quarta-feira, 20 de julho de 2016

Simões: ‘Quem é líder não tem necessidade de fazer o que Ronaldo fez’

Em 1966, Simões por pouco não fez um golo que podia ter mudado a história. Hoje diz que, se tivesse de plantar meia dúzia de flores num jardim, o Mundial seria uma delas. O futebol é surpresa e poesia
A participação do “onze da esperança” no Mundial de futebol em Inglaterra foi a grande sensação do verão de 1966. Pela primeira vez num Mundial, Portugal chegou à meia-final e pelo caminho surpreendeu ao derrubar o Brasil. Entre muitas edições de euforia, uma “Flama” dá destaque de capa ao Simões do Benfica, “extremo irrequieto” que a um minuto do fim do jogo da meia-final podia ter levado ao empate e, quem sabe, à final. “Simões conta o falhanço”, destaca o número de 19 de Agosto. Lá dentro, o artigo revela alguma intimidade do jogador então com 23 anos e o azar de ter sido desarmado por Nobby Stiles. Nada melhor que perguntar ao próprio. Simões atende bem-disposto e o resto é história. Passado, presente e futuro.

Lembra-se destas páginas na “Flama”?
Claro. Raramente a gente apareceria em qualquer lado. Havia poucas revistas e os jogadores eram ídolos, não eram estrelas. Hoje, sendo estrelas, aparecem em tudo o que é cor-de-rosa, tudo o que é revista. Tudo isso vende. Essa é uma das grandes diferenças. Aquilo de estar a mostrar a família e as crianças era raro. Mas é muito engraçado, porque traz algumas recordações.
Guardou a revista?
Têm-na as minhas filhas. Tenho três raparigas e elas é que guardam tudo.
Na altura já tinha as três?
Tinha duas. A Ângela nasceu em 1964 e a Ana Teresa nasceu em Fevereiro de 1966. A mais pequena tinha cinco meses.
Estava casado há três anos. A sua mulher conta que se tinham conhecido no metro e ela não sabia quem era o “Simões do Benfica”.
[Risos]. Pois, a gente andava de metro. Só comprei carro em 1962, já era campeão europeu [pelo Benfica, que venceu a Taça dos Campeões Europeus 1960-1961]. Ganhava 50 contos por ano, que era quanto custava um carro. Está a ver… eles hoje compram andares todos os dias se quiserem. Mas não me interessa, os tempos são outros e não me faz diferença nenhuma. Não tenho estigmas, não quero saber disso para nada. A vida é assim, os jogadores hoje são o que são, produto desta sociedade que está muito virada para o material, para o estatuto, para o poder. Se olhar bem para a sociedade, quem é que aparece na televisão mais do que os outros? Quem é que a televisão quer? É quem tem estatuto, não é quem tem mais inteligência. Quem vende às vezes é o gajo que é maluco, o gajo que é doido, e depois ficam surpreendidos porque os miúdos já são assim. Mas não é isso que eles vêem?
Que memórias guarda do Mundial?
Deixe-me dizer-lhe que não falhei golo nenhum, sabe porquê? Porque eu não chutei. O que aconteceu foi que um senhor chamado Nobby Stiles me tirou a bola quando eu ia para chutar. Mandou-a para canto. “Desarmou-me”, em linguagem futebolística. E eu não pude finalizar. Portanto não perdi nenhuma oportunidade. Agora, posso explicar porque é que não fui espontâneo e não pude resolver aquilo rapidamente: estava cansado. Uma fadiga enorme, não havia substituições e eu já tinha quatro jogos de 90 minutos nas pernas. Tudo isso teve imensa influência. Isto não é nenhuma desculpa, como pode compreender. Cinquenta anos depois, estar aqui a arranjar uma desculpa não interessa. Mas foi isso que aconteceu.
Na altura dizia à “Flama” que foi um azar. Deste golo do Éder, podemos dizer que foi uma sorte? É isto o futebol?
São momentos. Eu às vezes tenho uns momentos de reflexão e ontem vi uma coisa escrita sobre isto da sorte e do azar. Ninguém sabe o que é sorte ou azar, as pessoas dizem e falam da sorte e do azar depois dos factos acontecerem. Acho que há qualquer coisa, que vai muito para além da natureza, que dita que há sorte ou azar. E há pessoas ligadas ao sucesso por competência mas também porque as coisas correm bem. Não chove naquele dia, a máquina de lavar roupa não se avaria no dia em que a pessoa precisa dela. E há pessoas que é sempre: outra vez a máquina avariada, outra vez a chover. Não me agarro a isso mas tenho pena de não ter sido feliz naquele momento. Provocaria ainda maior surpresa do que foi chegarmos até ali e termos conseguido o terceiro lugar. Teríamos ido à final, o que seria fantástico. Mas também lhe vou dizer outra coisa…
Conte.
Portugal ter estado nesse campeonato do mundo e ter ficado em terceiro lugar corresponde a uma geração espontânea - não existiu uma organização, não houve planeamento. O que aconteceu foi que houve uma geração fantástica, jogadores que nasceram ao mesmo tempo e se encontraram para jogar ao mesmo tempo. Isso é muito difícil acontecer. O resultado corresponde à capacidade dessa geração. Mas, se tivéssemos ido à final, estávamos sujeitos a ganhar, e aí a mentira seria maior. Ou seja, aquilo que aconteceu em 1966 correspondeu a uma geração mas não ao valor absoluto do futebol português. Percebe o que quero dizer?
Não era o patamar do futebol português.
Exatamente. Mas não deixa de ser um marco fantástico e teria sido uma pena que tanto jogador capaz não tivesse ficado ligado ao sucesso. O que aconteceu mais tarde com a geração do Figo, João Pinto, Rui Costa - que pena que essa gente não tivesse sido campeã em 2004.
E agora?
Esta equipa que teoricamente parece de menos valor que as outras dos últimos 20 anos foi a que se sagrou campeã. Por isso veja que o futebol é contraditório. Não há lógica. E é por isso que é aliciante: as pessoas ficam apaixonadas porque nunca se sabe. As surpresas vêm e trazem o drama ou a alegria. E é esta riqueza de extremismo entre o sabor ao sucesso e o sabor amargo que torna o futebol especial. Não conheço nenhuma outra modalidade que tenha tanta força neste aspeto como o futebol.
Tem saudades dos seus companheiros de seleção que já partiram?
Penso em todos mas há um em que penso mais, com todo o respeito que tenho por todos. Chama-se Eusébio. Tenho momentos em que sinto muito a falta dele, das coisas mais simples. Sinto falta de me levantar e ir ter com ele à Tia Matilde. Precisava que o Eusébio estivesse agora aqui ao pé de mim para me dar razão naquilo que eu estou a dizer. Só ele me percebia. Nem era preciso dar-me razão, era ouvir. Tenho falta daquele sorriso, até daquele dia em que ele embirrava.
Eusébio era a cola da equipa, como agora parece ter sido Cristiano?
Isso leva-me a dizer outras coisas. Em geral, o país e a comunicação social parece que percebeu que Cristiano Ronaldo aos 31 anos é um líder. Duas semanas antes tinha mandado o microfone para dentro de água e duas semanas depois era líder. Isto é mandar poeira para os olhos, é um atestado de estupidez a quem anda nisto. Alguma vez se Mourinho fosse treinador aquilo acontecia? Acho  que o gesto de Fernando Santos foi de grande inteligência e exemplo de como se podia gerir com simplicidade e humildade aquela situação no banco e como evitar um conflito, revelando uma grande classe. Se porventura fosse outra pessoa que tivesse um complexo de autoridade, aquilo não teria acontecido ou teria acabado muito mal. Mas ninguém fala disto, toda a gente descobriu que afinal de contas o homem é líder. Em 1966 o capitão era o Mário Coluna e seria impensável acontecer uma coisa destas. Era o que faltava. Nem o treinador autorizava nem isto se atravessava na cabeça do Mário.
Mas acha bem ou mal o que fez Ronaldo?
Antes de eu achar bem ou mal, o que é preciso perceber é que aquilo está mal feito. Não é uma questão de saber se resultou em bem ou em mal, é olhar para isto e dizer que não é suposto ser assim. Essa é que é a questão. Mas agora, uma vez que se ganhou, quem é que quer saber disso? A vitória abafa. Aí está o bom ou mau exemplo de que o argumento de se ter ganho permite que tudo se faça. Mas foi por causa disso que ganhámos?
Não terá ajudado a manter a motivação nos momentos finais do jogo?
Acha que com toda a gente no banco a ficar doida e o Cristiano Ronaldo a fazer de líder… foi por isso que ganhámos? Se as pessoas começarem a pensar que foi por causa disso que ganhámos, então exijo que se faça isto em todos os jogos. Tenho 50 anos de carreira, nunca assisti a uma coisa destas na minha vida. Todos os grandes jogadores do mundo nunca se atreveram a uma coisa destas. E agora querem convencer-me que foi por causa disto que se ganhou? Vou-me matar, como dizia o outro. Vou gritar pela minha mãe. Tem isto importância na minha vida? Não, não tem. No outro dia levantei-me feliz e contente porque Portugal ganhou. Mas não podemos passar do 8 para o 80. Jogadores como conheci, líderes de grande calibre, Pelé, Eusébio, Cruyiff, Maradona... O Maradona até mesmo tendo em consideração a sua personalidade, nunca fez uma coisa destas. Acho que se apoderou do Ronaldo uma ansiedade tremenda de querer ganhar e demonstrar que era líder. Quem é líder não tem necessidade de fazer isto. Comprem livros de liderança, leiam. Fez aquilo, não trouxe mal ao mundo, ganhámos, mas não é a matriz de liderança. Peço desculpa se estou a ofender alguém. E quero que ponha isto, não vá alguém ofender-se. Chegou-se a um momento neste país em que quando se faz uma crítica, mesmo construtiva, é-se mal visto. A determinada altura durante o Europeu qualquer crítica era dizer mal ou ser antipatriótico. Não faz sentido. Se isto é assim, em que democracia vivemos nós?
1966 é para sempre um ano de memórias felizes?
Sim. Foram dois meses, um mês de preparação e outro a competir… Dois meses que, se eu tiver de plantar meia dúzia de flores num jardim, tenho de pôr a flor do Mundial. E no resto da minha vida tenho que fazer tudo por tudo para que ela nunca murche. Porque ela é a flor da minha referência, a flor do meu país, a referência dos meus colegas, a referência mais importante em toda a minha vida. Nós somos alimentados por pequenas coisas, que muitas vezes podem trazer grandes coisas. Esta pequena coisa de irmos ao Mundial trouxe-nos uma grande coisa, que foi pertencer a uma geração que trouxe para Portugal algo de extraordinário e ficou no coração dos portugueses. Nós ficámos no coração dos portugueses. E este sucesso fantástico que esta nova geração conseguiu, e outros que desejo que venham a acontecer, nunca vão tirar todos aqueles nomes do coração dos portugueses. É inapagável. O que nós queremos é mais, tragam mais, ganhem mais. E quanto mais ganharem,  quanto mais títulos trouxerem, mais homenagem se faz aos magriços. Não ofusca, é o contrário. Ainda traz mais valor porque nós fomos os primeiros. Ok, minha querida?
Obrigada Simões.  

Fonte e Foto: JORNAL I

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