quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Macroscópio – O rating, a economia e (pouca) retórica política

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!

Na passada sexta-feira uma das grandes agências de notação financeira, a Standard & Poor’s, subiu inesperadamente o rating da dívida pública portuguesa, que assim deicou de ser “lixo”. As principais razões dessa agência estão sintetizadas na notícia do Observador, onde se escreve que, para a S&P, “os riscos, de um modo geral, estão “equilibrados”, agência que também “lembra ainda existe o perigo de “um enfraquecimento do crescimento no exterior” e, por outro lado, Portugal está mais vulnerável pelo facto de ter um endividamento público e privado “elevado, ainda que em trajetória descendente”. A notícia suscitou naturalmente uma avalanche de reacções políticas, sobre as quais não me alongarei muito, apesar de referenciar textos que as analisam. Antes, porém, deixem-me dar-vos a “morada” da nota da S&P, que pode ser lida aqui: Ratings On Portugal Raised to 'BBB-/A-3' On Strong Economic And Budgetary Performance; Outlook Stable. Como verão os analistas da agência de notação explicam com algum detalhe o porquê da sua revisão em alta da nossa nota de risco, mas também deixam alertas: “In our opinion, consecutive increases in the minimum wage, most recently by 5.1% in January 2017, accompanied by measures to offset some of the additional cost for employers, are unlikely to have weakened the cost competitiveness of Portuguese goods and services. However, we consider that Portugal's fragile demographics, weakened by substantial net emigration and a declining labor force, exacerbate these challenges. Low productivity growth would likely stifle the economy's growth potential (though this is not unique to Portugal),without further improvements in the efficiency of the public administration, judiciary, and the business environment, including with respect to barriers in services markets (for example, closed professions)”.
 
De entre os textos que exploraram melhor o conteúdo do documento da S&P destaco o de Joaquim Miranda Sarmento no Eco, uma crónica que também se refere ao mais recente relatório do FMI sobre Portugal: FMI e S&P: a mesma análise e os mesmos avisos. Das suas conclusões destaco esta passagem: “A tarefa não está concluída. Pelo contrário, temos ainda 2 p.p. do PIB de consolidação orçamental estrutural, temos de reduzir a divida pública abaixo dos 100% rapidamente (...), temos de reduzir o peso do Estado e da despesa pública e continuar a reformar a economia para a tornar mais competitiva e capaz de aguentar choques externos. Num país com uma dívida pública de 130%, achar que há “folgas” no Orçamento de Estado só pode conduzir de novo aos erros do passado.” 
 
É uma linha de raciocínio que não está muito longe da de outro economista, Luís Aguiar-Conraria, que num texto no Observador – De BB+ para BBB- –, mesmo dedicando a maior parte da crónica a comentar criticamente as reações dos diferentes partidos, tanto à direita como à esquerda, e sobretudo à extrema-esquerda, nota que “a procissão ainda vai no adro” pois “continuamos muito endividados”. Este texto também sublinha que, para termos chegado aqui, beneficiámos de uma invulgar conjugação de factores favoráveis: “Nos últimos tempos, a Lei de Murphy aplicou-se a Portugal, só que ao contrário. Tudo o que havia para correr bem, correu. Desde a conjuntura externa favorável às políticas monetárias de Mario Draghi no BCE ou à evolução do preço do petróleo, passando pela existência de uma agência de notação financeira, a DBRS, que precisava de publicidade fácil e, sem que ninguém lhe encomendasse o serviço, classificou a nossa dívida pública numa categoria acima do lixo. Graças a essa conjuntura externa, conjugada com algum bom senso que impediu loucuras como ter os governos nacionais a abertamente pedir reestruturações da dívida, as coisas têm corrido bem.”
 
Curiosamente uma das correspondentes do Financial Times em Bruxelas,  Mehreen Khan, ao referir-se a essa conjugação de ventos favoráveis também escreveu sobre a sorte e o “timing” perfeito do governo de Costa, como se sintetizava no Observador. Vale mesmo assim a pena ler o texto do FT – Portugal’s comeback is the eurozone’s socialist success story – pois este é bastante claro: “Perhaps the most crucial factor behind Portugal’s reversal of fortunes is the brightening outlook in the eurozone and global economy this year. The country’s export performance has improved, investment is on the up, and accelerating growth has helped narrow Portugal’s budget black hole to its lowest in more than two decades. The Socialists are also enjoying the fruits of the previous centre-right government’s painful labour market reforms.”
 

E agora, será que este caminho é sustentável se os ventos não continuarem a soprar todos para o mesmo lado? Marcus Ashworth, um colunista da Bloomberg que escreveu no Jornal de Negócios, não esconde algum cepticismo em Portugal só é grau de investimento no nome. Em concreto, “O nível insustentável da dívida foi a principal razão pela qual as agências de rating colocaram Portugal no território de "lixo" há cinco anos, no auge da crise do euro. Nesta matéria o progresso foi glacial. O bom desempenho dos títulos portugueses tem muito mais a ver com a sua relativa escassez do que uma súbita transformação económica”. Mais: “Portugal é um dos poucos países europeus que beneficia de todos os mecanismos de apoio do Banco Central Europeu. O banco central tem agora quase um terço de toda a dívida emitida por Portugal.”
 
Ora, como notou Rui Ramos no Observador em António Costa já deu os parabéns Passos Coelho? “Por baixo do véu da conjuntura internacional, o país está longe de saudável.” Numa crónica mais política onde critica duramente a forma como o primeiro-ministro quis para si todos os louros desta decisão da S&P – “Pensar que o país saiu do lixo porque aumentou os funcionários em 2016, e que o ajustamento de 2011-2014 não teve qualquer papel, é uma prova de obtusidade, antes de ser uma exibição de facciosismo.” –, o cronista explica as razões da sua cautela quando olha para o futuro: “A dívida é mais cara do que a de Espanha, a poupança é a mais baixa de sempre, o crédito está novamente focado na habitação, o crescimento económico é inferior ao espanhol, o défice comercial aumenta. Não, não é a bancarrota para a próxima semana. É apenas a medida da vulnerabilidade de uma economia impedida de se valer das oportunidades para progredir ao nível requerido pelas suas expectativas e compromissos. A boa conjuntura protege-nos. Mas bastará que o tempo mude para nos arriscarmos a mais aflições.”
 
O economista Ricardo Arroja aborda o mesmo tipo de dúvidas na sua coluna no Eco, Até quando é que isto dura?, uma análise onde passa em revista a evolução de alguns indicadores económicos entre 2002 e 2017, com especial atenção ao período 2007-2017 – para procurar perceber até que ponto a nossa recuperação é sólida. A sua conclusão é que não podemos mesmo descansar à sombra desta notícia mais positiva, esperando que o resto nos chegue naturalmente: “Com excepção do turismo (cujos operadores conseguiram aumentar o “preço” a par do aumento da “quantidade”, assim contrariando a lei da procura e da oferta, o que também tende a ser temporário), a evolução dos restantes indicadores discutidos neste artigo evidencia uma natureza mais cíclica do que estrutural. Por isso, à pergunta “estaremos hoje melhor preparados para enfrentar a próxima crise mundial?” a minha resposta é “nem por isso”. É facto que não teremos uma crise súbita de pagamentos, porque a balança corrente está hoje equilibrada (face aos défices pré-resgate de quase 10% do PIB). Mas, ainda assim, apesar de alguma melhoria, o PIB potencial continua muito aquém daquele que seria necessário no sentido de uma efectiva convergência face à Europa mais rica (sendo que conjunturalmente, vide último trimestre em cadeia, a situação foi já de divergência). Para concluir e numa só expressão: não há decolagem.”
 
Para quem se interessa mais por economia e gostaria de aprofundar um pouco mais a discussão sobre o que houve (ou não houve) de novo nos últimos anos vale a pena ler Pedro Romano no seu blogue Desvio Colossal, sobretudo um texto escrito ainda antes da decisão de S&P e onde discute a questão de saber se continua ou não a haver austeridade. O texto foi suscitado pela entrevista de Mário Centeno à RTP, mas como a sua argumentação é muito sólida e pouco comum não posso deixar de o recomendar. Partindo de uma interrogação – O fim da austeridade? –, Pedro Romano acaba por chegar às seguintes conclusões: “i) a austeridade, definida como ‘medidas de orçamentais de redução do défice’ não acabou. O que acabou foi o período de grandes ajustamentos adicionais: neste momento, a dose marginal que é preciso adoptar a cada ano que passa é minúscula. ii) Portanto, não é que a austeridade tenha desaparecido – simplesmente tornou-se irrelevante para o crescimento económico; iii) É verdade que houve alterações no mix de medidas, e que nesse sentido a austeridade actual é diferente da austeridade passada. Mas as diferenças em causa – ao nível dos sectores em que incidem, e dos impactos económicos que geram – provavelmente não serão aqueles que a maior parte das pessoas de julga. E certamente que não têm sido discutidos com rigor; iv) É perfeitamente possível que a maior parte das pessoas não tenha noção de tudo isto.”
 
Termino com uma outra crónica que, tal como esta, é algo lateral ao debate sobre a nossa saída do “lixo”, antes reflecte sobre o que, na economia, ajudou a fazer a diferença na nossa recuperação. Henrique Raposo, escrevendo no Expresso Diário (paywall), dá-nos um conselho: Agradeçam ao norte. A sua tese é que foi sobretudo no norte que a economia começou a dar a volta, pelo esforço das suas gentes e empresas, uma ideia que já tinha e viu confirmada numa notícia do Caderno de Economia do Expresso do passado sábado, Norte lidera contratações. Escreve ele, começando até por referir o espaço que nesse semanário se dedicou ao tema: “Mas talvez seja este o problema: este norte é arrumado nos cadernos de economia, não faz manchetes, não abre telejornais; faz parte de processos de longo alcance (ex.: subida das exportações) e não de acontecimentos mediáticos. A realidade porém é que este norte é o nosso grande salvador. Viveu a crise muito antes de Lisboa, adaptou-se à crise muito antes de Lisboa, é ali que estão as grandes indústrias exportadoras com fortes ligações ao norte da Europa, é ali que está o espírito de poupança que nos faz falta.
 
Como já terão percebido estas duas últimas crónicas desenvolvem argumentos que habitualmente não estão muito presentes no debate público, e por isso não surpreende que o público os ignora e poucos confrontem o poder político com estas outras formas de ver. Mas é precisamente para ajudar a difundir ideias que enriqueçam o nosso debate público que existe o Macroscópio, hoje regressado de umas merecidas férias.
 
Aos meus leitores, desejo, como habitualmente, bom descanso e melhores leituras.
 
 
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