segunda-feira, 9 de abril de 2018

A sublimação de Lula

Lula quis que as últimas horas antes da prisão valessem por meses de campanha. Intermináveis directos televisivos de militantes mobilizados, um discurso marcadamente populista, no fim carregado em ombros pela multidão numa apoteose tão triunfalista quanto surreal.
André  Veríssimo
André Veríssimo 08 de abril de 2018 às 23:00

"Eu não sou mais um ser humano, sou uma ideia". A frase mais lapidar gritada pela voz rouca de Lula da Silva horas antes de ser levado pela polícia federal para a prisão é brilhante na força que projecta para os militantes. O seu corpo fica encarcerado numa cela em Curitiba, o seu "ethos" continuará a vibrar intensamente por todo o Brasil.


É o último desejo antes do cárcere. Lula quis que as últimas horas antes da prisão valessem por meses de campanha. Intermináveis directos televisivos de militantes mobilizados, um discurso marcadamente populista, no fim carregado em ombros pela multidão numa apoteose tão triunfalista quanto surreal.

Foi uma sublimação – "não adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão pairando no ar e não tem como prendê-las" – e uma síntese. Da luta sindicalista, da luta de classes, do legado dos seus governos, do simbolismo do último combate. Fez questão que o seu Brasil o visse como um preso político, de novo. Levado da mesmíssima cidade onde 38 anos antes o fora pela ditadura militar. Agora vítima de uma justiça que diz ser criminosa, subjugada à política e à opinião pública, que só prende os pobres.


Só que há uma insanável contradição. Lula tirou milhões de brasileiros da indigência, mas já não é um deles. É rico, dono corrupto de um triplex num condomínio no Guarujá, decidiram os tribunais. Rico e poderoso. A sua detenção, em conjunto com tantos outros da operação Lava Jato, é a mais forte imagem de que até os brasileiros ricos e poderosos deixaram de estar, por norma, acima da lei.


O país pode ter ganho um sistema judicial mais robusto, institucionalmente mais forte, ingrediente decisivo para uma democracia mais segura. Mas não se livrou do populismo e da falta imensa de uma classe política cívica e evoluída.

Lula não deita a toalha ao chão, mantém que é candidato. Na hipótese provável de não o ser, no Brasil especula-se sobre a ascensão de outro populista de esquerda, Ciro Gomes. Já o favorito nas sondagens depois do ex-presidente é um capitão na reserva, admirador da ditadura militar e ultra-conservador nos costumes: Jair Bolsonaro. Que o diabo escolha...


É quase impossível prever os próximos capítulos desta triste novela. "Se até o passado costuma ser imprevisível neste pobre país, imagine então o futuro, mesmo o mais imediato?", escrevia o jornalista Clóvis Rossi esta sexta-feira na Folha de São Paulo.


A ideia de reconciliação, aquela de que o país mais precisa, continua a ser uma distante miragem. Sem ela, será impossível remendar uma sociedade onde a insegurança e a desigualdade voltaram a crescer. Ou dar outro impulso a uma economia que saiu da recessão mas cresce a conta-gotas, refém dos seus desequilíbrios estruturais, onde pontua um proteccionismo doentio.

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