domingo, 15 de outubro de 2017

A CRÍTICA DO PÚBLICO A SERVIDÃO HUMANA, DE SOMERSET MAUGHAM



Maugham quis escrever um romance filosófico que desse conta não só da sua experiência desde a infância mas também do seu percurso como pensador.

Somerset Maugham começou a escrever Servidão Humana aos 37 anos como uma espécie de catarse para as suas múltiplas angústias e traumas. O romance, cujo título foi retirado da Ética de Espinosa, surgiu em 1915, depois de quatro anos de trabalho árduo. É uma típica história de aprendizagem iniciática e surgiu numa altura em que os Bildungsroman conheciam um enorme sucesso com autores como Samuel Butler, Arnold Bennett, H.G. Wells, D. H. Lawrence e James Joyce, de tal forma que os críticos de então afirmavam com ironia que não havia escritor que se prezasse que não começasse por contar a sua vida, mais ou menos disfarçada numa trama ficcional.

Maugham cria a personagem de Philip, relatando – com pormenores por vezes demasiado enfáticos – o seu longo caminho da realização pessoal, as tentativas para escapar a uma existência burguesa, acomodada e sem sentido e, mais tarde, a uma relação sórdida e condenada. Philip, à semelhança de Maugham, é um órfão entregue a guardiões mais velhos, estranhos e severos, num ambiente desconhecido e hostil. A primeira parte do livro é dedicada à vida em Blackstable – Maugham viveu em Whitestable – e na escola em Tercanbury – a de Maugham era a King's School em Canterbury – sendo descrito com minúcia o ambiente vitoriano e dickensiano da casa e da escola, com as habituais cenas de bullying – o ponto fraco de Philip é um pé boto, a de Maugham era a gaguez – a mediocridade da maior parte dos professores – ignorantes, preguiçosos, insensíveis, estúpidos –, o tédio da rotina escolar, o sentido de injustiça e a lenta descoberta da identidade.

Depois de ser tentado no sentido de ser ordenado sacerdote por um novo reitor que lhe reconhece as aptidões excepcionais, Philip escapa-se a um futuro que encara como limitado e desadequado às suas ambições e parte para a Alemanha, onde, em Heidelberg, inicia a sua vida de rapaz independente. É aí que conhece as primeiras raparigas e forma as primeiras amizades, discute Religião, Filosofia e Literatura e entra em contacto com a obra de Goethe, Verlaine e Flaubert, bem como com o teatro de Ibsen que, tal como a música de Wagner, eram considerados como demasiado modernos e terrivelmente blasfemos. É ainda em Heidelberg que um dos seus conhecidos lhe dá a ler A Vida de Jesus, de Joseph Ernest Renan – o livro que revolucionou o cristianismo no século XIX por contar a vida de Cristo na qualidade de ser humano – que o leva pelo caminho do agnosticismo, como aconteceu com Maugham. Convém lembrar que Philip é um produto perfeito da sua época. A vida “artística” em Paris, o exercício diletante de Medicina, a vagabundagem, a sedução de mulheres mais velhas, as discussões filosóficas e a atracção pelo abismo moral e sentimental que, aqui, é representado pela relação com Mildred Rogers, a criada cockney, feia, grosseira e ignorante que o explora, rebaixa e humilha, reflectem uma tendência para explorar uma sociedade convulsa e caótica onde artistas como Gauguin e Van Gogh aliavam o cúmulo da genialidade a uma existência de pobreza sórdida e aberrante.

Francis King, um escritor amigo de Maugham, fez uma ligação entre a deformidade de Philip e a homossexualidade do escritor que, já entrado em anos, confessou a um sobrinho que “tinha passado a vida a convencer-se que era três quartos heterossexual e apenas um quarto gay, quando, afinal, era exactamente o contrário”. A criação da figura de Mildred – andrógina, sem peito, magra, destituída de atractivos femininos, tanto físicos como morais – poderia, de acordo com alguns críticos, corresponder a uma necessidade de exorcizar uma relação secreta que Maugham teria mantido durante o tempo em que praticou medicina nos bairros pobres de Londres.

Embora a história de Servidão Humana seja principalmente conhecida pela relação masoquista entre Philip e Mildred – o centro da atenção das adaptações cinematográficas –, a verdade é que Maugham quis escrever um romance filosófico que desse conta não só da sua própria experiência desde a infância mas também do seu percurso como pensador. É principalmente neste livro – e mais tarde em O Fio da Navalha – que revela a intenção de mostrar os perigos do chamado "conhecimento sensível" – a imaginatio de Espinosa – cujas limitações desencadeiam a desordem dos sentimentos, o sofrimento e a paixão. Maugham tinha dificuldade em aceitar a ideia de um estado intuitivo, místico que levasse à felicidade e virtude supremas, as quais, em Servidão Humana, se consubstanciam na figura de Sally, personagem pouco determinante para alterar o rumo dos acontecimentos. Fortemente influenciado por Maupassant, Zola e Flaubert, Maugham quis lançar um alerta para todos aqueles que se deixam enredar pela armadilha de uma visão romântica da existência, baseando-se nas palavras de Espinosa: “Chamo servidão à impotência do ser humano para governar ou restringir (as suas) emoções”. Para ele, que lutou sempre para se libertar dos constrangimentos da lei e da moral, a perfeita epifania seria a que lhe revelasse o sentido da vida, por muito modesto que fosse, como esconjuro contra a inconsequência da morte.

Fonte: Crítica Servidão Humana, Somerset Maugham, da autoria de Helena Vasconcelos, publicada no suplemento Ípsilon, do Público, no dia 24 de Dezembro de 2009.

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