domingo, 22 de outubro de 2017

Nuno Pimenta: “O que falam por aí é injusto demais para o meu pessoal”

Com o semblante carregado e uma dor profunda “pelas injustiças que desanimam meus homens e mulheres”, Nuno Pimenta, Comandante dos Bombeiros Voluntários de Mira, acedeu a colocar para fora o que anda atravessado na sua garganta.
O Jornal Mira Online ouviu-lhe o atual sentimento e trás aos seus leitores as palavras de um Comandante que, como todos os outros, antes de ter um cargo, é um ser humano e tem família…
CRÍTICAS
“Compreendemos a aflição das pessoas, tudo o que elas passaram – bem como nós também passamos – mas, tudo tem sido muito injusto para com eles, porque há muito tempo que gritávamos, para quem quisesse ouvir, que havia falta de meios e de pessoal!”, desabafa logo no início da entrevista.
“As pessoas não sabem, mas estávamos em vários locais e tínhamos somente 3 carros aqui no quartel, sendo que um deles… avariou quando mais precisávamos dele!”. Em vista do quadro dramático que se passou naquele momento, Nuno Pimenta desabafa mais uma vez: “Francamente, não podíamos fazer nada mais do que foi feito… veja só este exemplo: temos uma ambulância na oficina à espera de que lhe seja dada autorização de reparação, desde Setembro. E este é apenas um exemplo, dos muitos obstáculos com que nos deparamos no dia-a-dia da instituição”.

“O CHEFE”
Uma das críticas que tocam mais fundo nos elementos da corporação mirense é a de terem estado a defender a casa do “chefe” (n.r. o Presidente da Câmara Municipal de Mira) na região do Mira Villas e Mira Oásis:
“Inacreditável! Se vissem os meios que tínhamos, logo veriam que não estávamos lá… se falarem com as pessoas de lá, verão que elas dizem exatamente o contrário: que não estávamos lá para defendê-los. E, digo mais: vieram pessoas de lá, indignadas, a reclamar que não nos viram a atuar naquele terreno. Então, em que é que ficamos? Uns dizem que estávamos a fazer frete “ao chefe” e outros dizem que onde mora “o chefe”, não nos viram!”.

DESABAFO

“Temos trabalhado com os meios que nos dão… por isso, eu – como Comandante dos Bombeiros – posso dizer que durmo com a consciência tranquila, em primeiro lugar porque não morreu ninguém, felizmente e, em segundo lugar, porque alertei muitas vezes para o que se passava… para juntar a uma floresta muito mal cuidada, também há parcos recursos de material para enfrentar uma tragédia como esta! Ou alguém, em sã consciência, acredita que isto nunca iria acontecer? Todos os “ingredientes” estavam lá!”
“O mais fácil é desistir, o mais fácil é fazer como alguns dos meus já fizeram: pegar a família, emigrar, pois ninguém que deixa a família tantas vezes para trás, como todos aqui o fazem, merece determinadas situações. Por exemplo: eu perdi 3 dias de trabalho esta semana, trabalhei 2 dias e estou aqui, num sábado pela manhã a atuar nos Bombeiros quando tenho familiares a pregar estacas na minha casa, devido ao problema que aconteceu...mas, há muito mais! Cada um, aqui, tem uma história para contar destes dias, cada um de nós sentiu na pele a aflição de ficar incontactável com familiares… a casa do meu adjunto, ardeu! Sim, ardeu… ele estava no terreno a defender aqueles que dizem que não andávamos por cá e a casa dele ficou num estado lastimável!”
“E há mais: engana-se quem pensa que já não há nada por arder. Com o calor que se espera para os próximos dias, é certo que teremos mais e novos problemas. E, como vamos atuar? Olhe, com um auto-tanque que nos foi emprestado pelos Bombeiros de Soure, pois não temos nenhum, agora… está avariado! Em plena época de incêndios temos de andar a pedir emprestado um auto-tanque, andamos a viver de esmolas porque o nosso avariou e não temos meios de conserta-lo a tempo e horas!”
As queixas e as tristezas não param por aqui… bem pelo contrário!
“Há muito que falamos sobre a falta de meios nos Bombeiros de Mira. Se algo tivesse sido feito atempadamente, ao menos a situação não teria sido tão dramática, podem acreditar. Este é um grito de alerta para toda a sociedade mirense e muito especialmente à Associação que tem de dar condições para os operacionais. Falta um auto-tanque? Faltam carros de combate a incêndio? Ambulâncias? Então, é preciso que a Associação consiga-os. Não sei como, nem faz parte da competência do Comandante fazê-lo, mas, que é preciso, isso é! Juntem-se, reúnam-se, façam peditórios, batam nas portas dos empresários, das entidades, peçam empréstimo… façam o que for preciso, mas façam!”
“Num momento como o que vivemos, de toda a Direção desta casa não vimos quase ninguém aqui a perguntar se podiam ajudar em algo! Estavam todos defendendo os seus lares, com certeza, mas nós não podíamos fazê-lo porque estávamos no terreno a “dar o litro”. Só o Presidente da Direção andou e anda por cá nestes dias e isso é manifestamente pouco. Quando tudo acalma, ainda sobram para os Bombeiro todas as críticas… os mesmos que não conseguem ir para casa descansar, retemperar forças e ter um pouco de sossego. Neste momento temos homens e mulheres a trabalhar no rescaldo de empresas da Zona Industrial… pessoas que são VOLUNTÁRIAS! Como se pode exigir mais desta gente, quando eles se deparam com pessoas ingratas? Como queriam que estivessem em todo o lado? Eram cerca de 40 pessoas para tentar defender um Concelho inteiro? Chegamos tarde? Pois claro! Estávamos dispersos, mas chegamos e desde então não temos tido descanso! Tivemos ajuda com a chegada de meios externos vindos de Montemor-o-Velho e de Condeixa, pelas 6 horas da manhã de segunda-feira… foram os meios possíveis que nos enviaram, já que os Concelhos de Cantanhede e de Vagos também estavam a ser fustigados de forma violenta pelos incêndios… e nós, aqui, com um veículo tanque que só não foi abatido, ainda, por não termos outro para o lugar… e que agora deu novo problema!”
“Isso chega a ser tão ridículo, ao fim e ao cabo, que viram o carro do Comando na rua onde moro e disseram que estavam lá bombeiros para defender minha casa. Mal sabem eles que fui saber da minha família, se estavam todos bem e ver se as chamas tinham atingido a vizinhança, pois pela minha casa o fogo já tinha passado. Tenho uma mulher grávida e 2 filhos pequenos… é demais!”

COMUNICAÇÕES
“O SIRESP não funcionou, a MEO não funcionou e deixou-nos vários dias sem rede, as pessoas ligavam para o 112 a pedir socorro, mas as informações não chegavam… AGORA temos aí fora uma antena satélite, e eu pergunto porque é que todas as unidades de Bombeiros e todas as Juntas de Freguesia deste país não tiveram sempre este meio de contatar? Ficamos, literalmente, ISOLADOS DO MUNDO.

NO TERRENO
Os problemas com que se depararam no terreno foram de diversa ordem. De tudo um pouco, ajudou a atrapalhar o trabalho dos Voluntários.
“Parece mentira, mas podemos comprovar: foi-nos solicitado a presença nas Bombas de Carromeu, o carro ia para lá… mas, o semi-eixo avariou! Na Zona Industrial, só pudemos entrar na terça-feira no Polo 1, já que não estavam reunidas as condições mínimas, até então… Restou-nos, naquele local, travar uma batalha contra o fogo para que este não atingisse a sério o Polo 2… Não havia limpeza nos terrenos circundantes às residências, em muitos casos e ainda para mais com montes de lenha encostados em casas de madeira! Sim, é verdade… isso aconteceu, as pessoas não se davam conta do perigo sério que corriam e colocavam outros em risco, também! Sejamos sinceros e práticos: a única coisa que teria funcionado e podia ter evitado um drama desta dimensão era a prevenção, e isso é algo que raramente aconteceu neste Concelho!”

TRABALHO CONJUNTO
Quando questionado sobre o trabalho desenvolvido com a Câmara Municipal, Nuno Pimenta diz que “o apoio da CM foi o possível”.
“Tivemos o suporte logístico da Câmara, que nos disponibilizou seus funcionários. Deram uma contribuição imensa, foram inexcedíveis. Temos a sorte de ter uma Câmara Municipal sensível a este tipo de problemas… algumas têm mais sensibilidade, outras menos e outras, ainda, não têm nenhuma. Mas, sim, estivemos sempre a trabalhar em conjunto com a Proteção Civil Municipal, a Câmara e tudo foi feito dentro de que era possível fazer. Porém, é preciso deixar claro que a limpeza e a prevenção não funcionaram. É preciso que sejamos francos novamente, a dizer que os empresários deviam dar formações de segurança… Notamos que o simples ato de abrir ou fechar uma torneira podia causar um problema gigantesco na Zona Industrial, mas as pessoas não estavam preparadas para fazê-lo, simplesmente porque não sabiam! Não temos meios de ir às empresas verificar se está tudo bem ou não… mal damos conta do muito trabalho que nos aparece pela frente todos os dias…”

LIÇÕES
Quando questionado sobre o facto de termos aprendido algo com este incêndio, Nuno Pimenta mostra-se um tanto quanto pessimista:
“Com franqueza, tenho medo de que alguns possam achar que batemos no fundo, quando isso não é verdade. A nível nacional pode ser que nada tenham aprendido, mas a nível municipal todos temos a obrigação de tirar ilações desta catástrofe! As árvores podem cair, como já aconteceu e a Proteção Civil tem de estar preparada para isso… imaginemos que caia a fachada de uma casa e atinja pessoas… isso seria imperdoável! Se os Bombeiros Voluntários não podem ter descanso, não podem parar, os funcionários da autarquia também devem estar no terreno a fazer o necessário, até tudo estar bem novamente. É um trabalho árduo, mas que não pode ser descurado por ninguém. A natureza se regenera, ela vai se reerguer e se nada for feito, o problema continuará a existir, seremos sempre um Concelho potencialmente perigoso”.
“As autoridades com competência municipal terão de fazer uma avaliação exaustiva do território para que este problema seja dizimado ou, pelo menos, amenizado”.

POR FIM, OS BOMBEIROS E A SUA DIREÇÃO
A relação entre o Comando e a Direção de qualquer corporação de Bombeiros é algo primordial para que as coisas possam seguir no bom caminho. O que o Comandante tem a dizer sobre este assunto?
“Com disse anteriormente, trabalhamos no limite e não posso exigir mais dos meus homens! A sociedade, a Associação, em particular, têm de perceber que estas pessoas não têm vida própria, praticamente. É preciso que haja esta sensibilidade. Peditórios de estrada? São os Bombeiros a fazer! Para que serve a direção, então? Como já disse, só vi o sr. Vítor Madail por cá nestes dias. A Direção precisa meter mãos à obra, não podia ter deixado chegar ao ponto em que chegou! Alguém me disse que eu ia “ser apertado” na rua por causa do incêndio e eu pergunto “apertado porquê? A parte operacional fez o que pôde com os meios que dispõe. É claro que não queremos dizer que não falhamos… todos falharam, mas uns mais que os outros. Não dotar-nos de meios é um erro crasso. Em 3 anos de mandato, deram-nos 1 ambulância para transportes de doentes e 1 ambulância de socorro! Há muito que identificamos as nossas necessidades, mas alegam que só em transporte para o HUC, havia uma dívida destes para com a corporação, de 47.000 euros, em Março. Então, sejamos honestos: devemos gerir isto como uma empresa e empresa alguma vive a base de prejuízos! Se o transporte de doentes não é rentável, então há-de ser duro e fazer o necessário: se eles não pagam, eles que venham buscar os doentes às suas casas! O que não podemos é prejudicar todo um sistema por algo que manifestamente só dá prejuízo”.
“Não se governa uma casa sem meios… e aqui, vamos gerindo com as migalhas que temos. Continuaremos a contribuir com ideias para evitar que as coisas continuem a correr mal, mas – repito – se nada for feito, não conseguiremos continuar por muito mais tempo. Temos um Bombeiro a viver em casa de familiares porque a sua ardeu e recebemos, em troca, uma imensidão de críticas vindas de quem pouco ou nada fez para mudar o que se passa…. Não, assim não pode continuar!”
O Jornal Mira Online agradece a Nuno Pimenta pela disponibilidade desta entrevista. Frontal como sempre foi (há quem goste e há quem não goste, mas este é o seu estilo) respondeu a todas as questões sem fugir a nenhuma, nem negar responsabilidades.
Cabe ao leitor, chegar às suas conclusões. Cabe às autoridades interpretar as suas palavras, também.
Acima de tudo, antes de tudo, a pessoa que respondeu às questões nunca se distanciou da sua função de Comandante. É que ambas as personagens fazem parte de um só ser humano

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