sexta-feira, 13 de julho de 2018

Macroscópio – Um livro inglês sobre Lisboa e outras leituras surpreendentes

15394f37-d15a-4db8-9900-7c4008f236fe.jpg

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Tantos temas, mas algum sol (prometido), um certo ar a férias já no ar, pelo que esta newsletter sai hoje da actualidade para falar um pouco de livros, de história, de Lisboa, sempre de boas leituras. Tudo isto a partir de um pretexto próximo: foi publicado esta semana no Reino Unido uma história de Lisboa – Queen of the Sea: A History of Lisbon – e não resisti não apenas a referi-lo, por via de uma recensão, como a partir dele para outras divagações sobre a minha cidade – desculpem os não lisboetas – e, depois, sobre o meu continente e os tempos que vivemos. 
 
Tomei conhecimento de edição desta obra pela Spectator, onde Nicholas Shakespeare escreve uma recensão crítica, Portugal’s entrancing capital has always looked to the sea. Escrito por Barry Hatton, Queen of the Sea: A History of Lisbon(C. Hurst & Co., pp.280, £14.99) parece não esconder algum encantamento pela nossa cidade-capital, mesmo quando nos revela os seus lados mais sombrios. Deixem-me porém ficar pelos lados mais luminosos: “To Barry Hatton in this enchanting history, ‘Lisbon is a mood’ which ‘cannot be captured in a travel brochure or photographs on a website’. The city’s special quality consists largely, he believes, in its exhilarating light, which falls on blue-tiled walls and white stone pavements with an intensity that is un-European, and more reminiscent of Portugal’s former colonies in Africa, India and Brazil. ‘It is a textured brightness, a creamy glow, at the same time vivid and silky.’ Lisbon’s second unique ingredient is what one Portuguese historian has called the ‘hybridism of cultures where, like nowhere else, the influences of Christianity and Islam converged’.”

 
Esta leitura da Spectator (o livro espero tê-lo a caminho um dia destes) fez-me recordar um vídeo da BBC em que tropecei aqui há uns tempos e que tinha guardado para um dia propor nesta newsletter. Hoje é esse dia: trata-se de um pequeno apontamento da série Civilizationse chama-se This painting is a snapshot of a world we've forgotten. O quadro a que este videozinho se refere é uma obra da colecção Berardo, O Chafariz d’El Rei, e não deixem se ver como, analisando, o apresentados nos explica como “Lisbon in Portugal was once the centre of a global empire”. Nestes tempos em que tanto se desfaz nosso passado como nação e como povo, faz bem ao nosso ego, pois nem só de Ronaldo se faz a identidade nacional. 

 
Esta pintura fez-me lembrar outra, Rua Nova dos Mercadores, um quadro que era a peça central da exposição "A Cidade Global" que esteve patente no Museu Nacional de Arte Antiga há pouco mais de um ano, mostrando-nos como na Lisboa renascentista cabia o Mundo inteiro. Essa exposição andava também torno de um livro, The Global City - On the streets of Renaissance, editado por Annemarie Jordan Gschwend and K. J. P. Lowe. Quem não viu a exposição pode sempre ler o livro, uma obra que Theodore K. Rabb recenseou no TLS (ou Times Literary Suplement) no texto Elephants on the Rua Nova. Eis um pequeno extracto do que aí escreveu: “Lisbon in its heyday in the sixteenth century was the most globally connected and multicultural city on earth. Its ships were a redoubtable presence in harbours from Brazil to Japan; the distantly produced goods it imported attracted merchants and princes throughout Europe; and its population included more Africans (mostly slaves, but not all) than anywhere else outside their home continent. That its importance in world history is all too rarely recognized may be due to a lack of glamour. If the most famous Portuguese figure of the age is Ferdinand Magellan, who sailed for Spain, and Portugal’s finest poet, Luís de Camões, is known mainly to specialists, it is not too surprising that Venice, Rome and London get more attention as great sixteenth-century cities. But that perspective should be changed by this splendid book.”

 
Continuando a falar de livros salto agora até Espanha mas para falar de uma obra publicada em Paris, Barbastro. Guerre sainte et djihad en Espagne, Collection NRF Essais, Gallimard. Provavelmente a maior parte dos leitores nunca terá ouvido falar de Basbastro (eu não tinha), mas trata-se de uma cidade aragonesa onde no século XI se travaram importantes batalhas que, de acordo com os autores, Carlos Laliena Corbera e Philippe Sénac, marcaram o início da tensão medieval entre o Islão e a Cristandade. Isso mesmo nos explica Marc Bassets, do El Pais, El ensayo general de las Cruzadas tuvo lugar en Barbastro: “La toma cristiana de Barbastro en 1064, y la posterior reconquista por parte de los musulmanes nueve meses después, es uno de estos momentos estelares, o fatídicos, de la humanidad. Un momento poco conocido, sí: diluyeron su recuerdo fechas más emblemáticas como la toma de Toledo en 1085, la batalla de las Navas de Tolosa en 1212 o la conquista de Granada en 1492. Pero un momento, también, anticipador del mundo que se gestaba. Es entonces cuando se consolida el discurso ideológico para justificar la guerra. Ya no se trata sólo de combatir en busca de un botín o de una conquista territorial, sino que algo superior impulsa a los combatientes, como un dopaje espiritual. De ahí el papel el papa Alejandro II, que, según los autores, alentó la operación bélica en Barbastro, "una expedición de envergadura como jamás los musulmanes habían afrontado en estas regiones".”
 
Muito interessante, sobretudo se nos lembrarmos do papel que a III Cruzada teve na conquista de Lisboa, quase cem anos mais tarde (em 1147). Muito interessante também se pensarmos que ler livros de história é muitas vezes tão fascinante e envolvente como ler romances, um dos comentários de Jaime Gama no mais recente Conversas à Quinta, Livros para férias: uma mesa cheia de boas sugestões. As sugestões são as do próprio Jaime Gama, de Jaime Nogueira Pinto e minhas. 
 
Uma dessas sugestões é o livro mais recente da antiga secretário de Estado do Presidente Clinton, Madeleine Albright, alguém cuja história pessoal – nasceu em Praga numa família judaica, teve de fugir duas vezes da sua cidade natal, a primeira depois da ocupação nazi, a segunda após a tomada de poder pelos comunistas, estudou nos Estados Unidos, onde teve depois uma brilhante carreira académica e política – a recomenda especialmente para abordar o tema que a obra trata – Fascism: A Warning. Ora foi precisamente a propósito deste livro que falou à Spiegel, numa entrevista onde confessou: 'I Am an Optimist Who Worries A Lot'. O que explica assim: “When I wrote this book, I decided I needed to do something that was historical, not emotional. There are striking similarities between then and now that have to do with divisions in society, a sense that there are winners and losers in economic terms, and politicians that take advantage of these divisions. Instead of looking for common ground they do everything they can to exacerbate the divisions. I believe in patriotism, but I am concerned by nationalism. We've all benefitted from globalization, in many ways, but it also is a doubleedged sword, because people seem to have lost their identity, and a feeling of belonging.” 

 
Se nos recordarmos que, quando foi nomeada secretária de Estado, o Senado a confirmou por unanimidade (99-0), temos uma ideia de como há apenas duas décadas o ambiente político nos Estados Unidos se degradou e extremou, mas a que não escapa a nossa Europa. Daí que, mesmo sendo despropositados os paralelos, me chamou a atenção a reflexão de Cass R. Sunstein na New York Review of Books intitulada It Can Happen Here. Este autor parte de três obras que analisam o que permitiu a ascensão de Hitler na Alemanha (duas recentes ou agora reeditadas, They Thought They Were Free: The Germans, 1933–45 de Milton Mayer,e Broken Lives: How Ordinary Germans Experienced the Twentieth Century deKonrad H. Jarausch, Princeton University Press, e Defying Hitler, as memórias deSebastian Haffner) para chegar a uma conclusão que nos desafia: “In their different ways, Mayer, Haffner, and Jarausch show how habituation, confusion, distraction, self-interest, fear, rationalization, and a sense of personal powerlessness make terrible things possible. They call attention to the importance of individual actions of conscience both small and large, by people who never make it into the history books. Nearly two centuries ago, James Madison warned: “Is there no virtue among us? If there be not, we are in a wretched situation. No theoretical checks—no form of government can render us secure.” Haffner offered something like a corollary, which is that the ultimate safeguard against aspiring authoritarians, and wolves of all kinds, lies in individual conscience: in “decisions taken individually and almost unconsciously by the population at large.” De facto, como notou Edmund Burke, “para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados”. 
 
É neste ponto que faço um desvio e deixo os livros pois julgo que vale a pena ler o ensaio de Ivan Krastev na Foreign Policy, 3 Versions of Europe Are Collapsing at the Same Time. A sua tese é que “Post-1945, post-1968, and post-1989 Europe are all different — and none of them make sense anymore.” Texto longo tem argumentos interessantes, de que destaco este, até pela sua actualidade à luz do que se passou na cimeira da NATO: “Postwar Europe is also failing because the majority of Europeans continue to take peace for granted while the world is turning into a dangerous place and the United States can no longer be assumed to be interested in protecting Europe. Brussels’ insistence that what matters is soft power while military might is obsolete is starting to ring false even to those making the claim. In that way, Europe’s postwar thinking has become its vulnerability, rather than an advantage. Postwar Europe today does no longer mean Europe as a peaceful power, it means a Europe that is unable to defend itself. (Grasping this new reality is going to be particularly painful for Germany.)”

 
Deixei para o fim aquilo que talvez possa definir como duas sugestões mais leves, ambas sobre ciência, ou mais exactamente sobre estudos científicos. Há sempre oportunidade de aprender mais e de descobrir o novo, pelo que aqui ficam essas duas referências: 
  • La última cena del hombre de los hielos é o relato pelo El Pais do que se conseguiu descobrir sobre aquilo de que se alimentava Ötzi, o famoso “homem dos gelos” assassinado há 5.300 anos nos Alpes italianos e cujo cadáver foi encontrado em excepcional estado de conservação. Hora parece que nem tudo na sua dieta paleolítica seria o mais adequado, pois “comió una dieta rica en grasa que puede estar asociada a sus problemas cardíacos”. Este trabalho do diário espanhol também refere que “El estudio de la dieta de los antepasados humanos, a través de los restos de moléculas que quedaron en recipientes de cerámica o en algunos yacimientos prehistóricos, ha hecho posible reconstruir una parte importante de la historia de la humanidad. Esos análisis, en combinación con los estudios de esqueletos a lo largo de miles de años de historia, muestran, por ejemplo, un impacto desigual de la llegada de la agricultura. La generación de una cantidad estable de comida del Neolítico facilitó el crecimiento de las poblaciones, pero en muchos casos supuso una pérdida de calidad de vida para los individuos, que vieron cómo les afectaban más enfermedades como la caries o los virus transmitidos entre humanos y animales en las ciudades.”
  • ‘Find Your Passion’ Is Awful Advice é uma peça da The Atlantic onde se citam estudos que mostram que a ideia comum de que o melhor que podemos fazer na vida e na escolha da carreira é seguir as nossas paixões pode, afinal, ser uma forma de fecharmos horizontes e não descobrirmos outras paixões porventura ainda mais fortes: “The authors believe this could mean that students who have fixed theories of interest might forgo interesting lectures or opportunities because they don’t align with their previously stated passions. Or that they might overlook ways that other disciplines can intersect with their own. “If passions are things found fully formed, and your job is to look around the world for your passion—it’s a crazy thought,” Walton told me. “It doesn’t reflect the way I or my students experience school, where you go to a class and have a lecture or a conversation, and you think, That’s interesting. It’s through a process of investment and development that you develop an abiding passion in a field.”
 
Já vai longo este Macroscópio, como longa e rica foi a semana, mas dos despojos da actualidade que nos marcou por estes dias falarei a partir de segunda-feira. Até lá tenham um bom fim-de-semana. 
 
 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Observador
©2018 Observador On Time, S.A.
Rua Luz Soriano, n. 67, Lisboa


Nenhum comentário:

Postar um comentário