sábado, 30 de abril de 2016

FILHOS DE COMUNISTAS

Hoje, nós, homens livres, somos todos filhos dos que resistiram

Artur Pereira – jornal i, opinião
Os comunistas clandestinos, presos, torturados, amavam os seus filhos, amavam a vida e a liberdade, por isso lutavam pelos outros homens e pelos filhos deles. Hoje, nós, homens livres, somos todos filhos dos que resistiram

O cascalho nacional pariu um tipo de cidadão-modelo do estilo “faz que és culto que eles acreditam barra na minha azia habita um democrata graduado em ficheiros secretos barra eu sei aquilo que nunca ninguém vos contou mas eu agora vou dizer.
É um produto muito luso, como o rabejar, cuspir no chão ou andar a pedinchar favor para posição pública a tudo o que é santinho, e depois fazer conferência televisionada contra a cunha e o compadrio.

É uma rapaziada fina como licor de estalar língua e esperta como alho. São uns estroinas a quem, para desenhar história de intervenção política, compromisso cívico ou ação solidária, sei lá, qualquer coisita que não seja emborcar adegas e medrar na arte de bem apunhalar o ente mais próximo, o biógrafo vai ver-se aflito.

A eles seria mais apropriado, em vez de perguntar onde estavam no 25 de abril de 1974, indagar por onde passeavam nos dias 24, 23 e por aí atrás, de onde facilmente se percebe que, para chegar às origens destes iluminados democratas, teríamos de ir em regressão no tempo, aventurando-nos a chegar a um buraco negro que não tem necessariamente de ser os estudados na astronomia.

Uns por tarefa ideológica, outros para expurgarem vergonhas e assombrações do passado, por terem cantado como grafonolas quando caíram perante os esbirros da PIDE, situação que nunca ninguém lhes reprovou, por entendimento humano dos que resistiram e não falaram, outros por cândida burrice e ainda outros por doença mental, a todos une um preconceito enfermiço e um ressentimento militante contra o PCP e a sua história.

A manipulação, as omissões, as afirmações feitas de uma ignorância convencida são as ferramentas dos que, sob a aparente diversão do seu apego a uma pureza democrática, mais não fazem que esforçar-se por silenciar e censurar o PCP, tentando inculcar a ideia de que os comunistas são naturalmente e de formação antidemocráticos.

Mas depois há a vida, e com ela vem a experiencia quotidiana das pessoas, e aí, quem os trabalhadores de todas as condições e setores encontram na aflição e na luta de todos os dias, solidários em defesa dos postos de trabalho, por melhores salários e reformas, contra as injustiças e em defesa dos direitos, são os comunistas.

Vem isto a propósito das beatas reações ao interessante livro “Os Filhos da Clandestinidade”, que relata o exílio e a vida na URSS de muitos dos filhos separados dos pais comunistas que lutavam contra a ditadura em Portugal.

Reparem que me refiro às reações, não ao livro. Pois é quase certo que quem utiliza o livro para um ataque de caráter aos comunistas e à propalada dureza de sentimentos do PCP nem sequer tenha lido mais que a capa.

É extraordinário que onde só se pode ler um excecional sacrifício e ato de amor, de pais se separarem dos seus filhos para os proteger, em circunstâncias duríssimas e terríveis, onde muitos dos que lutavam contra a ditadura não tinham nem rede familiar nem meios para os proteger, e que de outra forma seriam presa fácil dos verdugos da PIDE, das suas ameaças e violência, que ficariam abandonados ou pior, alguns só consigam enxergar frieza e desumanidade.

Afinal, não fizeram nada de diferente do que fizeram os da República Espanhola, os da Resistência francesa e belga, os ingleses que enviaram os seus filhos para o interior quando as cidades foram bombardeadas, os russos afastando os filhos do assalto nazi, os judeus enviando os seus filhos para a Suíça e para a América.

O problema é que observam míopes, vesgos de preconceito. O problema é que não conseguem nem imaginar a dureza desses tempos. Comparar a convicção da luta pela liberdade e pela democracia, que era pelo que se lutava, ao delírio de fanáticos de clube ou de seita mística, só por cínica má-fé ou por poucochinho.

Em criança, com o meu pai preso, assisti receoso e confuso à presença em nossa casa dos agentes da PIDE, às suas palavras provocadoras sobre a natureza e qualidade do meu pai, que era capaz de abandonar a mulher e os filhos para se meter com os comunistas. De mãos dadas, enquanto os via a remexer gavetas e a levar livros, percebi a intenção da ofensa ao meu pai, temi pela minha mãe e pelo irmão mais novo. Nunca mais esqueci nada desse momento. Amei o meu pai até ao fim. Ainda hoje amo.

É curioso que, hoje, os argumentos de propaganda que se utilizam para insultar os comunistas, e em particular os que protagonizaram a resistência, sejam afinal os mesmos que o regime fascista utilizava na sua ação psicológica.

Claro que esses tempos de excecional dureza deixaram marcas profundas, difíceis de sarar. Mas a anormalidade foi criada pelos fascistas que durante 46 anos obrigaram os portugueses a viver tempos de medo e sofrimento, não os que contra isso lutaram com o sacrifício da própria vida.

Os comunistas clandestinos, presos, torturados, amavam os seus filhos, amavam a vida e a liberdade, por isso lutavam pelos outros homens e pelos filhos deles. Hoje, nós, homens livres, somos todos filhos dos que resistiram.

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