sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Um país sem Prêmios Nobel

  • Péricles Capanema

Prêmio cobiçado por todos. O Prêmio Nobel, sabe-se, excetuado o Prêmio Nobel da Paz, é o mais prestigioso galardão de excelência intelectual do mundo. Vem sendo concedido desde 1901, cerca de mil pessoas já o receberam, além de perto de trinta organizações. Instituído por Alfred Nobel (1833-1896) [foto ao lado], químico milionário, que doou 94% de sua fortuna para financiá-lo, premia nas áreas de Química, Física, Fisiologia ou Medicina, Literatura. O Prêmio Nobel da Paz, já disse, tem motivação diferente. Desde 1968 existe o chamado Prêmio Nobel de Economia, pago pelo Banco da Suécia, de mesma inspiração, grandes contribuições na esfera da Economia. Os Estados Unidos têm cerca de 400 premiados, Alemanha e Inglaterra caminham para 150 cada uma, a França passou dos setenta. Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Peru, Venezuela, na América Latina, têm nacionais galardoados. Entre os premiados estão Henry Kissinger, Obama, Einstein, Hemingway, Madame Curie (ganhou duas vezes, uma na Física, outra na Química).

Prêmio inacessível a brasileiros? Brasileiro nunca ganhou. É normal? Será, ninguém entre nós até agora mereceu a premiação, explicação simples assim. Falou-se, muitos se lembrarão, durante poucos anos, em Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade para o Nobel de Literatura. Ficou no falatório. De outro lado, parece anormal, choca, durante mais de cem anos jamais um brasileiro em nenhum dos seis ramos ter obtido tal láurea. Entristece; tanta gente já recebeu, nenhum de nós; de certa maneira, dá até um pouco de vergonha. O que há?

A busca de razões. Naturalmente o espírito é empurrado a pensar nas razões. Por que nunca? Pretendo agora levantar uma delas, a questão inteira é bem mais ampla, não cabe num artigo, faltam sobretudo entre nós ambientes culturais que prestigiem (e sancionem moralmente) determinados estilos de vida, que marcam família e círculos sociais. De um aspecto importante, porém, seria factível tratar. Georges Dumas (1866-1946) [foto ao lado] , médico, filósofo e psicólogo, foi dos intelectuais franceses de destaque no século XX. Conheceu bem o Brasil, chegou a ser chamado de “embaixador cultural”, tal sua ação no País. Em 1935, no Rio de Janeiro, teve longas conversas com Gustavo Capanema, então ministro da Educação, sobre razões do problema acima mencionado — falta de excelência na produção intelectual. O ministro pediu-lhe uma carta em que descrevesse suas opiniões a respeito, era uma forma de perenizá-las, deixá-las registradas para o futuro. Foi o que fez Dumas, a bordo do transatlântico Campana, missiva de 1º de setembro de 1935.

Inteligências brilhantes, mas relativamente pouco produtivas. De plano constata ele a contradição “entre o valor intelectual de tantos brasileiros e a relativa rareza de produção intelectual. Todos os professores franceses que vêm ao Brasil se impressionam com a cultura e a inteligência dos ouvintes e estudantes que conhecem mais de perto, mas também se espantam pelo fato de que de tanta inteligência e tanta cultura se originem tão poucas obras que contem na produção mundial. A contradição é menos pronunciada nas ciências”. O pensador francês discorre sobre o que, segundo ele, explicaria a pobreza brasileira na produção intelectual: “Não haver no Brasil organismos encarregados de ensinar à juventude as disciplinas gerais de pesquisa e de trabalho na esfera científica e, mais ainda, na esfera filosófica, histórica e literária”. Registra a mais outra lacuna, o Brasil tem muitos autodidatas, mas pouca gente formada nos métodos de pesquisa e de crítica, condição essencial para a grande produção intelectual. Breve, faltam os instrumentos básicos, formação sistemática de pesquisa e crítica, em especial nas disciplinas de conhecimentos gerais, filosofia, história, literatura. O pessoal borboleteia demais.

A veleidade atrapalha. Georges Dumas aponta defeito que impede produção intelectual séria: veleidade. A juventude que conheceu, “rica de dons intelectuais e cheia de cultura”, procura mais gozo intelectual que formação do espírito: “A questão é saber se ela continuará a se comprazer com o gozo intelectual para a qual a levam naturalmente seus gostos ou se ela buscará associar a este prazer intelectual a preocupação constante de fazer a cultura servir à formação do espírito”. Enfim, deixar de lado exibições fátuas, exibicionismos, fruição injustificada, e se concentrar na procura da verdade e na formação (desenvolvimento) da personalidade.

Redação correta é fundamental. Como conclusão de suas observações Georges Dumas enfatiza um ponto de alicerce, a necessidade de exercícios de boa redação, pelo menos, digo, simplicidade, clareza, coerência, sequência lógica: “O senhor me disse, em uma de nossas conversas, que não se trata somente de ler bons autores, mas a grande questão era saber como escrever, como tornar-se um autor, por si mesmo, grande ou pequeno, eu penso da mesma maneira”. Enfim, que seja uma redação autêntica, que tenha como uma das bases o conhecimento de bons autores. O que mais para ser autor, grande ou pequeno, “por si mesmo”, água que nasce da fonte? Daquele mato (da carta) não sairá coelho. Ele não trata da questão.

Paciência, observação plácida e reflexão própria. O coelho vai sair, mas de outro mato. Amigo meu de décadas, grande pesquisador e colecionador de textos de valor, enviou-me comentários (maio de 1970) do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira (1908-1995) [foto ao lado] sobre uma característica da vida intelectual saudável, presente com frequência no Brasil. Dr. Plinio a compara com o modo de trabalhar de grandes pintores, que vão completando vários quadros ao longo de anos. Um dia completam uma flor em um; no outro dia será um gesto, inspirado pelo que viu na rua, em outro. E assim vai, nada mecânico, certo ar aparentemente desordenado, dependendo de maturação interior. Em suma, amadurecimento paciente, fruto de observação e reflexões, ao longo de anos. No terreno da formação intelectual, um campo, por analogia, vai fornecendo ao outro, material que ajuda o trabalho de aperfeiçoamento. “Se bem que eu aprecie os estudos centrados, aprecio muito essas divagações colaterais em que outros universos entram e enriquecem de sua seiva o estudo que a gente está tocando. Porque é a partir disso — que é um pouco fatigante — que está a capacidade de relacionar, que é muito importante. É um ponto forte do povo brasileiro, tem uma capacidade de relacionar que é simplesmente prodigiosa. Tem seu paralelo na capacidade de intuir”.

Um tecido de vários fios intelectuais. O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira conclui seu comentário, favorecedor da vida intelectual autêntica, água que sai da própria nascente: “O indivíduo tem vários fios intelectuais, com eles é capaz de tecer sua vida intelectual, relacionada com o mais profundo de sua personalidade. É assim que eu concebo a vida intelectual”.

Somatória benéfica. De um lado, sistema. Favorece o aproveitamento das potencialidades e do esforço. De outro, utilização de uma antena que multiplica talentos: a capacidade de relacionar vários universos. É caminho que evita desvios, desenvolve dons, torna-os aproveitáveis para todos, pode levar longe. No estuário do processo, produções intelectuais excelentes. Trilhá-lo, como fenômeno social, minha modesta opinião, vale mais que empilhar Prêmios Nobel. A origem do artigo é simples: enquanto lia, agradecido, o material enviado pelo meu amigo, ocorreu-me compartilhá-lo com pessoas a quem ele poderia interessar, meus eventuais leitores. Espero que lhes seja útil. Acabou.

ABIM

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