quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Precisaremos sempre de Paris, Texas

P
 
 
Ipsilon
 
 
  Vasco Câmara  
"Quanto mais se 'percebe' a América, menos sabemos sobre ela, parece-me. Tentei 'perceber' a alma americana, a sua beleza, os seus ideais, mas também percebi os seus perigos, as suas armadilhas. Vi o lado negro. (Que ultimamente se tornou tão poderoso e assustador.) Na altura, com a ajuda de Sam Shepard [dramaturgo e argumentista] e Ry Cooder [músico], cheguei perto, e tive a ajuda de dois grandes 'pesquisadores' do Oeste americano." É Wim Wenders, sexta-feira, no Ípsilon, a propósito de Paris, Texasfilme que regressa às salas portuguesas. É uma entrevista generosa, comovente até, em que o cineasta alemão aceita viajar de novo pela América, revisitando a turbulenta adequação, naqueles anos 80, de um imaginário, de uma mitologia, de uma fantasia - a América - à realidade e o pesadelo que pode ser a máquina de cinema.

Tenho para mim, por isso, que o mais deslumbrante momento da obra do cineasta alemão não é se calhar um filme, é a passagem entre dois filmes: das sequências finais de O Estado das Coisas (1983) - Los Angeles a preto e branco, distópica, o cinema à beira do fim -, às sequências iniciais, o deserto, o sol, a luz e Harry Dean Stanton, de Paris, Texas (1984). É como se fosse o próprio cinema (de Wenders) a acordar, a aprender a falar de novo, a balbuciar, a acreditar. E é isso que ainda está intacto neste filme, uma história de reencontro familiar. É por isso que é tão importante e tão simbólico ver Paris, Texas hoje numa sala: talvez possamos ainda, espectadores, ser capazes de despertar.
Penso agora, enquanto escrevo, que é também uma história que liga a Alemanha à América a que acaba de sair de Toni Erdmann, o filme da alemã Maren Ade (entrevistada aqui por Jorge Mourinha). Em Cannes 2016 tornou-se um dos "meninos queridos" de uma certa crítica, coleccionou distinções do "melhor filme do ano" por publicações, como dizer, "insuspeitas", e prepara-se, talvez, para receber o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro. Quando o vi em Cannes, senti nele uma afectação indie que não escondia o desejo de ser a boa e velhinha comédia sentimental, pateta q.b. (gato com o rabo de fora) - não é opinião unânime, vejam o que escreveu o Luís Miguel Oliveira. Perguntei-me mesmo se nas quase três horas de duração o filme não repetia o mesmo motivo nos diálogos e nas situações em que duas personagens, pai e filha, buscam o sentido da vida. Esconde-se aqui uma potencial sitcom, perguntei? Era um delírio. Mas a realidade é que está aqui uma possibilidade de remake americano, que vai trazer de volta ao cinema Jack Nicholson.
O Gonçalo Frota deslumbrou-se com a fuga às convenções do teatro - no sentido mais eminentemente burguês - de Finir en Beauté de Mohamed El Khatib, autor franco-marroquino. A peça chegará ao Teatro Nacional D. Maria II (entre 18 e 25 de Fevereiro). Será o primeiro encontro do público português com "um dos autores mais desafiadores e fascinantes deste momento" (escreve-se assim no Ípsilon: "El Khatib semeia a beleza num teatro de morte"). Por que esperamos?
E para acabar com América, com cinema e com Óscares: um dos documentários mais falados nos EUA, neste momento, é I Am Not Your Negro , de Raoul Peck (nomeado para o prémio da Academia). Recupera James Baldwin (1924-1987), romancista, ensaísta, dramaturgo, activista dos direitos civis - e espectador de cinema, naqueles anos, 60, em que os filmes tentavam liberalizar o "sistema" (as produções Stanley Kramer, por exemplo). I Am Not Your Negro desafia a América a olhar-se no que tem de mais incómodo, escreve de Nova Iorque Isabel Lucas. A começar pela palavra proibida: Nigger. Eu gostava de saber o que pensaria James Baldwin, hoje, dos filmes nomeados pela Academia de Hollywood.
_______________________________________________



Nenhum comentário:

Postar um comentário