sábado, 25 de junho de 2016

Macroscópio – E agora? O dia em que entrámos em terra incógnita

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Aconteceu. Tantas vezes a União Europeia foi a referendos que um dia tinha de quebrar. Até porque a construção já mostrava muitas rachas. E aconteceu no Reino Unido, onde os referendos não se repetem até darem o resultado “certo”. Com a confirmação do voto pelo Brexit – que ainda ontem à noite, no momento em que urnas fecharam, parecia pouco provável – a Europa acordou em estado de choque. E sob ondas de choque. Por isso este Macroscópio, que planeara dedicar às eleições espanholas do próximo domingo, tem de se submeter à actualidade. Para dar conta do que pode vir a acontecer, tal como das principais análises e comentários.

Primeiro, recapitulemos rapidamente, com a ajuda dos trabalhos do Observador, o essencial da informação, começando peloliveblog onde lhe fomos dando conta das principais notícias do dia, do anúncio da demissão de David Cameron à intenção da Escócia de voltar a realizar um referendo pela sua independência. Continuo com a reportagem especial do nosso enviado a Londres, Edgar Caetano, Um país dividido e uma "City" atordoada. Outros textos relevantes:
Relativamente às análises e comentários produzidos em Portugal, vou procurar arrumá-las em diferentes categorias. Começo pelas leituras mais pessimistas (ou então apenas mais tristes) sobre o que vêm aí:
  • Governo aconselha dupla nacionalidade, de Helena Garrido no Observador (já publicámos 11 textos de opinião com perspectivas diferentes sobre o Brexit), considerando que “O populismo venceu. As violentas ondas de choque financeiro, provocadas pelo voto do Reino Unido pela saída da UE, colocam a Europa perante o sério risco de enfrentar uma nova recessão.”
  • Nuvens negras sobre a Europa, de Teresa de Sousa no Público, onde considera que “O debate eternamente adiado sobre o caminho a seguir far-se-á agora à força e nas piores condições.”
  • A thousand natural shocks, de Pedro Santos Guerreiro no Expresso, que considera que “é a União Europeia que é atirada da estrada sinuosa que percorria, para uma ribanceira imprevisível. O efeito dominó é inescapável: outros estados membros quererão referendar a permanência na União.”
  • Alguém sabe como se sai de um buraco negro?, de Graça Franco na Renascença, que esceve que “É do futuro que falamos agora. Incerto. E a incerteza é cara. Trava o investimento, trava o consumo, gera desconfiança, paralisa o investimento, impede a mais leve retoma. É mau, mas não é sequer o pior: alguém sabe contabilizar o preço da paz?”
  • Um jogo de soma negativa, um texto de Inês Domingos no Observador centrado nas consequências económicas do Brexit: “Para Portugal, que tem pouco capital, poucas poupanças e que depende quase exclusivamente do exterior para se financiar, os custos de financiamento para as famílias e para as empresas deverá sem dúvida aumentar.”
  • As cinco razões por que é grave a saída do Reino Unido, de Miguel Mendes Pereira no Expresso, uma das quais é: “Do ponto de vista interno da UE, é (…) o Reino-Unido providenciava um elemento de equilíbrio crucial entre o poderio alemão e o desespero francês. A abordagem crítica britânica sempre recusou seguir acefalamente a retórica europeísta e foi o fator que tantas vezes dotou as soluções europeias do grau de pragmatismo que permitiu o avanço da integração europeia, ao contrário do que tantas vezes se pensa”. 
  • O meu coração está partido, um texto num registo mais pessoal de Lucy Pepper, no Observador, onde esta inglesa a viver há muitos anos em Portugal escreve: “Dêem-me uma ilha caótica, problemática, cheia de gente de todas as cores e crenças, e com um sentido colectivo de humor e humildade, em vez de uma nação governada e regulada por homens brancos, suados e cheios de medo. Esses homens mataram o “espírito do Blitz”. Little England matou Great Britain, e o meu coração está partido.”

 
Um conjunto de outros textos procura interpretar o sentido do voto britânico num quadro mais global, dele procurando inferir lições para a Europa. Começo por citar três textos saídos no Observador:
  • A falsa escolha e uma falsa solução, de Miguel Poiares Maduro, uma reflexão muito interessante sobre as consequências de viver num mundo interdependente, um texto que defende a ideia de que “O Reino Unido irá descobrir que a verdadeira causa dos seus problemas e ansiedades não é a Europa mas a incapacidade da sua democracia nacional em adaptar-se a um mundo interdependente. Não será regressando ao nacionalismo e protecionismo que responderá aos desafios da globalização.”
  • Cabeça fria. A resposta ao Brexit é “menos” Europa, a minha defesa apaixonada de que a Europa deve aproveitar esta crise para repensar as suas pulsões integradoras e federalistas: “Não é tempo de despeito ou rancor, antes de compreender o mal-estar europeu que levou ao Brexit. A mensagem que os britânicos reforçaram é que os povos não querem nem "mais" Europa nem mais integração.”
  • Brexit: uma lição para a UE, de André Azevedo Alves, onde se sublinha que “A retórica do medo e da intimidação tão do agrado de muitos eurocratas falhou dramaticamente. Fracassou também o dogma de que o processo de integração europeia é unívoco e não pode conhecer recuos”.

Outros textos, mesmo críticos da direcção seguida pela União Europeia, pedem exactamente o contrário. É o que faz, por exemplo, Celso Filipe no Jornal de Negócios em Mais Europa, menos incerteza – “A partir dos escombros da saída do Reino Unido é preciso construir uma União Europeia mais forte, mais solidária e mais coesa” – ou Francisco Seixas da Costa, que, de novo no Observador, em O “opt out” final, fala dos riscos de uma Europa menos integrada – “No passado, sempre falámos de “construção europeia”, agora iniciámos um tempo novo, o da “desconstrução”. Como disse, o tropismo em favor da generalização de “exceções” pode começar a “cogumelizar” (os ingleses têm para isso a bela expressão “mushrooming”, faça-se-lhes essa justiça!) por aí adiante. E isso, ao contrário do que alguns pretendentes caseiros à recuperação de soberania possam pensar, pode virar-se contra nós, contra Portugal.”

Outros textos fazem mais a análise do referendo, quer para apenas à re-união (como fez João Carlos Espada, no Observador, emTempo de re-união: no Reino Unido e na UE), quer fazer uma dura crítica a David Cameron e à forma como decidiu convocar o referendo. Rui Ramos, de novo no Observador, em A Europa na roleta dos referendos, é especialmente duro: “O referendo britânico talvez tenha mudado a Europa e o mundo. Mas é importante lembrar que começou como um truque de David Cameron para travar o UKIP. Para evitar uma inundação na cozinha, deitou fogo à casa e acabou por incendiar o bairro inteiro.”


A discussão sobre o papel de David Cameron dá-me o pretexto para passar à imprensa anglo-saxónica, onde as avaliações naturalmente divergem. Um dos textos mais elaborados, até porque recua até aos tempos em que o primeiro-ministro demissionário entrou na política é o de Martin Kettle no The Guardian: The downfall of David Cameron: a European tragedy. Nele discute-se a sua acção política nos últimos 20 anos, argumenta-se sobre até que ponto foi um eurocéptico e conclui-se citando um outro antigo primeiro-ministro: “Three years ago, in a comment on Cameron’s referendum pledge in the Bloomberg speech, Tony Blair likened it to a comedy western of the 1970s. “It reminds me a bit of the Mel Brooks comedy Blazing Saddles where the sheriff says at one point as he holds a gun to his own head: ‘If you don’t do what I want I’ll blow my brains out,’” Blair warned. This week, Cameron has done just that.”

A perspectiva de um editorial da Spectator, revista que apoiou o “leave”, é bem diferente, se bem que também descreva o fiasco político que constituiu a derrota no referendo, fiasco que, naturalmente, precipitou o pedido de demissão. A revista, no entanto, em In praise of David Cameron, considera que devemos recordá-lo por outros motivos: “This is how Cameron should be judged: on the results of his premiership, rather than the awful referendum campaign. Employment and disposable income are at record highs. The financial markets are in turmoil, but Britain is in a decent place to be able to deal with that: inflation is on the floor, so it can afford to rise. Crime is at its lowest level for 25 years. Thousands of schools have been freed from local authority control. Welfare has been reformed to make work pay. Inequality has been falling. This is David Cameron’s legacy to Britain.”

Já do muito material que encontrei na imprensa de Londres sobreo dia seguinte destaco dois trabalhos:
  • After the vote, chaos, um texto longo e informado da The Economist (que atrasou para hoje a saída para as bancas da sua edição para o Reino Unido), e que sistematiza as principais opções que terão de ser debatidas em Londres e depois negociadas com a União Europeia. Perspectiva? “What follows will be a new prime minister, volatile financial markets—and years of costly uncertainty”.
  • Brexit’s Economic Chill Depends on Three Unknowns é uma análise do Wall Street Journal que trata de elencar as principais incertezas: “Will uncertainty about what’s next, or falling financial-asset prices, have a chilling effect on investment and consumer spending in the U.K.? Will the U.K. struggle to maintain the same level of access to European and other markets for trade and investment? And will the British referendum result set off further political and economic fragmentation in Europe?”


No que diz respeito a posições editoriais e a textos de opinião mais veementes, os meus destaques são os seguintes:
  • Britain takes a leap into the dark, o preocupado editorial do Financial Times, um jornal que fez campanha pelo “remain”: “A country renowned for its conservatism and political stability has taken a leap into the dark. Many will blame an inept Remain campaign lacking in passion and underestimating the depth of resentment towards the metropolitan elite. Fears about immigration and its impact on local communities — more legitimate than many have admitted — trumped national economic self-interest. The slogan of “taking back control” resonated with people who see Europe as a continent in disarray.”
  • A tragic split, um outro editorial de uma publicação que também se manifestou pelo "remain", a revista The Economist, e que procura explicar “How to minimise e damage of Britain’s senseless, self-inflicted blow”. Até porque “This newspaper sees much to lament in this vote—and a danger that Britain will become more closed, more isolated and less dynamic. It would be bad for everyone if Great Britain shrivelled into Little England and be worse still if this led to Little Europe. The leaders of Leave counter with the promise to unleash a vibrant, outward-looking 21st-century economy. We doubt that Brexit will achieve this, but nothing would make us happier than to be proved wrong."
  • This is democracy in all its beauty and glory, um texto de Brendan O'Neill na Spectator, revista que, ao contrário das duas anteriores publicações, defendeu o “leave”. Pequeno extracto: “This result should send a clear warning to every politician and bureaucrat: do not dare to take the people for granted; do not presume that they think the same way as you do; do not underestimate their capacity to think about things and discuss them and to chuck out political ideas and systems they don’t like. (…) for now, let us marvel at the fact that democracy works, that democracy is powerful, and that the people can think for themselves.”
  • Why Brexit is worse for Europe than Britain, uma opinião de Lawrence H. Summers, que foi secretário de Tesouro de Bill Clinton, e que no Washington Post faz uma observação que me parece muito pertinente (e preocupante): “After Brexit, Trump, Sanders and the misforecast British and Canadian general elections, it should be clear that the term political science is an oxymoron. Political events cannot be reliably predicted by pollsters, pundits or punters. All three groups should have humility going forward. In particular no one should be confident about the outcome of the U.S. presidential election.”
  • Brexit: a vote that changes everything, um texto verdadeiramente furioso do principal colunista de temas políticos do Financial Times, Philip Stephens, que se mostra muito preocupado com o que pode suceder à posição e papel que o Reino Unido tem no Mundo: “The world no longer belongs to the west. Liberty, democracy, the rule of law — the values that Britain often claims as its own — are under challenge. Europe, for all its flaws and annoyances, was the agency through which Britain could make a difference.  For much of the past 70 years Britain has sought, in the words of one former foreign secretary, to punch above its weight in global affairs. Now it plans to withdraw into itself. Yet going it alone ignores at once the international nature of Britain’s interests and the stark geopolitical realities. How long before the regret sets in?”
  • After Brexit, Europe faces an existential crisis, uma análise de Peter Foster, o editor de assuntos europeus do Telegraph, jornal que esteve pelo “leave”, e que, pelo menos na frente das relações exteriores, manifesta preocupações que não andam muito longe das de Philip Stephens: “The unavoidable reality is that as globalisation continues, in terms of trade share, innovation capacity and population, Europe is shrinking relative to the rest of the world. The truly existential crisis for Europe is therefore how to combat that intoxicating populist narrative and drive through the kind of structural economic reforms that will prevent Europe (as distinct from the EU) from sliding into irrelevance and geo-political old age.”


Poderia acabar por aqui, até porque os pontos referidos por estes dois últimos autores são de especial importância, mas esta semana devo também chamar-vos a atenção para a minha habitual conversa semanal com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, que inevitavelmente abordou o Brexit. E deixou um conselho pertinente: A União Europeia não deve negociar de cabeça quente(o podcast pode ser subscrito aqui). São, recordo, duas das vozes mais informadas (e experientes) em assuntos internacionais do país, pelo que esta conversa é mais excepcional do que já costuma ser excepcional.

Vai longa esta newsletter, mas hoje não foi um dia comum. Tenham um bom descanso, um melhor fim-de-semana, que nos reencontramos na segunda-feira.

 
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