segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Quando os tiros são sempre os mesmos Os melros são sempre os mesmos

Bruno dos Reis
Bruno dos Reis
Encenador do GrETUA
Há talvez poucas coisas mais anacrónicas e paradoxais do que se escrever em 2017 sobre a falta de público. Mais me espanta, a mim enquanto espectador bem alapado, que seja o sermão de maior afeição aos chamados operadores culturais na região de Aveiro.

Aveiro é uma cidade com enormíssimas falhas na sua malha cultural, na qual o espectador desempenhará pela sua natureza um papel vital, sem dúvida, mas são falhas de que o próprio tem pouca, se sequer alguma, responsabilidade. O salmo bacoco de que o espectador é ignorante se não comparece, estúpido se não frequenta, néscio se não se voluntaria, soa-me já à parábola do sábio que se põe a falar com os camelos porque na cidade ninguém o entende: haverá o dia em que cuspirá como os ditos animais, e os animais ditos estarão ainda por aprender uma palavra do que diz.

Se por um lado é uma injustiça aos (mesmo que raríssimos) casos de sucesso na região, por outro é um paralogismo perigoso e contagiante que vai desresponsabilizando tanto os raros criadores como os programadores culturais. Há nisto porventura demasiadas mãos (todas bem lavadinhas, como se imagina) para que as possamos apontar criteriosamente: a falta de politização da Cultura por vários mandatos autárquicos que foram delegando as suas incumbências à fé no liberalismo acerebrado de iniciativas (inexistentes) privadas; o crescente fosso entre a cidade e as várias instituições de Cultura que foram fossilizando tanto as suas propostas como as suas estratégias de comunicação; a ausência de estruturas que conseguissem, academicamente, prover os mais jovens criadores tanto de bases sólidas como de formação adequada às carreiras a que se pretendiam lançar; e em última instância os meios de comunicação que, pelo seu formato profundamente caduco e conservador, sempre falharam em ser uma plataforma de recenseamento crítico.

Uma obra (ou um evento) que não é objecto de crítica é uma obra que não sofre o peso da responsabilidade, que não defende a sua autoridade. É fácil de perceber como se entra na "no man's land" de Morin, em que o que acontece não é inscrito, não tem peso, não tem continuidade, não estrutura, não causa, não opera. Há uma sucessão de efemeridades de objecto artístico e cultural que não chegam sequer a acontecer entre si e para si - não podendo acontecer assim para a massa pública a que são destinadas.

É, sim, verdade que Aveiro é uma cidade onde não existe uma esfera pública responsável pela Cultura contra-corrente e marginal essencial à sua dinâmica, pelo détournement do já instituído, das políticas culturais passivas e bacocas, dos meios de comunicação mais datados que trocam espaço noticioso por assinaturas anuais ou que fazem de press-releases alheios o conteúdo ad verbum do seu expediente, dos (raros) equipamentos culturais fossilizados no pós-CEE das vacas gordas, mas a culpabilidade da inexistência dessa massa crítica activa não pode pertencer ao público passivo em gestação, é um contra-senso. E apontar-lhe o dedo parece-me o mesmo que acusar os melros de não acertarem nas balas.
"O Teatro Académico não é o tio desempregado dos núcleos universitários, que vem às festas de família contar piadas e pôr nariz vermelho. (...)
O Teatro Académico é Teatro."
Mais ainda se poderia escrever sobre o capital humano que os estudantes universitários trazem à cidade e que tem sido continuamente desvalorizado pela falta de estratégia cultural da dita Universidade e da falta de visão dos (alguns) já idos agentes culturais. Um futuro regional, qualquer que seja, passará sempre em primeira instância pela inclusão destes milhares de jovens nas suas dinâmicas culturais, e só depois se pode pensar no resto de uma cidade que começou por estar entre o Porto e Coimbra e hoje em dia está entre Estarreja e Ílhavo. Não se compreendem algumas vozes que acusam os estudantes, mormente os estudantes, de não quererem saber da Cultura. Ninguém quer saber da Cultura até estar envolvido nela, é quase o mesmo que o paradoxo da força e da vontade nietzscheana: o que se interessa pela Cultura é a Cultura.

Vivemos talvez uma oportunidade de excepção. Não me lembro de outro tempo onde houvesse tão fácil acesso a uma programação tão variada (pegando ainda no caso de Ílhavo aqui tão perto); temos um Teatro Municipal que parece finalmente seguir uma lógica de programação e que parece, volvidos anos, ter começado a oferecer o patamar que faltava a pretensas vozes da região; um Grupo Experimental de Teatro a rebentar pelas costuras, a oferecer formação que nunca tão pouco houve na cidade e a provar, evento após evento, que falta de público é o que não existe; atrás disto sinais de mudança naquilo que nunca se julgou de outra forma, a entidade responsável por quinze mil jovens, a AAUAv; o aparecimento de iniciativas privadas e individuais que a muito custo pessoal vão sendo um luxo, como o caso da recém-nascida VIC; por mais fátuas que algumas se adivinhem e mais ingénuas que outras ainda sejam, a recente criação de várias plataformas (digitais e em papel) que se propõem a fazer o trabalho que o jornal dito regional menos faz; e ainda o surgimento de eventos contra-corrente a quem talvez caiba o trabalho mais duro de todos, como o caso do Aveiroshima.

E se tudo isto é ainda manifestamente pouco, é porque ainda nos falta a nós, criadores e agentes culturais, fazer manifestamente muito. O público de 2017 não é o mesmo de 1990 e idos longos passos, cabe-nos a nós encontrarmos estratégias diferentes – podíamos começar pelo nosso discurso. Fica aqui a minha cuspidela.

"O Teatro Académico não é o tio desempregado dos núcleos universitários, que vem às festas de família contar piadas e pôr nariz vermelho. O Teatro Académico não é uma palhaçada. O teatro não é uma palhaçada. O Teatro Académico é Teatro. O Teatro Académico não é Teatro Amador. O Teatro Académico é Académico porque deve, antes de tudo, funcionar como uma academia, como uma escola. A definição de uma escola não está no seu recreio, está no que ensina e na qualidade com que ensina" - 1ª Edição da Revista Matriz

Fonte: Universidade

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