quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Macroscópio – Será que estamos mesmo a ver o que estamos a ver?

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Apetecia-me tomar emprestado para título deste Macroscópio o desabafo de Ricardo Costa na última edição do Expresso: Espero que nos esteja a escapar alguma coisa. É que na verdade os dias passam e não se consegue perceber como vai terminar a coreografia orçamental que decorre entre Lisboa e Bruxelas, uma coreografia que tem como pano da fundo as famosas “posições conjuntas” (mas assinadas em separado) do PS com o PCP, o Bloco e os Verdes. Do dia de hoje aguardava-se com alguma expectativa o que sairia da reunião do colégio de comissários em Bruxelas, mas não saiu fumo branco, longe disso: Bruxelas pressiona. Pede “mais medidas” e “bom senso” a Portugal.

Já semana passada dedicámos um Macroscópio ao esboço de Orçamento, que foi de uma forma geral negativa e de um grande cepticismo. Para evitar regressar ao conjunto alargado de pareceres que então referimos, remeto os leitores para a síntese dessas reacções realizada no Observador por Edgar Caetano,Todos os nomes. O que este Orçamento já ouviu. Ou seja: “Irrealista, imprudente, artificial. O plano já teve vários nomes, mas o perigo é que venha a chamar-se "chumbado". Aí, também a dívida pública ganhará um nome - "lixo" - e o país arrisca novo resgate.”

Com este pano de fundo começaram a surgir os que depressa viraram a sua retórica contra Bruxelas e a Comissão Europeia. De entre todas destaca-se a posição de Porfírio Silva, um dirigente do PS muito próximo de António Costa e que é casado com Margarida Marques, a secretária de Estado dos Assuntos Europeus. Foi numa entrevista ao jornal i: “Corremos o risco de a Europa se transformar numa URSS sem KGB”. A entrevista é relativamente longa (o Observador fez aqui uma síntese do mais importante), mas para esta discussão a passagem mais significativa é, porventura, a seguinte: “Funcionários públicos europeus, pagos para servir o bem comum europeu, não deveriam deixar-se instrumentalizar, não deveriam deixar-se transformar em armas de arremesso da direita europeia. Infelizmente, há algumas pessoas em Bruxelas que não têm noção das suas responsabilidades e que não sabem honrar o histórico de comportamento leal das instituições europeias.” Mais: “A União Europeia, apesar de reconhecer a diversidade dos países, de ter várias instituições, de contar com várias forças políticas, acaba na prática a ser gerida por uma ideologia dominante que não aceita alternativas e mesmo por uma espécie de novo partido dominante. Na prática, a direita europeia, organizada no PPE, acaba por controlar governos, acaba por ter uma força desmesurada.”

Transparece aqui a ideia de que em Bruxelas se está contra Portugal, e por razões políticas, ideia que de certa forma é complementada pela de que aqueles que, em Portugal, referem as reservas da Comissão Europeia são uma espécie de “quinta coluna”. Ana Sá Lopes escreveu-o até com todas as letras no mesmo jornal I, em A quinta coluna alemã existe em Portugal. Mais concretamente: “Sem entrar na comparação alemães nazis-alemães dominadores na União Europeia, é verdade que Portugal dispõe hoje de uma quinta coluna bastante disponível para prejudicar os interesses nacionais em favor dos interesses dos países mais fortes da UE. São muitos, vivem de cara destapada, multiplicam-se pelas televisões (às vezes parecem omnipresentes) e desejam que Portugal seja derrotado, os portugueses sejam levados para mais cortes, as agências de rating rebentem com o país e os juros da dívida subam à velocidade dos balões.”

É uma posição no fundo semelhante à que foi tomada oficialmente ontem pelo PS, quando João Galamba, numadeclaração sem direito a perguntas, disse que “Este é o momento de deixar trabalhar o Governo de Portugal com serenidade na defesa dos interesses portugueses”, uma declaração que Henrique Monteiro criticou duramente no Expresso Diário de hoje.

Claro está que nem todos na área do PS afinam pelo mesmo diapasão. Vital Moreira, que foi eurodeputado na anterior legislatura, está entre os que não calam o seu desconforto, como sucede, por exemplo, em muitos posts do blogue Causa Nossa, em especial num chamado Reposicionamento. Escreve ele, depois de considerar que “Não se podem ignorar os sinais de mudança no PS, nem o seu significado”, dando vários exemplos: “o atual embate com a Comissão Europeia sobre o orçamento - incluindo acusações públicas à União Europeia que seriam improváveis há pouco tempo - são traços que destoam do tradicional posicionamento do PS no centro-esquerda moderado, aproximando-o dos partidos à sua esquerda. Concordemos ou não com este reposicionamento do PS na cena política (que não acompanho), trata-se porventura da mais importante evolução política do PS desde que Mário Soares "meteu na gaveta" o socialismo tradicional e abraçou decididamente uma orientação social-democrata no quadro da União Europeia.”

Paulo Rangel, que é de outra área política, também escreveu hoje no Público sobre o que designou como A insustentável ambiguidade europeia do Governo Costa. Ao comentar a ferida aberta com a Comissão Europeia no caso do esboço de Orçamento, nota: “É sabida a diferença entre uma atitude de inteligência e uma postura de esperteza: os espertos julgam que os outros são burros e os inteligentes contam sempre com a inteligência dos outros, mesmo quando estes não a têm. Ora, a última coisa de que o país precisava, nesta fase em que finalmente estávamos a recuperar, era de um Governo esperto, tão esperto que se julga demasiado esperto.”

A forma como António Costa e Mário Centeno têm vindo a gerir a relação com as instâncias europeias têm sido, de resto, objecto de muitas interrogações e perplexidades. Gozar com a Comissão (e com o país) não é boa política, escrevia hoje Bruno Faria Lopes no Diário Económico. Para ele, “o Governo que voltou atrás nas 40 horas, que descongelou admissões e que decidiu repor o que falta do salário logo em 2016, quer convencer a Comissão de que nada disto é estrutural, acusando de caminho a própria Comissão de ter feito um frete ao anterior Executivo.” Ora isso, na sua opinião, não é boa política, pois traduz-se em “abertamente, gozar com os técnicos da Comissão – um rumo que agrada a quem acha que “é preciso bater o pé à Europa”, mas que é contraproducente para a posição negocial portuguesa e perigoso para a credibilidade externa do país.”

Num registo mais cínico, Viriato Soromenho Marques sugeriu, emAs leituras de Lenine, no Diário de Notícias, o clássico "Da Guerra", o imortal tratado de estratégia de Carl von Clausewitz, que o líder soviético tinha sempre à mão. Porquê? Ele explica: “A esquerda marxista clássica lia os grandes livros. Pelo contrário, a nossa doméstica esquerda pós-moderna confunde a bruta e fera realidade, onde se joga o destino pessoal e coletivo de 10 milhões de portugueses, com um teste à sua boa consciência. Nem a tragédia do esmagamento da Grécia do Syriza lhe parece ter ensinado a perceber a desagradável diferença entre virtude e razão de Estado.”

Tudo isto a propósito de O orçamento Photoshop, como lhe chamou no mesmo jornal António Barreto, um orçamento que levou alguns colunistas a interrogarem-se sobre se a realidade que ainda vivemos não estará a ser esquecida por quem nos governa. Foi o caso de Nuno Carregueiro do Jornal de Negócios, que recomendou a leitura do Boletim Estatístico, página 59. O boletim é o do Banco de Portugal, o que vem nessa página é o quadro sobre as nossas dívidas, tudo para recordar que uma política de consolidação orçamental mais folgada “Fará aumentar a despesa pública, o que significa mais défice, que acabará por ser pago com mais dívida”. Já para João Miguel Tavares, no Público, há uma palavra-chave, a Repetir 100 vezes: falimos. Falidos, com um monte de dívida para pagar, escasseiam as alternativas. Ou melhor: “O que falta é a alternativa que a esquerda quer: aplicar um programa anti-austeridade com o dinheiro dos outros; ser capitalista na hora de pedir financiamento e comunista na hora de pagar as dívidas. Isso, de facto, não existe.”

Por isso tudo recomendo, a fechar, um texto de ontem, este do Observador, aquele em que Alexandre Homem Cristo se interrogava sobre se Estão a gozar connosco?, Nessa crónica relatava uma reunião de jovens na casa dos 30 anos, “Estridente, eufórica, feliz”. Mas sobre a qual pairava uma sombra: “Eles, que sentiram a dureza dos anos da troika e sobreviveram-lhes julgando ter vencido o pior da crise, pressentem agora que esse esforço poderá ter sido em vão. Que terão de recomeçar tudo. Que o que construíram sobre ruínas poderá a ruínas reduzir-se. E perguntam-me: estão a gozar connosco?

Esperemos que não, esperemos de novo, como Ricardo Costa, que nos esteja a escapar qualquer coisa. Nós reencontramo-nos amanhã, porventura mais esclarecidos. Ou talvez não. Até lá, vá-nos seguindo no Observador, e não perca nenhum desenvolvimento desta contagem decrescente até termos o OE 2016.

 
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