segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Macroscópio – É Carnaval, mas era bom ter algum tino na discussão pública

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Angola desmarca uma visita da ministra da Justiça por causa de uma investigação judicial em Portugal que envolve a segunda figura do regime. O governo de Luanda considera mesmo a actuação da Justiça portuguesa "inamistosa e despropositada" e “sério ataque à República de Angola, suscetível de perturbar as relações existentes entre os dois Estados”. A mesma Angola que é um dos destinos mais importantes das nossas exportações e onde trabalham milhares de portugueses. Contudo, alguém ouviu algum clamor em torno da forma ameaçadora e intolerável como Luanda se dirigiu a Lisboa? Não. Depois dos sms da CGD, o tema do momento são as offshores. Ou, para ser mais exacto, o facto de não se terem publicado estatísticas sobre as transferências para offshores nos anos de 2011 a 2015. Como se verá lendo este artigo de Ana Suspiro – “Apagão fiscal” nas transferências para offshores. O que se sabe e o que há para esclarecer – ainda se sabe muito pouco sobre se, para além da falha nos deveres de transparência, alguma falha mais grave aconteceu.
 
Mesmo assim os nossos partidos não falam de outra coisa pelo, apesar de ter preferido esperar por mais esclarecimentos para escrever no Macroscópio sobre este tema, as declarações de alguns responsáveis desceram a um nível que é impossível ignorar por completo este tema, quanto mais não seja para distinguir o razoável do irrazoável. Tomemos, por exemplo, a seguinte declaração da Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda: “O Governo anterior deixou sair pela porta do cavalo 10 mil milhões de euros, é um número que não é nada pequeno (…) é bem mais do tudo o que gastamos com o Serviço Nacional de Saúde.” Ou esta do primeiro-ministro, no último debate parlamentar: "É absolutamente escandaloso que um Governo que não hesitou em acabar com a penhora da casa de morada de família por qualquer dívida tenha tido a incapacidade de verificar o que aconteceu com 10 mil milhões de euros que fugiram do país".
 
Sem entrar no julgamento do sentido político destas declarações, mesmo assim acho que vale pena explicar algumas coisas. Primeiro: a utilização de offshores é legal, sendo que por vezes até fundos públicos a elas recorrem, como lembrava João Vieira Pereira este sábado no Expresso, em Sobre as offshores (paywall): “O seu uso é tão generalizado que até o fundo de estabilização da Segurança Social foi apanhado a usar offshores apenas porque investiu em fundos que eram emitidos por um dos muitos paraísos fiscais. Tudo legal.”
 
Depois, ao contrário do que é voz corrente, em condições normais, “do ponto de vista fiscal, é penalizador recorrer a paraísos fiscais, dizem os especialistas”, explica o ECO em Afinal, para que serve uma offshore? As vantagens das offshores para muitas grandes empresas e transacções internacionais são outras, a começar por “um conjunto mais simplificado de obrigações em termos de reporte, de controlo”, escreve-se no mesmo jornal. No caso das offshores que não obedecem a regras de transparência, é aqui que podem surgir operações ilícitas, mas não há qualquer indicação que, no que os bancos estão obrigados a reportar às autoridades fiscais isso aconteça.
 
Isso mesmo sublinha João Taborda da Gama no Diário de Notícias, em Erro estatístico, texto onde refere, de forma irónica, que não é provável que quem queira fazê-lo utilize um banco português: “Só um bandido fiscal muito amador ia ao balcão da Caixa em Telheiras, tirava a senha, pedia o papelinho das transferências (…) e transferia da conta à ordem (…) dois ou três mil milhões para uma empresa nas Bahamas. Descritivo? Pode colocar DLI, dinheiro livre de impostos.” Se não há, para já, qualquer evidência que tenha havido qualquer fuga aos impostos, “Ficamos com os dez mil milhões que, diz-se, não receberam o "devido tratamento", não "foram tratados" (...). Talvez recordar duas ou três coisas óbvias: não é proibido fazer pagamentos para o estrangeiro, nem para offshores nem para inshores, e esses pagamentos não têm de ser autorizados pelo governo nem por ninguém (…). Depois, estamos a falar de tudo isto precisamente porque estes pagamentos foram declarados - o fisco tem todos os dados, montantes, origem, destino, datas, os números das portas para ir lá bater e fazer as perguntas que quiser. E isto não tem nada que ver com as estatísticas estarem ou não publicadas.”
 
Recomendo vivamente a leitura deste texto à luz das declarações políticas que citei logo de entrada e, depois, uma reflexão adicional proporcionada pelo colunista do Financial Times Wolfgang Münchau, hoje publicada no mesmo Diário de Notícias: Os populistas centristas não são de forma alguma isentos de riscos. Nota ele que, “Quando pensamos em populistas, pensamos em nacionalistas, xenófobos, antieuropeus e protecionistas. Mas há outra categoria de populistas, menos repulsivos e menos extremistas nos seus pontos de vista, mas possivelmente de igual forma perigosos a longo prazo - o populista centrista.” As figuras em que Münchau está a pensar são italianas – a Silvio Berlusconi (centro-direita), Matteo Renzi (centro-esquerda) e Beppe Grillo (sabe-se lá onde) – mas também acrescenta à lista nomes como o do ex-chanceler alemão, social-democrata, Gerhard Schröder. Julgo que se conhecesse bem Portugal encontraria por cá mais exemplos...

 
Para terminar, e como amanhã é dia de descanso para muitos leitores, vou sugerir-vos um texto inspirador, de Miguel Monjardino, texto esse hoje referido por João Carlos Espada na sua coluna no Observador. Trata-se de A Republic in the Atlantic e saiu na revista nova-iorquina City Journal. Nele Miguel Monjardino relata a sua extraordinária experiência de levar jovens da Ilha Terceira, nos Açores, onde vive, a lerem e discutirem os clássicos gregos. Pode parecer estranho e esotérico, mas o que nos conta mostra como ensinar pode ser, e deve ser, muito mais do que “dar matéria”, que é falsa a ideia de que os mais novos não se interessam por ler e como pode ser fascinante pensar e fazer pensar: “Plato didn’t seem to believe in the virtues of a liberal education in a democracy, but I do. One of the purposes of the Republic is to set us free politically. Just as is often the case in the U.S., the young students in Angra do Heroísmo are not much interested in ideology or politics. They take liberal democracy, European integration, Apple, Google, and Amazon for granted. Apps are more important to them than political ideas. But as Thucydides taught us, ideology and politics can’t be ignored, particularly for free people.”
 
Mesmo quando tudo parece degradar-se à nossa volta, há sempre motivo para ter esperança. Ler este último texto ajuda-nos a perceber isso mesmo. Desejo-vos um bom descanso e leituras inspiradas e inspiradoras.
 
 
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