quarta-feira, 12 de abril de 2017

A representante de Trump em Portugal é muçulmana e ex-refugiada. "Eu também sou a América"

Do curdistão iraquiano para um campo de refugiados no Irão e deste país para o serviço diplomático nos EUA. Herro Mustafa é a líder da embaixada dos EUA em Portugal. À RTP fala sobre a sua história, o título de refugiada, Trump e a vida em Lisboa com a filha e o marido.

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Mulher, ex-refugiada, curda, muçulmana. E representante de Donald Trump. O apelido denuncia-a mas ela não se importa: diz que tem muito orgulho na sua identidade e que a América também é dela. Herro Mustafa é Encarregada de Negócios dos EUA em Portugal. Foi ela que ficou a comandar o barco da Embaixada americana quando, em janeiro, o embaixador Sherman disse adeus a Portugal, e continuará a ser ela até que um novo embaixador (ou embaixadora) seja nomeado. 

Herro mal se lembra, mas a família teve de fugir do Iraque por causa da perseguição aos curdos. Já nos EUA, os pais arranjaram vários empregos. Na altura, fazer uma chamada telefónica para a terra natal demorava "anos" e o regresso era impensável. Por isso, ficaram a saber de todas as novidades ao longe: os nascimentos, os casamentos, as mortes.

Trabalhou com George W. Bush, Obama e agora Trump. "A minha lealdade está para com a Constituição", diz. A filha Ariana de 1 ano e meio está rodeada de quatro línguas: português, inglês, curdo e hindi, do lado do pai. Durante o dia fica na creche "Pipocas", da embaixada, um descanso para a mãe. Herro Mustafa em entrevista à RTP. 

A maior parte da sua vida foi passada nos EUA. Que importância tem o seu lado curdo? 

Tenho muito orgulho em ser curda. Nos Estados Unidos há muita gente com bagagens culturais muito diferentes. Para mim, é só um pormenor. Mas eu sou diplomata americana e a minha lealdade está com os EUA. 

Nasceu no curdistão iraquiano com 1 ano, foi para um campo de refugiados no Irão e de lá saiu com 3 anos. Lembra-se de alguma coisa dessa altura?


Não me lembro de nada de ir do Iraque para o Irão. A minha mãe levou-me a mim e ao meu irmão, que tinha acabado de nascer. Foram três dias e três noites a andar pelas montanhas, para escapar ao perigo da perseguição aos curdos. O meu pai já estava no Irão à nossa espera. Não me lembro de ter vivido no campo de refugiados, mas lembro-me da viagem de avião do Irão para os EUA porque entornei leite (risos) e esse momento ficou-me na memória. Lembro-me de aterrar em Minot, Dakota do Norte. A minha mãe e o meu pai estavam com roupas curdas, e eu e o meu irmão estávamos com um chupa chupa na mão. Quando chegámos não tínhamos nada connosco. Os meus pais tiveram de arranjaram vários empregos.

"Ouvir por telefone que os pais morreram e não poder ir ao funeral, não estar no casamento dos irmãos, não estar nos nascimento dos sobrinhos... É muito duro".

Que empregos tiveram?

Aceitavam qualquer coisa. O meu pai foi empregado de limpeza, trabalhou com a minha mãe numa loja de donuts... Faziam donuts no turno da meia noite até de manhã e às vezes levavam-me a mim e ao meu irmão com eles para a loja. Enquanto eles trabalhavam, nós dormíamos numa das bancadas e de manhã, quando era altura de ir para a escola, eles diziam "Acordem!". Ajeitávamo-nos e pronto, lá íamos para a escola. A minha mãe também trabalhou numa lavandaria, numa loja e numa creche.

Quando viemos para os EUA, a minha mãe estava grávida e eu tive uma irmã que nasceu e uns meses depois morreu. Foi morte súbita, no berço. Ver aquilo tudo, a minha mãe que não falava muito bem inglês, não tinha a família ao pé dela, e uma coisa destas acontece... Logo no primeiro ano de chegada, num sítio novo... São imagens que ficam contigo. E era muito difícil para eles comunicarem com a família que ficou lá no Curdistão, não é como hoje em dia. 

Naquela altura, até escrever uma carta era um martírio... Demorava anos até terem uma conversa por telefone. Ouves falar dos casamentos, dos nascimentos, das mortes, sempre através do telefone.... Ouvir pelo telefone que os pais morreram e não poderem ir aos funerais, não poderem estar no casamento dos irmãos, no nascimento dos sobrinhos... É muito duro. 

Herro Mustafa acompanhada pelos pais e pelo irmão

Como é que se explica a uma criança o que está a acontecer? 

Sabes, quando somos crianças, eles nem têm de dizer nada. Tu vês as coisas a acontecer. Sempre falámos curdo em casa e eu sempre soube do meu passado, da história dos curdos, das lutas... Começámos logo a aprender inglês quando chegámos aos EUA mas não perdemos a parte curda da nossa identidade. O meu pai é o meu modelo porque, assim que chegámos, ele quis logo assegurar que tinhamos boa educação. A América deu-nos a liberdade. 

O sonho americano.

Exato. Tínhamos uma vida muito difícil mas os meus pais sempre nos incentivaram a lutar e a trabalhar muito, e nós assim fizemos. Estudar, trabalhar... Tivemos sorte porque, por causa disso, conseguimos ter uma bolsa de estudo no liceu para ir para a universidade, e depois ter uma bolsa de estudo para tirar uma pós graduação. Ele dizia sempre: "Vocês tiveram uma oportunidade, por isso aproveitem".

Herro Mustafa em ação no Iraque

Ser refugiada é um título que fica para sempre?

Hum... É uma questão interessante em termos do que o que é que significa ser refugiada. Um refugiado é alguém que é forçado a fugir do seu país por causa da situação política, económica, de uma guerra ou outras coisas. Ser refugiada é difícil, mas se fores integrada num bom programa de ajuda aos refugiados, tornas-te membro daquela comunidade. Como aconteceu connosco. 
  
Nós aterrámos em Minot, uma terra pequena na Dakota do Norte, e toda a gente nos acolheu. Lá a maioria das pessoas vinham da Suécia e da Noruega, tens muitas loiras. Nós éramos das poucas com cabelo escuro (risos), por isso destacávamo-nos muito. Em todo o lado em que entrássemos, toda a gente conhecia a familia Mustafa. Quando fomos para a costa leste dos EUA, quando eu fui para a faculdade, as placas nos restaurantes diziam "Família Mustafa, vamos ter saudades vossas". Isto é um exemplo de um bom programa de integração. Por isso não, não acho que vás ter sempre o título de refugiada, mas acho que é importante teres consciência da jornada que te fez estares onde estás. É por ter sido refugiada que sou a pessoa que sou hoje. Não o escondo.

Qual é a importância desse passado hoje? 

Moldou a forma como olho para os conflitos e para os problemas. Às vezes, as coisas parecem difíceis e as pessoas dizem: "Não conseguimos fazer isso", "É muito dificil' ou "Isso não dá para mudar". Põem muitos obstáculos. O meu passado faz com que eu não veja esses obstáculos como barreiras. Em vez disso, penso: "Ok, tudo bem, vai ser um pouco mais dificil, mas vamos ver como é que podemos fazer isto". No meu trabalho como diplomata... Não sei se as pessoas percebem qual é o trabalho dos diplomatas...

Acha que não?

Acho que às vezes as pessoas pensam que o trabalho dos diplomatas é ir a cocktails, conversar com pessoas nesses cocktails...

Viajar...

Viajar muito, sim... Mas a diplomacia é muito mais que isso. É interagir com a população do sítio para onde foste destacada. Eu fui destacada para o Líbano, uma zona de guerra, fui destacada para o Iraque, outra zona de guerra, para a Índia, e em todos os sitios para onde vou tento sempre ver onde é que posso fazer a diferença. Não só com o governo, mas também com as pessoas da comunidade. Não pensar só nas pessoas que hoje têm o poder, mas olhar à volta e analisar: quem é que daqui a 10 anos poderá ser um bom líder? Quem tem essas qualidades à vista? É importante que nos foquemos nessas pessoas. 

Herro Mustafa fotografada na sua residência, onde vive com o marido e a filha de 1 ano e meio, em Lisboa 
"Trump não está a expulsar os muçulmanos da América. Eu tenho o meu passado e estou aqui"

Como é que se sente como representante de Donald Trump? 

Bom... Eu prestei juramento à constituição dos EUA. Independentemente do partido político. Trabalhei na Casa Branca para um presidente republicano, George Bush, trabalhei para um presidente democrata, presidente Obama, e agora trabalho para o presidente Trump. A minha responsabilidade é para com a nossa constituição, independentemente do partido.

O facto de eu estar aqui e de ter trabalhado com todas estas administrações mostra que há continuidade. O embaixador Sherman saiu mas há duzentas pessoas aqui em Portugal que continuam cá. Isto é continuidade. Todos os programas que estão a ser feitos vão continuar. Mesmo com uma administração nova, nós temos a responsabilidade de continuar o nosso envolvimento bilateral (entre os EUA e Portugal). Temos uma relação muito forte, estratégica, e fazemos muito em muitas áreas, como a ciência, defesa e a educação. 

Herro Mustafa trabalhou com Bush e depois com Obama 

Acha que, tendo em conta a sua identidade -- mulher, ex-refugiada, muçulmana -- se tivesse nascido nos EUA hoje, teria tido a carreira que teve? 

Não acho que essa seja uma pergunta justa porque o que está a dizer é que a América agora está a mandar embora todos os muçulmanos, e isso não é verdade. O presidente Trump não está a fazer isso. A América tem muitos muçulmanos que são líderes, seja na economia, seja nas universidades, no Governo. Eu sei o que está na imprensa e nas redes sociais, mas assumir que essa é a nova América não é uma avaliação justa. Eu sou a América. E sou a líder da nossa embaixada aqui em Lisboa, com a minha história, e isso não vai mudar. Se essa consideração fosse verdade, eu não estaria aqui. 

O que eu peço é: antes de tirarem conclusões, deem tempo para que possamos perceber quais serão as políticas. Ainda falta preencher lugares na equipa de Trump. Ainda há pouco tempo chegou o nosso novo conselheiro para a segurança nacional. É preciso deixar as coisas assentar, a democracia está a funcionar.  A implementação das políticas nem é feita na Casa Branca, são as agências que as implementam. 

Herro Mustafa foi assessora do vice presidente Joe Biden para os assuntos do Médio Oriente, Ásia do Sul e Central

Para mim a NATO é o melhor exemplo: havia imensas preocupações sobre o que ia acontecer nas relações com a NATO, por causa das coisas que foram ditas. Mas já dissemos publicamente que somos fortes apoiantes da NATO. Assumiram também que esta administração ia restabelecer a relação com a Rússia, mas tens visto o que temos dito sobre as ações da Rússia na Crimeira, na Ucrânia -- coisas muito diferentes daquilo que as pessoas assumiram no início. Quando a administração Obama entrou, também disse que íamos fechar Guantanamo. E não fechámos, por várias razões. É necessário dar tempo ao tempo (diz agora em português). 

Por exemplo, já com esta administração, fundámos um programa de workshops sobre integração de refugiados. Foi financiado pelo departamento de Estado dos EUA. Portugal foi escolhido como o primeiro país para decorrerem estes workshops, porque Portugal é um modelo no seu trabalho com os refugiados. Esteve lá o antigo presidente Jorge sampaio e a deputada europeia Ana Gomes. Foram 3 dias com os maiores especialistas sobre integração de refugiados, membros do Governo, da sociedade civil, ONG's, e todos juntos falámos dos vários desafios, como a integração no mercado de trabalho. Resumo: tivemos um programa sobre integração dos refugiados financiado pelo governo dos EUA. Apesar do que se vê nas notícias.
"Vamos ensinar a nossa filha a amar todas as religiões. A ser tolerante, porque temos pouco disso no mundo"

A Hanifa tem uma filha, a Ariana. Que idade tem agora?

Tem quase 16 meses. Está cá comigo e o meu marido também. 

Como conheceu o seu marido? 

Conhecemo-nos na Índia, quando estive lá a trabalhar como ministra conselheira para os assuntos políticos. Estive lá quatro anos.

A Ariana está na creche? 

Sim, a nossa embaixada tem uma creche, chama-se Pipocas. Foi a Hillary Clinton que a inaugurou quando foi Primeira-dama. É uma das únicas sete embaixadas em todo o mundo que tem uma creche. É uma grande ajuda. Posso ir trabalhar e se me apetecer ir vê-la só dois minutos, vou. Estou muito descansada porque lá ela está rodeada de amor. E está a aprender português e inglês, o que é ótimo. Em casa aprende curdo e hindi. Em português, as palavras favoritas dela são "beijinho" e "olá". Acorda de manhã e a primeira coisa que diz é "olá" (risos) 

Portanto, ela tem pouco mais de um ano e já sabe quatro línguas?

Ela percebe. Vai dizendo uma ou outra palavra. O meu marido fala com ela em hindi e ela responde, o meu pai liga e canta-lhe canções curdas, que ela adora... Acho que é muito importante criar os filhos com várias línguas, sobretudo nesta idade, porque eles absorvem tudo. Espero que ela mantenha o português, ate porque podemos ir para outro sítio onde se fale português.

A Herro é muçulmana e o seu marido é hindi. Vão ensinar-lhe alguma religião? 

Vamos ensiná-la a amar toda a gente e todas as religiões. Ela vai escolher a religião que quiser. Vamos ensiná-la a ser tolerante, porque temos pouco disso no mundo (sorri). Há uma diferença entre religião, fé e espiritualidade. Podes ser espiritual de muitas formas, podes ter fé em coisas que te deem esperança. 

E para onde é que vão a seguir? 

Não sabemos, só sabemos perto da data. Ainda tenho dois anos e uns meses, de um total de três anos. 

Portugal foi a primeira escolha?

Foi. O meu marido até fez uma visita antes e adorou. 

De que é que gostou?

Quando estás a escolher o país para onde queres ir há muita coisa em jogo. Uma é escolher um sítio onde sintas que possas ter impacto. Mas, pela primeira vez, tive em consideração outros aspetos, como a segurança e qualidade de vida, porque tenho uma criança pequena e porque muitos sítios em que trabalhei no passado eram ou zonas de guerra, ou zonas perigosas ou poluídas. Vir para um sítio lindo, seguro, com ar puro como este é ótimo. Os portugueses são ótimos com crianças. 

Onde estão os seus pais agora?

Vivem nos EUA. Estão em Georgetown -- mudámo-nos para lá quando eu fui para a universidade. Somos uma família muito próxima. E continuo a ter família no Curdistão... O espetacular da tecnologia moderna é o Facebook, o Whatsapp, o Viber. É tão fácil conectar. Nem precisas de pensar.

Herro Mustafa ao colo da mãe

Voltou a ver os seus familiares do Curdistão?

Sim, a primeira vez que os vi foi 18 anos depois de ter saído do Iraque. Demorou 18 anos.

Como foi esse encontro?

Foi muito tocante. Aterrei, olhei para a minha tia e consegui ver nela a cara da minha mãe. Olhei para o meu tio e vi nele a cara do meu pai. Foi incrível, porque durante anos cresci sem avós, sem tios, sem primos. Não tive nada disso. 

Quando a Herro Mustafa era uma criança e via os pais a trabalhar arduamente, quando fazia aquelas viagens, alguma vez imaginou estar onde está hoje?

(Emociona-se) Essa pergunta mexe comigo... Faz-me chorar. Porque os meus pais tiveram uma vida muito difícil. E mostrar-lhes que o esforços dele valeu a pena deixa-me muito orgulhosa. Tiveram uma vida mesmo muito difícil. Estou muito orgulhosa deles. 

Fonte: RTP

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