sábado, 17 de dezembro de 2016

Macroscópio – Os mortos com que não nos incomodamos


Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

 

Todos nos lembramos da primeira destas fotos. Mostra uma miúda vietnamita, Phan Thi Kim Phuc, a fugir nua depois de um ataque acidental com napalm durante a Guerra do Vietname, em 1972. Também temos bem presente a segunda imagem, a de uma criança sudanesa a morrer de fome em 1993. Qualquer delas teve um enorme impacto nas opiniões públicas e foram instrumentais na mudança de políticas. Comoveram e essa comoção teve consequências. O mesmo sucedeu com a terceira imagem, que reproduzo abaixo.
 


Todos se recordarão. Foi nas costas da Turquia, não longe de Bodrum, que o corpo do pequeno Alan Kurdi deu à praia, tornando-se imediatamente no símbolo de um drama – o dos refugiados sírios que tentavam passar da Ásia Menor para a Europa em frágeis embarcações – e na caução moral de decisões políticas de alto risco, como a tomada pela chanceler Merkel de acolher na Alemanha um milhão desses refugiados. Na altura como que lhe pedi desculpa, dizendo-lhe simplesmente: Não nasceste no lado certo do mundo. Mas agradecendo-lhe também, se bem que com a ingenuidade de acreditar que a sua imagem iria impedir que mais alguém dissesse que desconhecia, e que isso poderia travar os populismos. Sabemos que não tem sido assim.
Finalmente, uma quarta imagem:
Esta mostra-nos o pequeno Omran Daqneesh, de 5 anos, ferido depois de um ataque aéreo em Aleppo, na Síria. É de Agosto passado. Mas passou por nós quase sem suscitar mais do que uma breve onda de “likes” chorosos nas redes sociais. Depois, nada. Ou melhor, depois esquecemos de novo Aleppo até que esta semana aquela que era a maior cidade do norte da Síria caiu por fim nas mãos do regime de Damasco e dos seus aliados russos.
Em How the World Closed Its Eyes to Syria’s Horror Michael Kimmelman recordou-nos também estas quatro imagens, numa reflexão no New York Times em que também mostra muitas outras que nos passaram despercebidas, ou às quais não ligámos. Ao procurer uma explicação para a indiferença, ele nota, por exemplo: “Some of the public’s indifference can of course be chalked up to compassion fatigue and disillusionment with a war in its sixth year. Promises to end the conflict were broken over and over. There were assurances about popular uprisings. Social media today supercharges protest movements, which burn out almost as fast. Such movements used to require a slow, brick-by-brick construction. They didn’t rely on Facebook videos and Instagram photos.”
Mas será apenas o efeito do imediatismo das redes sociais que nos cansa demasiado depressa? Será por muitas das imagens serem tão horríveis que nem queremos vê-las, como também defende? Ou haverá antes uma explicação mais profunda e mais política, como defende Rui Ramos hoje no Observador em O mundo que está a nascer em Aleppo. Nota ele: “As pessoas despedem-se, as crianças pedem para serem poupadas, e o mundo olha com a mais imperturbável indiferença. Bem sei: tudo é mais complexo do que algumas imagens dramáticas dão a entender. Mas noutros tempos ou noutras circunstâncias, nunca a complexidade dissuadiu clamores, protestos, manifestações. Talvez as crianças, as mulheres e os homens de Aleppo tenham apenas tido azar: o azar de estarem a ser bombardeados pela ditadura de Assad com a ajuda da Rússia de Putin, em vez de serem atacados, por exemplo, por Israel com o apoio dos EUA. Se fosse este o caso, não faltariam moções, votos, marchas.”
Mas há mais, e este é o ponto central do seu argumento: “O caso de Aleppo sugere que o desprendimento dos EUA não resultará apenas num mundo onde a razão e o direito não têm força. Resultará num mundo que, talvez por isso, nos começa a deixar indiferentes.”
No entanto Aleppo, cidade mártir, não é um lugar qualquer. Não é pela sua história multi-milenar, pelo mosaico de culturas, pela riqueza do património. Como também não é pela dimensão. Com mais dois milhões de habitantes, Aleppo abrigava, antes da guerra, quase tantos habitantes quantos os que vivem na Grande Lisboa. Imagine-se agora o que seria uma guerra assim numa cidade como a nossa capital. Olhe-se, por exemplo, para estas fotografias – Sim, são o mesmo sítio. 30 imagens da Síria, antes e depois da Guerra – e tente-se visualizar o que seria uma batalha quarteirão a quarteirão numa das nossas grandes cidades, arrasando o seu centro histórico e os seus bairros residenciais. Olhe-se, por exemplo, para estas infografias do El Pais e veja-se como foi a Evolución de la batalla de Alepo, longa de quase seis anos.
Para mais informação, sempre num registo muito explicativo, recomendo também um video da Vox The crisis in Aleppo, explained in 4 minutes (imagem abaixo) e um trabalho do El Español, Todo lo que tienes que saber para entender la masacre de Alepo.



Conhecidas estas explicações, que pensar? Como julgar o caminho que nos trouxe até este ponto? Para uma primeira abordagem, o sempre indispensável editorial da The Economist de hoje, que dedica a sua capa à tragédia síria: The lessons from Aleppo’s tragic fate. E que destino: “Grozny, Dresden, Guernica: some cities have made history by being destroyed. Aleppo, once Syria’s largest metropolis, will soon join their ranks.” Quanto às lições, eis uma das que a revista retira:
Particular blame falls on Barack Obama. America’s president has treated Syria as a trap to be avoided. His smug prediction that Russia would be bogged down in a “quagmire” there has proved a historic misjudgment. Throughout his presidency, Mr Obama has sought to move the world from a system where America often acted alone to defend its values (…) to one where the job of protecting international norms fell to all countries (…). Aleppo is a measure of how that policy has failed. As America has stepped back, the vacuum has been filled not by responsible countries that support the status quo, but by the likes of Russia and Iran which see the promotion of Western values as an insidious plot to bring about regime change in Moscow and Tehran.
E reparem: o drama de Aleppo não começou ontem, o seu desenlace não foi uma surpresa. Há mais de quatro anos que fechamos os olhos, e cito em apoio a este argumento dois testemunhos autorizados. O primeiro é um breve testemunho de um dos mais prestigiados jornalistas da New Yorker, Jon Lee Anderson, um texto de – imaginem – Fevereiro de 2012: Crying for Aleppo. Nela conta a conversa com um amigo sírio que encontrou numa viagem à Europa: “Suddenly, in the midst of a conversation, he burst into tears. His entire body shook sharply, with convulsive weeping that was clearly uncontrollable, and lasted a minute or two. Tears streamed out of his eyes and his cries were deep barks followed by gasps. His face was a mask of pain. “My people, my country,” he said, over and over. “My people, my country.”
O segundo é o tocante (e perturbante, até por algumas das posições que defende) testemunho da irmã Guadalupe, numa entrevista a João Francisco Gomes do Observador à freira que escapou várias vezes da morte “por minutos”. Ela que viveu quase toda a guerra em Aleppo, detalhou em especial o sofrimento dos cristãos – “Há cristãos que morrem de forma atroz, crucificados, enterrados vivos” – e de defender que A primavera árabe é uma invenção que não tem nada de primaveril”, acaba por tomar a defesa do regime, que ao menos não é fundamentalist: “Rebeldes e Estado Islâmico são praticamente a mesma coisa. Não há rebeldes sírios, não existe a oposição moderada. Só há dois lados nesta guerra, o que acontece é que são grupos distintos. A única defesa do povo é o exército nacional, do regime.”
Refiram-se ainda as reportagens de Paulo Dentinho, da RTP, na Síria, nomeadamente O retrato de uma parte destruída de Alepo e a sua entrevista a Bashar al-Assad, o Presidente sírio.
Neste quadro, mais algumas questões, primeiro sobre a aliança entre este mesmo Assad e Vladimir Putin, uma aliança que José Milhazes analisava hoje no Observador em Rússia atola-se na Síria. Nesse texto criticava especialmente “O que militares russos defendem, e já está a ser feito na Síria, é a repetição de operações como as que não deixaram pedra sobre pedra em Grozny, na Chechénia, sem se importarem com “danos colaterais”.
No Wall Street Journal fazia-se uma análise dos últimos desenvolvimentos, considerando-se que estes revelam bem as prioridades do regime: Assad’s Choice: Fight Rebels but Give Way to ISIS. Tudo porque a ofensiva final sobre Aleppo coincidiu com o recuo em Palmira, a cidade histórica onde os extremistas do Estado Islâmico voltaram a entrar. E isto porquê? Talvez porque “At a time when the world’s attention is focused on the brutality of government troops in Aleppo, they say, the sudden reappearance of bearded Islamic State militants in the storied town served as a convenient reminder that, in the greater scheme of things, Mr. Assad is meant to represent the lesser evil.”
Olhando já para o futuro, Robin Wright escreve na New Yorker sobre o que pode vir aí em The battle for Aleppo, Syria’s Stalingrad, ends. Não tenho a certeza que o paralelo com Estalinegrado seja o mais feliz (a não ser no grau de destruição), mas interessa-me mais o que se começa a dizer sobre uma possível mudança de orientação da próxima Administração Trump: “During the Obama Administration, a parallel rivalry has played out between the United States and Russia over Syria. That may change under Trump, or he may try to change it. But the President-elect is likely to discover that, by dramatically shifting course and agreeing to terms that favor Russia and keep Assad in power, he risks angering allies or endangering long-standing partnerships—including with Turkey and the Gulf monarchies—with their own interests in Syria.”
Será mesmo assim? Será que, como escreve Nina L. Khrushcheva no Project Sydicate, as escolhas de Trump configuram The Manchurian Cabinet? A referência aqui é ao filme The Manchurian Candidate, no qual os soviéticos tentam conquistar a Presidência dos Estados Unidos por dentro, através da lavagem ao cérebro a um potencial candidato e, claro, não podia ser mais contundente: “To be sure, the attraction for Putin that Trump, Secretary of State-designate Rex Tillerson, and National Security Adviser General Michael Flynn share is not the result of brainwashing, unless you consider the love of money (and of the people who can funnel it to you) a form of brainwashing. Nonetheless, such Kremlinophilia is – to resurrect a word redolent of Cold War paranoia – decidedly un-American.”



Curiosamente uma perspectiva bem diferente desta é a que resulta da troca de ideias entre Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto no mais recente Conversas à Quinta, O que nos dizem as primeiras nomeações de Donald Trump? Este programa beneficiou do facto de ambos terem estado nos Estados Unidos já depois da eleição presidencial, trazendo-nos por isso um olhar fresco e informado, até porque tiveram acesso a gente que está por dentro do que se está a passar. Mais: um olhar algo diferente do que tem sido mais divulgado pela comunicação social que, como notou um deles, “ainda não percebeu que Trump ganhou as eleições” (pode sempre optar pelo podcast, que é mais confortável para ouvir enquanto passeia ou viaja de automóvel). Controverso q.b.
E por hoje é tudo. Tal como por esta semana. Aproveitem bem os dois dias de descanso e, se estão a pensar comprar livros como prendas de Natal, estejam atentos ao Observador e ao meu próximo Macroscópio. Até lá.
 
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