de Mário Soares, é justa e necessária uma referência ao seu papel determinante na defesa da democracia em Portugal. Sem abandonar os seus princípios, Mário Soares recusou os caminhos da “questão religiosa” da I República e defendeu, antes e depois do 25 de Abril, o papel da Igreja em Portugal.”
  • À procura doutro pai, a crónica de Helena Matos no Observador, o texto que escolhi para fechar esta selecção e que olha um pouco para a frente, sem deixar de ser ácido com o presente: “Enquanto os jornalistas e as elites se despedem daquele que é definido como pai do regime, a grande questão é mesmo essa: será que Portugal vai procurar um novo pai? E para quê?”
 
Não sei se haverá uma boa resposta para esta questão, nem se os meus leitores terão tempo para tantas leituras. Mas este registo era importante, creio eu, mesmo que só possam dele tirar partido ao longo dos serões desta semana.
 
Tenham bom descanso.  
 
 
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