domingo, 20 de agosto de 2017

SEM LIBERDADE DE IMPRENSA NÃO HÁ DEMOCRACIA



A máxima é um truísmo, quase um lugar-comum, e pode servir para propalar falácias e sofismas. Se não há democracia sem liberdade de imprensa, não há liberdade de imprensa sem democracia. A democracia é a condição de existência da liberdade de imprensa e não o contrário. Sem democracia pode não haver a própria imprensa. A imprensa livre se instituiu onde a sociedade decidiu ser democrática; não foi a imprensa que se libertou e instituiu a democracia. Não se nega a importância da imprensa para a precipitação de processos históricos que culminariam com a substituição de governos autoritários por democráticos, mas então a imprensa ainda não era livre; pretendia ser livre e, em troca da liberdade, oferecer-se como guardiã da democracia. Uma das guardiãs, pois a democracia não prescinde de outros protetores – poderes independentes, como o Judiciário, que às vezes pode ser chamado a proteger a democracia da imprensa, ao impedir, por exemplo, que esta exerça influência exacerbada sobre o processo de eleição dos representantes, apoiando, ainda que dissimuladamente, um candidato em detrimento de outro. Ao proteger a democracia, a imprensa defende antes sua possibilidade de existência, inclusive como negócio.

O termo liberdade de imprensa também é empregado indistintamente como sinônimo de liberdade de pensamento, expressão ou informação. Entretanto, a origem do termo demonstra que sua amplitude não contém em si aquelas outras liberdades, de expressão ou informação, embora não se deprecie a capacidade da imprensa de assegurá-las. Em sua origem, porém, o termo tem relação com a necessidade de autorização prévia para imprimir, como ensina THOMAS PAINE, citado por VENÍCIO A. DE LIMA:

Paine descreve as circunstâncias em que a expressão “liberdade de imprensa” passou a ser usada quando a Revolução Inglesa de 1688 aboliu a exigência de autorização prévia do Imprimateur do governo para a impressão de textos. Ele chama a atenção para o fato de que a liberdade de imprimir nada tem a ver com o conteúdo impresso:

 (...)

 “Na Revolução, o cargo de Imprimateur foi abolido e os textos podiam, então, ser publicados sem primeiro obter permissão do oficial do governo. A imprensa era, em consequência desta abolição, dita ser livre e foi dessa circunstancia que o termo liberdade de imprensa surgiu”.9

Liberdade de expressão é poder dizer o que se pensa, de informação é poder saber o que os outros pensam, de imprensa é poder difundir o pensamento dos outros. A redução pode ser simplista, pois essas liberdades mantêm uma relação de interdependência, pouco importando se liberdade de expressão é mais aplicável ao indivíduo e liberdade de imprensa mais ao negócio. Superada, ou não, a discussão semântica, cabe repetir o truísmo de que “sem liberdade de imprensa, de informação e de expressão não há democracia”. Pressuposta como verdadeira, a máxima dispensa maiores digressões. A história prova que essas liberdades são as primeiras a sofrerem quando o autoritarismo se instaura.

 A sociedade democrática considera as liberdades de expressão, informa- ção e opinião imprescindíveis à manutenção da democracia, seria redundante expor os fundamentos do teorema. A Constituição da República elegeu essas liberdades à categoria de direitos individuais e coletivos no Art. 5º:

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

(...) 

 IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

(...) 

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; 

As condições de exercício dessas liberdades podem ser extraídas da leitura dos incisos acima e têm caráter positivo (é livre a manifestação, é livre a expressão), negativo (vedado o anonimato e a vedação implícita da censura) ou ainda de sujeição a outra condição (o sigilo da fonte é resguardado, quando necessário ao exercício profissional). Se o que pode ser feito está conjugado ao que não pode ser feito ou pode ser feito dependendo da condição, infere-se que essas liberdades não são absolutas, como também não é o direito à intimidade ou ao sigilo das comunicações.

A Constituição e a legislação preveem situações em que a liberdade de imprensa pode ser limitada. O estado de sítio, medida de defesa do Estado e das instituições democráticas, cabível em casos de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa e declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, é previsto na Constituição (Art. 137) e admite restrições à liberdade, inclusive a de imprensa:

Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:

 (...)

III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;

 O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069 de 1990) contém vedações que se referem diretamente à imprensa:

Art. 143. É vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional.

 Parágrafo único. Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome.

Pode-se argumentar que ambas as situações são específicas e, somente durante sua ocorrência, é admissível a limitação da liberdade de imprensa. O argumento é válido, mas não refuta a afirmação de que nem a imprensa é sempre livre. Pode-se argumentar ainda que, mesmo durante aquelas situações, seria desejável uma imprensa insubordinada, que denunciasse abusos ou prevenisse injustiças. Cairíamos, então, na desobediência civil ou na revolução, em que vigora a lei do mais apto, com todas suas consequências. São situações extremas em que a sociedade atribuiu a um direito (o de autopreservação do Estado e o de dignidade da criança) valor maior que a liberdade de imprensa. Contudo, haverá situações em que, a despeito do status de aparente privilégio da liberdade de imprensa em relação a outros direitos, a ausência de limites pode implicar violações incompatíveis com as faculdades que a sociedade visa assegurar. 

A cobertura “ampla, geral e irrestrita” de processos criminais e a divulga- ção das medidas constritivas eventualmente adotadas, como a violação do sigilo das comunicações telefônicas, é situação que suscita controvérsias. A publicação de transcrições de conversas que deveriam permanecer sob sigilo torna perceptível a fragilidade de direitos como à presunção de inocência e ao devido processo legal e, ainda, a que as conversas interceptadas sejam usadas apenas para as finalidades previstas em lei. Não são raros os casos em que pessoas tiveram suas reputações destruídas ou a persecução criminal não surtiu efeito por causa de divulgação inoportuna de informações, sigilosas ou não, com resultados irreversíveis. O “Caso Escola Base” é exemplo notório de execração pública e, pior, injusta. Os vazamentos da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, levaram ao banco dos réus o próprio delegado, o que, não é absurdo supor, pode comprometer o resultado final da investigação10.

A influência da imprensa sobre os julgamentos criminais e a possibilidade de intervenção do Judiciário é tema de discussão nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa. Nos EUA, relata SCHREIBER,

 a única proteção efetiva concedida pela Suprema Corte aos réus em processos criminais consiste na anulação de julgamentos em casos nos quais a publicidade massiva possa ter influenciado os jurados, ou seja, a cobertura jornalística prejudicial possa ter sacrificado o direito do réu a um julgamento justo e imparcial. Vê-se assim que medidas que restrinjam a atuação dos jornalistas (restrição da publicidade do julgamento, proibição de veiculação de notícias, imposição de penas aos veículos de comunicação posteriores à publicação) não são prestigiadas pela Suprema Corte.

Mas na Europa, 

a proteção quase absoluta conferida à liberdade de expressão nos Estados Unidos da América não encontra guarida na jurisprudência da Corte Européia dos Direitos Humanos. Nos julgados examinados, verificou-se que a reconhecida importância da liberdade de expressão, inclusive em face de sua imprescindibilidade para a democracia, não impede eventual imposição de medidas restritivas pelos Estados contratantes à atividade jornalística, quando há colisão daquele direito com outros direitos ou valores igualmente protegidos pela Convenção Européia de Direitos Humanos. 

 O Artigo 10º da Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 1950, admite restrições à liberdade de imprensa:

Artigo 10º
 Liberdade de expressão 

Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideais sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.

Um estudo científico não pode recorrer à falácia eurocêntrica e se render ao discurso do europeu só porque é europeu, mas não pode omitir a circunstância de que a convenção foi assinada cinco anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. O continente ainda estava sendo reconstruído, sob as lembranças de uma ditadura inominável, em que a liberdade de imprensa foi a menor das liberdades suprimidas. Não obstante, a convenção houve por bem não considerar nenhum direito absoluto – talvez porque de absoluto, para os europeus, tenha bastado o nazismo. Bem mais ao oeste e ao sul do mapa, a mera tentativa de discutir o assunto é rechaçada como se fosse uma ignomínia comparada à revisão do Holocausto.

 Nada é absoluto no Estado Democrático de Direito, nem o próprio Estado, cujo poder – que emana do povo, não da imprensa... – é tripartido. A imprensa não pode ser um espaço de indisciplina anárquica, sujeita apenas ao dever de pagar indenização por dano moral, material ou à imagem, como se esses danos pudessem facilmente ser medidos em dinheiro. Indenização, no mais das vezes, compensa mas não repara. A imagem desfeita por notícia não se refaz por sentença. E, até prova em contrário, todos são inocentes mesmo que seus telefones tenham sido grampeados.

A reação da imprensa à proposta de discussão da possibilidade de haver limites, ainda que denote a cautela de não ceder os anéis para não perder os dedos, é ilustrada com uma frase que se transformou em outro lugar-comum, revelando a conveniência do poder de edição e disseminação de parte como se fosse todo. LIMA conta uma história:

 Sempre que os proprietários da mídia impressa se sentem ameaçados em seus interesses recorrem a Thomas Jefferson (1743-1826). Uma de suas frases, inserida em longo parágrafo de carta escrita de Paris para Edward Carrington, em 1787, é recorrentemente citada:

“A base de nossos governos sendo a opinião do povo, o primeiro objetivo deve ser mantê-la exata; fosse deixado a mim decidir se deveriam ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir este último”.

 A preferência de Jefferson pelos jornais em relação ao governo é inequívoca. No entanto, há vários aspectos que precisam ser esclarecidos. Vamos a eles.

Em primeiro lugar, a carta de Jefferson continua e a próxima frase do mesmo pará- grafo é a seguinte:

“Mas insistiria em que todo homem recebesse esses jornais e os soubesse ler”. 

Vale dizer que existe uma condição para a preferência pelos jornais: eles devem chegar a todos e, mais importante, todos devem saber ler. Há aí um inequívoco compromisso com o caráter universal da opinião do povo e com a necessidade de que todos sejam educados para que possam ler o que está escrito nos jornais.

Escrevendo no século 18, a provável preocupação de THOMAS JEFFERSON seria a alfabetização e não a capacidade de apreender conteúdos subliminares ou mesmo não publicados. A atual propagação da Internet permite aos incluídos digitalmente o curioso, mas não tão lúdico, exercício de ler os jornais, ouvir as rádios e assistir às tevês para captar o que não foi dito. BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS é autor de outra citação, com 31 mil indicações no Google, que resume o poder do não discurso: “quem tem poder para difundir notícias, tem poder para manter segredos e difundir silêncios. Tem poder para decidir se o seu interesse é mais bem servido por notícias ou por silêncios”. 

Se a frase de JEFFERSON é repetida automaticamente pelos donos da mí- dia ao menor indício de qualquer coisa que não lhes agrade, a de SANTOS é o amuleto dos arautos da subjetividade – da sua própria em substituição a dos outros, inclusive. Nem JEFFERSON nem SANTOS têm culpa do uso que fizeram de seus excertos e nem as citações têm o objetivo de aderir a um ou outro, mas demonstrar que, no âmbito da ética, qualquer discurso é adaptável às conveniências de quem discursa. A evolução deste estudo apresentará opiniões que poderiam responder às questões éticas a serem propostas, ainda que antagônicas.

 Em Sobre ética e imprensa, EUGÊNIO BUCCI assevera que “a liberdade de imprensa é inegociável. Mas, como poder que são, os meios de comunicação requerem de seus controladores uma subordinação a valores éticos que construam – e não corrompam – a democracia em nome da qual a liberdade lhes é conferida”13. Que valores? O primeiro poderia ser o respeito à lei, mas não à letra da lei e aos virtuosismos hermenêuticos que convertem em verdade sagrada a interpretação mais útil, e sim ao espírito da lei, ou, para não apelar à metafísica, à finalidade da lei. Se a Constituição e a lei protegem a intimidade e o sigilo das comunicações telefônicas, porque a finalidade é protegê-las; se a Constituição e a lei admitem que ambos não são absolutos, porque a finalidade é não criar absolutismos; não contraria a lógica admitir que a liberdade de imprensa possa ter limitações – como tem – para evitar a supremacia de um direito sobre o outro. Entretanto, BUCCI conclui o raciocí- nio, no mesmo parágrafo, com uma resposta categórica:

Não é a veiculação de conteúdos que precisa ser monitorada pela autoridade, mas o poder que precisa ser limitado – e isso significa limitar a propriedade dos meios eletrônicos de comunicação. É disso que se trata.

A propriedade pode ser limitada, ainda que restrinja a livre iniciativa. “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”, está no § 5º do Art. 220 da Constituição. A concentração de veículos em famílias ou grupos em nada favorece a liberdade de imprensa, que se reduz à liberdade de expressão dos proprietários. Mas não é disso que se trata. O dilema ético está na possibilidade de limitação dos conteúdos, que, lembre-se, não é incompatível com a Constituição, em que pesem as opiniões divergentes.

Outro direito fundamental está descrito no inciso LVII do Art. 5º: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenató- ria”. É a presunção de inocência, esta sim transmudada em dogma por recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) – bastante criticada, aliás. Vale dizer: ninguém irá para a cadeia tão cedo enquanto houver advogados dispostos (leia-se pagos) a discutir a última vírgula do último despacho. Mas subsiste a última vírgula incontroversa e, um dia, a população carcerária aumentará, para resignação dos cré- dulos e agonia dos aflitos sem defensores virtuosos (e bem pagos).

 Se a igualdade de acesso à Justiça não é absoluta, ainda que por fatores alheios à harmonia do sistema, por que a presunção de inocência seria? Sem mais ironias, todos têm direito a não serem inscritos no rol dos culpados enquanto houver recursos à disposição, o que nem sempre ou quase nunca significa a existência de dúvida sobre o mérito. É direito básico não ser privado da liberdade sem que estejam cumpridos todos os requisitos de execução da pena. Todavia, a própria legisla- ção prevê hipóteses de prisões temporárias e preventivas, por considerá-las instrumentos úteis à efetividade do direito do Estado de perseguir e punir. Acerca dos excessos cada vez mais condenados e que podem induzir a opinião pública a uma convicção unilateral, discorre o ex-ministro do STF SEPÚLVEDA PERTENCE:

‘O apelo à exemplariedade, como critério de decretação da custódia preventiva’ – acentua, entre nós, por exemplo, Magalhães Gomes Filho – ‘constitui seguramente a  mais patente violação do princípio da presunção de inocência, porquanto parte justamente da admissão inicial da culpabilidade, e termina por atribuir ao processo uma função meramente formal de legitimação de uma decisão tomada a priori’. ‘Essa incompatibilidade’ – aduz – ‘se revela ainda mais grave quando se tem em conta a referência à função de pronta reação do delito [sic] como forma de aplacar o alarme social; aqui se parte de um dado emotivo, instável e sujeito a manipulações, para impor à consciência do juiz uma medida muito próxima à idéia da justiça sumária.’

A constrição da liberdade do indivíduo pode ser tolerada, mitigando o direito à presunção de inocência. A liberdade de imprensa, esta “é inegociável”.

 O compromisso da imprensa é com a sociedade, com o direito à informação do cidadão. De posse de uma informação de interesse público, o dever da imprensa é publicá-la. Da maneira mais correta, mais serena, mais precisa, mais respeitosa possível, mas publicá-la. É falta de razoabilidade supor que, a partir de agora, o compromisso da imprensa seria com os sigilos de Estado. Existem investigações sigilosas de diversas naturezas, e o compromisso com a preservação desse sigilo é dos agentes envolvidos no seu processamento. A imprensa existe justamente para publicar o que outros consideram segredos, segredos atrás dos quais podem se esconder ações que conspiram contra o interesse público. Imagine o que seria do jornalista, se ele não pudesse mais investigar e publicar segredos. O que é uma notícia senão um segredo revelado?
O complemento do significado prático de dizer que, para a imprensa, o compromisso com a democracia está acima do compromisso com os humores do público é que muitas vezes a imprensa deve remar contra a opinião popular. Só assim ela pode servir de vigilante do poder.
Acima do mercado, o jornalismo deve trabalhar para a democracia. (...) O compromisso do jornalismo, agora, deve ser um compromisso com a observância e o aperfeiçoamento das regras democráticas – e isso está acima dos humores do público.

 BUCCI: 
Essa é uma regra sagrada da democracia americana. Lá, o argumento mais recorrente que se dá a essa matéria é a seguinte situação hipotética: se o presidente da República mente para a própria mulher, o público tem o direito de saber, pois a atitude de enganar a esposa denota o caráter do homem que exerce o cargo máximo do país, e seu caráter é assunto de interesse do eleitor, que leva isso em conta na hora de decidir o voto.
Pode-se discutir, do ponto de vista da ética do ofício, se a imprensa deve divulgar documentos sigilosos como aqueles – ainda que não os tenha surrupiado, mas recebido na bandeja. Talvez não haja uma resposta única, e cada caso seja cada caso. 
Mas, deva ou não deva, uma coisa é certa: pode. 
Pode porque jornais, revistas e emissoras não são responsáveis pela guarda de informações reservadas por ato judicial. Responsáveis são os servidores públicos que deviam protegê-las por que isso faz parte de suas funções.
Alguns exemplos estrangeiros, sem comentários redundantes, começando pelos Cânones do Jornalismo, adotados pelo Comitê de Ética da American Society of Newspaper Editors (ASNE), em 1922.
Liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa deve ser protegida como um direito vital da humanidade. Ela é o direito inquestionável de discutir qualquer coisa que não seja explicitamente proibida por lei, inclusive a sabedoria de qualquer estatuto restritivo. 
Um jornal não deve invadir direitos ou sentimentos privados sem garantia segura de direitos públicos, distinto da curiosidade pública. 
Declaração de Princípios da ASNE, que reviu e renomeou, em 1975, os Cânones do Jornalismo: 
O objetivo principal de coletar e distribuir notícias e opinião é atender o bem-estar público informando as pessoas e capacitando-as a fazer julgamentos sobre as questões do momento. (...) A imprensa americana nasceu livre não apenas para informar ou para servir de fórum de debates, mas também para trazer um escrutínio independente sobre as forças do poder na sociedade, inclusive sobre a conduta do poder oficial em todos os níveis de governo
Os jornalistas devem estar constantemente alertas para garantir que os assuntos do público sejam conduzidos em público.
 Os jornalistas devem respeitar os direitos envolvidos nas notícias, observar os padrões conhecidos de decência e permanecer responsáveis perante o público pela imparcialidade e exatidão de suas reportagens noticiosas. Pessoas acusadas publicamente devem receber a mais pronta oportunidade de resposta. As promessas de confidencialidade para com as fontes de notícias devem ser honradas a todo custo e, por isso, não devem ser feitas levianamente. A menos que haja necessidade clara e premente de manter o sigilo, as fontes de informação devem ser identificadas.
Código de Ética da Sociedade dos Jornalistas Profissionais Sigma Delta Chi, com versão de 1996: 
Identificar as fontes sempre que viável. O público tem direito ao máximo de informa- ções possível sobre a confiabilidade das fontes
Sempre indagar as motivações das fontes antes de prometer anonimato. Esclarecer as condições vinculadas a qualquer promessa feita em troca de informações. Cumprir as promessas. 
Evitar espionagem ou outros métodos sub-reptícios.
Reconhecer como obrigação especial garantir que os negócios públicos sejam conduzidos às claras e que os registros governamentais sejam abertos à inspeção.
Ser judiciosos quanto a nomear suspeitos de crimes antes do registro formal de acusações. 
Estabelecer um equilíbrio entre os direitos de um suspeito de crime a um julgamento imparcial e o direito do público de ser informado
Desconfiar de fontes que ofereçam informações em troca de favores ou dinheiro, evitar ofertas de notícias. 
Código de Ética dos Editores-Chefes da Associated Press, revisto e adotado em 1995: 
O direito do público de saber sobre questões de importância é supremo. O jornal possui uma responsabilidade especial como delegado de seus leitores para ser um zelador vigilante de seus interesses públicos legítimos
Nenhuma declaração de princípios pode prescrever decisões concernentes a todas as situações. O senso comum e o bom discernimento são necessários na aplicação de princípios éticos às realidades jornalísticas. 
As fontes de notícias devem ser reveladas, a menos que haja uma razão clara para não fazer isso. Quando é necessário proteger a confidencialidade de uma fonte, deve-se explicar o motivo. 
O jornal deve defender o direito de livre discurso e a liberdade de imprensa, e deve respeitar o direito do indivíduo à privacidade. O jornal deve combater vigorosamente em favor do acesso público às notícias do governo por meio de reuniões e registros abertos. 
A Folha de S.Paulo, em editorial: 
Apesar da origem desses documentos, frutos da escuta clandestina e ilegal de conversas telefônicas, este jornal mais uma vez se sente na obrigação de publicar o que deles considera essencial para o interesse público. A Folha deliberadamente omitiu os diálogos de natureza pessoal, que em nada esclareceriam uma questão de Estado.
A ANJ não fez concessões: 
Obrigar o jornalista, em qualquer circunstância, a revelar a fonte de sua informação é, na prática, impedir o pleno exercício profissional e cercear o direito dos cidadãos de serem livremente informados. O sigilo da fonte tem sido, historicamente, base da transparência nas sociedades verdadeiramente democráticas. 
A relativização desse princípio maior da democracia, a propósito de facilitar investigações policiais, seria um grave e irreparável equívoco. Sem a garantia do sigilo da fonte, os maiores beneficiários seriam aqueles que atentam contra os valores da sociedade e que veriam dificultadas as denúncias de seus atos criminosos.
O dilema ético por excelência não é aquele que opõe o lícito ao ilícito: é aquele que abre uma escolha entre o certo e o certo, isto é, entre dois valores que se apresentam como igualmente justos e bons. Por isso, também, a ética está presente em toda decisão que busque qualidade de informação. Debater abertamente as questões éticas, à luz de episódios reais, é um serviço de utilidade pública: educa o espírito crítico dos cidadãos e ajuda a melhorar a imprensa.
Os limites à liberdade de imprensa e ao sigilo da fonte precisarão, sim, ser discutidos, assim como a espiral de impunidade de agentes públicos voluntariosos e de mal disfarçado autoritarismo. Se o desafio da ética é escolher entre o bom e o bom, a sociedade terá um dilema a menos a resolver: o círculo vicioso não é bom, como nenhum vício pode ser. 

Jairo Cardoso 
Livro: Análise dos aspectos éticos e jurídicos da publicação jornalística de comunicações telefônicas interceptadas por decisão judicial 
Florianópolis 2009



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