sábado, 26 de novembro de 2016

Macroscópio – Mais duas dores de cabeça. E bem no coração da Europa.

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

4 de Dezembro. Não é já neste domingo, é no próximo. Em Itália os eleitores vão ser chamados a votar num referendo e se o “não” vencer o primeiro-ministro Renzi pode demitir-se. E na Áustria os eleitores vão de novo votar para eleger o próximo Presidente, depois de uma primeira votação ter sido anulada, sendo possível que escolham para o lugar o candidato de um partido euro-céptico e anti-imigração. Depois do Brexit e da eleição de Donald Trump há cada vez mais gente a falar de um efeito dominó.
 
É essa mesmo a ideia expressa num longa análise/reportagem Financial Times, Political populism: Is Italy next?, onde se nota que Itália é “the next battleground in the struggle unfolding between the moderate, liberal, centre and the increasingly successful populist forces across western democracies — with Mr Renzi as the next domino to fall.” Nesse texto explica-se bem como Mateo Renzi acabou por ficar preso na sua própria armadilha, como o político que surgiu para mudar Itália parece hoje incapaz de o fazer: “The electorate is scared and doesn’t see solutions. They will use the vote to hit those who are in power and the paradox here is that Renzi is now seen as the quintessence of the establishment,” says Giovanni Orsina, a professor of politics at Luiss University in Rome. “Renzi is like the poker player who keeps upping the ante even if his cards are bad. He’s a prisoner of his own bluff.
 
A mesma ideia é defendida por Jorge Almeida Fernandes em Que políticos querem os italianos? (Público), onde recorda que, “na altura da sua “tomada do poder” o jornalista Mario Calabresi, actual director do La Repubblica: “Ele tem razão em não querer ficar atolado no pântano. Resta saber se governar não é uma maratona e se será possível chegar à meta à mesma velocidade com que se correm os 100 metros.” Não foi. Profetizou também na altura Hugh Dixon, analista da Reuters: “Se Renzi conseguir realizar tudo isto [as reformas], será um herói. Se não o conseguir, tornar-se-á claro que mais ninguém será capaz de reformar a Itália.”
 
Para perceber um pouco melhor o que está em causa e que tipo de reforma vão os italianos ser chamados a votar vale a pena ler o especial do Observador, Italexit? Ponha o cinto para (mais um) referendo decisivo, de Edgar Caetano. Aí também se explica como o referendo pode trazer um terramoto político: “Num artigo de opinião publicado no Financial Times, logo após o referendo do Brexit, Wolfgang Münchau afirmou que o país arrisca cair num “pântano” que só beneficiará o Movimento Cinco Estrelas, o partido anti-Europa fundado pelo comediante Beppe Grillo. Esse partido, que já disputa a liderança das sondagens com o Partido Democrático de Renzi e, caso chegue ao poder, garante que a prioridade será um referendo à permanência na zona euro. Depois do Grexit e do Brexit, Italexit já é uma expressão com muita popularidade nos motores de pesquisa.”
 
Acontece porém que o problema de Mateo Renzi não é apenas ter perdido a popularidade com que contava para levar os italianos a aprovar a sua reforma constitucional – o problema é que a reforma que propõe levanta muitas dúvidas, mesmo a europeístas como o ex-primeiro-ministro Mario Monti, que já se manifestou pelo “não”. Desse ponto de vista a posição mais forte, e mais clara, foi a assumida hoje pela The Economist – a revista que fez algumas capaz célebres a denunciar Silvio Berlusconi – e que, agora, empenha-se a explicar Why Italy should vote no in its referendum. Depois de explicar que o grande problema de Itália não é o desenho das suas instituições, antes a resistência generalizada a quaisquer reformas, a revista sustenta que “Mr Renzi’s constitutional amendment fails to deal with the main problem, which is Italy’s unwillingness to reform. And any secondary benefits are outweighed by drawbacks—above all the risk that, in seeking to halt the instability that has given Italy 65 governments since 1945, it creates an elected strongman. This in the country that produced Benito Mussolini and Silvio Berlusconi and is worryingly vulnerable to populism.”
 
Na verdade – e isso tem sido muitas vezes omitido quando se agita o espantalho de um “não” em Itália – as mudanças propostas por Renzi poderiam contrariar a propensão do sistema para a instabilidade e para produzir governos atrás de governos (65 desde o fim da II Guerra) mas também entregariam um poder desproporcionado ao partido do primeiro-ministro. Por um lado, o sistema eleitoral já dá um bónus ao partido mais votado, garantindo-lhe uma maioria parlamentar mesmo quando fica muito longe de ter a maioria dos votos. Por outro lado, ao esvaziar de poderes o Senado e as regiões, o novo sistema desequilibraria a balança de pesos e contrapesos que deve caracterizar qualquer democracia. Daí também o apelo da The Economist ao “não”, mesmo correndo-se o risco de abrir mais uma crise política na Europa.
 
E eu dizer da Áustria? Apesar de se tratar de um país muito mais pequeno (mais pequeno do que Portugal), a possibilidade de eleger um político vindo da direita radical anti-imigração está a inquietar muita gente nas diferentes capitais europeias. Por isso, e para perceber melhor o que se está a passar, sugiro um breve explicador da Bloomberg, Why Austria’s Election Makes History Either Way. De entre as várias questões que aí se abordam, seleccionei uma, “What are the issues?” E que são as seguintes: “Immigration, EU power and trade deals -- in other words, the same panoply of issues coloring elections across all western democracies. On top of that comes an increasingly unpopular government, formed by the two centrist parties to keep the Freedom Party out of power.”
 
Já o Financial Times esteve em reportagem em Burgenland, a mais pobre das regiões austríacas, na fronteira com a Hungria, e em Austrian election tests support for European populism in Trump era, dá a palavra a Wolfgang Weisgram, o correspondente local do diário vienense de centro-esquerda Der Standard, para quem “In comparison with Trump, Norbert Hofer is a serious politician.” Norbert Hofer é o candidato do Partido da Liberdade, aquele que alguns vêem como podendo sair beneficiado por uma espécie de efeito de arrastamento gerado pela eleição de Trump. Não foi esse o ambiente que o repórter encontrou no local: “Outside the baroque Esterházy palace, with the sunlight reflected off the windows creating faint, Trump-like bling, not everyone is convinced the US election will help Mr Hofer.”
 
Mesmo assim, no mesmo jornal, um dos seus principais colunistas, Tony Barber, considerou que Victory for Austria’s far right will send ripples across Europe. Para ele o desafio é enorme e cruza toda a Europa: “If Austria elects Mr Hofer, what is to stop France electing Marine Le Pen as president next May? What is to stop the advance of anti-establishment forces in Italy and the Netherlands? The politics of Hungary, Poland and Slovakia are already polluted with illiberalism, Islamophobia and anti-immigrant nationalism. Against the backdrop of Britain’s vote to leave the EU, and doubts over America’s commitment to European security after Donald Trump’s victory, it is tempting to paint the outlook for Europe in grim colours.”
 
Mas se estes são os desafios do curtíssimo prazo, os da próxima semana, 2017 é ano de eleições muito importantes, com a eleição alemã à cabeça. Nas sete décadas de democracia pós II Guerra a República Federal tem sido um exemplo de equilíbrio e moderação, mas isso pode estar a mudar. A Spiegel, na edição da semana passada, falava mesmo da The Erosion of German Democracy, num trabalho de fundo difícil de sintetizar neste espaço. Nesse se notava, todavia que “Germany has become all-too-familiar with the symptoms: hatred of the elite; disgust with politicians who have allegedly plundered the state; and contempt for business leaders and journalists. In Germany too, alienation is felt by many and public dialogue has become less restrained and more aggressive, particularly in social media channels such as Facebook and Twitter.”
 
Esta erosão de equilíbrios de décadas tem sido bem evidente em algumas eleições regionais, onde os dois partidos centrais – a CDU de Angela Merkel e o SPD social-democrata – chegaram ao ponto de não conseguir eleger, em conjunto, deputados suficientes para formarem um governo de coligação. Este desgaste tem sido aproveitado sobretudo por uma força política em rápida ascensão, a AfD (Alternativa para a Alemanha), ascensão essa que foi precisamente o tema da reportagem de Tiago Carrasco no Observador, um especial intitulado Alemanha. A direita anti-imigração tornou-se normal. Nele fala-se, entre outros, com Felix Menzel, fundador e editor da revista Blaue Narzisse e o mais destacado líder intelectual do movimento populista, que defende a ideia de que “o aparecimento do AfD era inevitável: “Por causa da nossa história, não tínhamos um partido de direita relevante desde 1945. Até a CDU derrapou mais e mais para a esquerda. Abriu-se um espaço enorme para o aparecimento de um novo partido e agora temos uma alternativa, o AfD, que defende os valores conservadores: é contra a imigração em massa, contra o euro e contra um poder excessivo de Bruxelas”. No entanto, o ideólogo dos populistas não acredita que o partido possa vencer as eleições em 2017: “Conto com um resultado entre os 15% e os 20%”.
 
São estas novas forças políticas (ou algumas já com bastante idade, como a Frente Nacional francesa) que parecem estar a aproveitar a percepção de que vivemos num tempo de “soma zero”, isto é, de que não podemos beneficiar todos do bem comum, antes que o que uns ganham é o que outros perdem. Essa percepção vem bem explicada por Stephen Fidler no Wall Street Journal de hoje, em Europeans Confront a New, Zero-Sum World: “Weak growth has encouraged zero-sum thinking inside countries: When economies aren’t growing, more for one group automatically means less for another. With voters’ economic boats no longer rising, many have turned to nationalist politicians.
 
Como contrariar esta tendência? Não parece haver, por agora, um discurso coerente e articulado, não faltando porém os apelos a que se faça uma política diferente e se tenha um discurso mais atraente. Num texto para o Project Syndicate, Populism for the Rich, Ian Buruma faz precisamente um apelo desse tipo: “So far, in Europe and the US, the demagogues can only serve up dreams: taking back our country, making it great again, and so on. To stop such dreams from becoming political nightmares, something more is needed than technocratic expertise, or calls for civility and moderation. Angry people cannot easily be persuaded by luminous reason. They must be offered an alternative vision.”
 
A verdade, no entanto, é que o próprio Ian Buruma não propõe nem desenvolve essa visão alternativa. Mais: a forma como os diferentes líderes, europeus e não só, estão a reagir ao populismo parece mostrar que, no mínimo, avançam em marcha desordenada mas não deixam de espreitar, também eles, uma oportunidade. Rui Ramos reflecte sobre isso mesmo em Qual é o problema da esquerda com Trump? (Observador), escrevendo que “As oligarquias ocidentais perderam o pé em sociedades agitadas pela incerteza e pela mudança. Os “populismos” são para os oligarcas uma ameaça. Mas são também, ao contrário do que se diz, uma oportunidade: representam um perigo com que assustar os eleitores (veja-se Merkel na Alemanha), um estilo que podem imitar (veja-se Renzi em Itália), ou ainda uma força desorganizada, e por isso susceptível de manipulação (como Kissinger espera que seja o caso de Trump).
 
Suponho que, aqui chegados, os leitores possam começar a estar um pouco desesperados e sem que eu lhes dê qualquer sinal de esperança, um estado de espírito por certo demasiado deprimente à entrada de um fim-de-semana de chuva e frio que também pode acrescentar mais peso a esta carga de preocupações. Por isso escolhi para terminar uma visão optimista, uma visão de alguém que, por ser historiadora, é capaz de olhar para trás e mostrar como, apesar de tudo, ainda são grandes as diferenças quando comparamos os tempos que vivemos com aqueles que foram marcados pela ascensão do autoritarismo (nalguns casos do totalitarismo) e o colapso das democracias liberais. A historiada que cito é Margaret MacMillan, autora de um dos mais celebrados livros sobre as origens da I Guerra Mundial, A Guerra que Acabou com a Paz - Como a Europa Trocou a Paz pela Primeira Guerra Mundiale que em Stability and democracy in Europe will hold fast against populism (Financial Times) defende que “Respect for the rule of law will overcome any chance of a return to the Weimar era”. Mais concretamente: “History offers warnings and reassurance. It is true that 2016 has not been a good year for Europe but that will not necessarily lead to a replay of the 1930s. Democracy and respect for the rule of law are more firmly established and across more of Europe. We should remember that our societies have shown the capacity to reform and rebuild themselves. Think of how different the Germany of today is from the one of the 1930s. So we should hope European democracy can nod its head yet keep it firmly in place.”
 
Esperamos todos que assim seja. Tenham um bom descanso e, como sempre, aproveitem para fazerem também as melhores leituras. “Black friday” foi hoje, a febre da pechincha já passou, lembrem-se como o sofá pode ser bem acolhedor.
 
 
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