terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Macroscópio – Entre o bacalhau e o bolo rei, a política pela calada

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Há calendários que parecem tudo menos inocentes. Sobretudo quando fazem coincidir medidas potencialmente polémicas com períodos em que a opinião pública tende a estar menos atenta, como é o caso do Natal e Ano Novo. Porém, entre uma garfada de bacalhau e uma fatia de bolo-rei, eis que tudo parece conjugar-se para fazer passar pela calada a controversa entrada da Santa Casa da Misericórdia no Montepio Geral e se fez aprovar, no meio da maior discrição, um pacote de medidas na área do financiamento dos partidos. Vejamos brevemente o que está em causa.
 
A questão da entrada da Santa Casa no capital do Montepio não é nova, fala-se dela há quase um ano mas tudo parece ter-se acelerado nos últimos dias. Não vou fazer aqui toda a cronologia do processo, recordo apenas que já em Abril o antigo ministro da Solidariedade Social Bagão Félix defendia, numa entrevista à Renascença e ao Público, que “Entrada das misericórdias no capital do Montepio é um disparate”. No mesmo mês, em  Tic-Tac, tic-tac. Pode o Montepio vir a explodir? eu próprio me interrogava no Observador sobre como seria possível uma operação tão arriscada e controversa: “Que riscos é que isso envolve? E que sentido faz, para além de ser um remendo? Faz uma tal operação parte da missão da Santa Casa? Quando se chega a este ponto é porque a aflição é grande. E as saídas poucas. Antes do colapso do Grupo Espírito Santo, Ricardo Salgado tentou convencer o governo de então a permitir uma “ajuda” da Caixa Geral de Depósitos. Passos Coelho disse que não. E essa foi seguramente uma das decisões mais importantes e mais positivas do seu mandato – basta imaginar a dimensão do buraco para que a Caixa poderia ter sido arrastada. Será que agora está a acontecer o contrário e logo com a Santa Casa? Tenham medo, muito medo.”
 
Passaram nove meses e a verdade é que não se conhecem respostas para estas perguntas. O máximo que se sabe é o que o novo provedor da Santa Casa  Edmundo Martinho, membro da Comissão Nacional do PS e antigo presidente do Instituto da Segurança Social, muito próximo do ministro Vieira da Silva – disse numa entrevista ao Público, dada a Cristina Ferreira: “A Santa Casa vai nomear um a dois gestores executivos no Montepio”. Essa foi a principal garantia dada numa conversa onde assegurou existir sintonia total entre Governo, regulador e Santa Casa e defendeu a ideia, que não concretizou, da necessidade de um banco para o sector social: “Faz todo o sentido que a economia social em Portugal disponha de um instrumento financeiro que lhe dê um impulso e a ajude a recentrar-se e a ganhar outra capacidade de resposta. E a sair do amadorismo em que tem estado, nomeadamente, ao nível da gestão. A existência de um banco com estas características é essencial para benefício e protecção do sector social no seu conjunto. E a SCML não pode alhear-se do seu papel.”
 
Ora esta ideia é precisamente uma das que mais dúvidas levanta, dúvidas que António Costa (o jornalista) recordou no jornal online Eco em Isto vai ser mesmo a ‘Santa Casa’?: “Qual é o valor estratégico do negócio bancário para a Santa Casa da Misericórdia, a não ser fazer um negócio arriscado, como se estivesse a jogar no Euromilhões? Pode ser que dê certo, é isso? Um banco social? É mesmo isso que querem vender-nos, mas já agora poderiam explicar em que é que se traduz essa estratégia bancária. Vai financiar as misericórdias por esse país fora, instituições que, sabe-se, vivem de subsídios do Estado e estão, a maioria delas, em situação financeira desesperada? Mas isso é para perder dinheiro.”
 
O objectivo parece ser outro, sendo a ideia de “banco social” apenas uma espécie de disfarce, como defendeu Bruno Faria Lopes no Jornal de Negócios em O resgate público encapotado do Montepio. Em concreto: “Mais de 85% da receita da SCML vem do monopólio exclusivo dos jogos sociais concedido pelo Estado para uso em fins sociais, em substituição desse mesmo Estado. Aquele dinheiro é, em substância, dinheiro público. A concretizar-se nos termos noticiados, a entrada da SCML no Montepio será um resgate público, encapotado, dos mutualistas do Montepio à custa das finanças de uma instituição secular de apoio social. Será, de caminho, um resgate da actuação de Tomás Correia, que segue à frente da Associação Mutualista e que condiciona a gestão da Caixa Económica, apesar dos processos do regulador e das suspeitas da Justiça sobre a sua má gestão passada. Parece coisa de outro tempo. Irá mesmo acontecer em 2018?
 
Esta ideia – de que se trata de dinheiro público e, sobretudo, de dinheiro destinado a obras sociais – foi por mim glosada num pequeno vídeo, Robin dos Bosques ao contrário na Santa Casa, onde sublinhei que “a obra da Santa Casa não é andar a remendar os erros e as vaidades de quem liderou o Montepio e de quem ainda lidera a associação mutualista”, notando contudo que “não há como ter uma maioria de esquerda para o silêncio cair perante uma operação em que se vai tirar aos pobres para dar aos bancos. Depois de tudo o que já vimos, só nos faltava mesmo uma geringonça a funcionar como um Robin dos Bosques ao contrário.”
 
No Público, depois de considerar que este é “um escândalo em câmara lenta que vai deixando de escandalizar”, João Miguel Tavares argumenta, em Montepio e Santa Casa: o escândalo consumado, que “O Montepio é o banco português mais mal classificado entre as agências de rating: investimento altamente especulativo. Tomás Correia, que tem o seu nome ligado ao BES, à Ongoing, ao BPN, a José Guilherme, e a tudo o que é desgraça do nosso sistema financeiro, continua à frente da Associação Mutualista. Mas nada disto interessa. O Governo quer salvar o Montepio sem enfiar milhões no banco, e é assim que vai fazê-lo. Usando o dinheiro da caridade.”
 
Nada que surpreenda muito o director do Expresso, Pedro Santos Guerreiro, que este sábado nos recordou, em Santa régua e Casa esquadro, que este Governo nunca teve pejo de intervir nas empresas e nos bancos sempre que entendeu fazê-lo, recordando casos tão diferentes como os da TAP, da Caixa Geral de Depósitos, do BPI e agora do Montepio. Pois, e esta é assunto que hoje já suscitará poucas dúvidas, a decisão da Santa Casa não saiu da cabeça dos seus provedores, pois, como se conta no Expresso, Vieira da Silva foi o pivô na negociação do Montepio (paywall, podendo uma síntese do essencial ser lida aqui: Montepio. Vieira da Silva pressionou Santa Casa).
 
A forma como aqui se chegou ainda não é totalmente clara, até porque o anterior provedor, Santana Lopes, saiu entretanto para se candidatar à liderança do PSD. Sendo certo que ele não disse logo “não” ao ministro, a verdade é que há quem, como José Miguel Júdice fez no seu comentário na TVI, defenda que não era sua intenção ceder. Em Escândalos no Montepio (a transcrição desse comentário no Eco) ele recordou o processo e descreveu o que disse ter sido a estratégia do ex-provedor para colocar suficientes pedras na engrenagem que tornassem o negócio impossível. É a sua versão, vale a pena conhecê-la, mas a verdade é que entretanto PSL saiu da Santa Casa: “Há meses, disse aqui que esta loucura só podia ser travada por Santana Lopes – e até disse “ao que isto chegou para se confiar no bom senso de PSL”. Intuí a realidade e, mea culpa, afinal podia confiar-se. Durante meses, ninguém lhe apareceu com nenhum estudo – e este é mais um escândalo, em que o Banco de Portugal fica mal na foto (mas isso já nem é novidade) e o novo Provedor, cujo nome não recordo, também. Salta Santana Lopes para o PSD e deixa de haver o fusível – e agora num instante 200 milhões de euros (33% do ativo líquido da SCML) vão ser enterrados, parece que sem estudos e avaliando o Montepio como se fosse igual ao BPI!
 
Regresso por isso a Bagão Félix, que em várias tribunas tem continuado a manifestar-se contra esta operação. Fê-lo na sua crónica na TSF, O silêncio à volta do Montepio, fê-lo em declarações à RTP, e fê-lo ainda no Público, em Ainda a (ex-Santa) Casa. Nesse texto recorda que esta operação não tem enquadramento estatutário – “No artº 23º dos Estatutos, referente à competência do Departamento de Economia Social, para além de aspectos organizativos, são referidas tão-só as funções de apoiar a criação de micro-empresas através de programas em cooperação com outras entidades e a de promover a criação de agentes de desenvolvimento na área da economia social. Assim sendo, onde está, afinal, o enquadramento estatutário para os 200 M€?” – e ainda acrescenta uma previsão sombria: “A factura virá mais tarde, depois do “foguetório social”. Com uma agravante quanto aos pagadores: a de juntar aos contribuintes os beneficiários da acção social da SCML. Inimaginável!

 
Veremos o que nos reservam os próximos episódios, mas o desfecho desta novela parece estar já pré-definido – até pela ausência de uma mais discussão pública mais alargada ou de uma intervenção mais determinada do Parlamento. Mas deste talvez não seja de esperar muito, sendo especialmente significativa a forma como alterou, de forma quase secreta e depois de discretas reuniões à porta fechada, regras no sistema de financiamento dos partidos que podem valer muitos milhões. Mas mais do que alongar-me deixo-vos as palavras de dois colunistas que vieram a público por estes dias denunciar a operação:
  • Paulo Ferreira, no Eco, Pela calada do Natal aconteceu o saque partidário: “Os mesmos partidos que defendem que o financiamento partidário deve ser exclusivamente público, para evitar tentações, aprovam agora o contrário e isentam o financiamento privado de qualquer limite. Isto sem reforço das regras de publicidade e transparência desses financiamentos, que permitam seguir o rasto do dinheiro e perceber se há contrapartidas entre donativos e leis votadas ou a atribuição de negócios do Estado. Pior: esta alteração, que pode mudar totalmente a vida financeira dos partidos e a sua contaminação com os interesses patrimoniais do Estado e dos contribuintes, foi feita sem qualquer debate público sobre o assunto.”
  • Alexandre Homem Cristo, no Observador, O Natal dos partidos políticos (é à grande): “Tudo isto foi premeditado. No conteúdo: a partir desta alteração legislativa, os partidos vão receber mais dinheiro, ficar isentos de impostos e resolver situações ainda a aguardar julgamento – tudo no valor de milhões de euros. E na sua calendarização: a alteração surge de surpresa, sem forma de escrutínio público, e no período natalício (quando as atenções estão dispersas). Ou seja, tudo neste processo está errado – o legislar em causa própria, o segredismo, as tentativas de passar com o assunto despercebido. E o mais grave é que funcionou.”
 
Imagino que os meus leitores ainda estejam a digerir os alimentos mais pesados próprios da quadra, e não duvido que estas notícias e reflexões não são por certo aparentadas com qualquer Rennie, Alka-Seltzer ou Kompensam, mas não podia deixar de as partilhar convosco. De resto, mesmo não sendo ainda esta a última newsletter deste ano, haverá sempre forma de nos animarmos, pelo menos no entendimento da câmara da nossa capital, que gastou 57 mil euros em 30 mil cartolas para distribuir pelos foliões que forem até ao Terreiro do Paço na noite da passagem do ano. Comigo não contarão, mas nem precisavam de me afugentar com a ameaça de me enfiarem um daqueles adereços pela cabeça abaixo.
 
De resto, fiquem com os meus desejos de bom descanso, melhores digestões, excelentes leituras e algum sobressalto cívico.  

 
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