quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Um século passado

 Leo Daniele (*)


Um depósito contendo objetos caoticamente amontoados ao sabor dos anos: uma televisão quebrada jazendo ao lado de uma garrafa aberta de champanhe francês, confinando com uma bola de futebol estragada; um chapéu de feltro tipo antigo sobre uma pilha de listas telefônicas ultrapassadas; um velho rádio com sua antena agressivamente apontada para o teto, bom vizinho de um computador tornado obsoleto, mas que não foi vendido em tempo hábil, ou seja, antes de perder todo valor... Para muitas pessoas, o Século XX foi algo assim. Mero rótulo colocado sobre uma realidade confusa.

Por esse motivo, numerosos são os que desistem de entender seu significado na majestosa galeria dos séculos que se foram, atirando para o ar, à guisa de justificativa: “Mas isto não forma conjunto!”

Isto porque os cenários e os atores mudaram substancialmente ao longo do Século XX. Basta pensar nos bondes puxados por burros em meio a prédios sem concreto armado e em ruas geralmente sem asfalto, do início do século. Ou naquela gente que se movia devagar, os homens com chapéu, as senhoras com longas saias, uns e outros ignorantes do que fosse uma televisão ou uma pílula anticoncepcional. Ou naqueles casamentos estáveis (menos de 2% de separações em 1900 contra quase 20% no ano 2.000).

Como tudo é diferente hoje! Como foram vertiginosas as transformações que se verificaram em nosso tempo!

Nos primeiros anos do século, um telefone que toca constitui uma novidade sensacional. Bem menos de 100 anos depois, a lembrança da conquista da lua provoca tédio!

Tudo aquilo que é lançado como última novidade torna-se obsoleto em pouco tempo. E à força de tudo precisar ser hiper-novo, tudo como que já nasce velho, embora com direito a alguns minutos de “glória”.

Em termos de tipo humano, as alterações também foram impressionantes. É quase impossível imaginar, encontrando-se num mesmo salão, um Guilherme II com um Bill Gates. Ou um Clemenceau com um Perón. Ou um Eduardo VII com um Clinton. Enquanto um se inclina e pergunta “como tem passado Vossa Senhoria?”, o outro dispara um “oi!” ou “olá!”...

Entretanto, todos esses personagens tão diversos, mas representativos de seu tempo, viveram num mesmo século! 

Chateaubriand (1768-1848) observava: “Este amor ao feio que nos tomou, este horror do ideal, esta paixão pelos mancos, aleijados, vesgos, trigueiros, desdentados, esta ternura pelas verrugas, rugas, escarros, pelas formas triviais, sujas, comuns, são uma depravação do espírito; ele não nos foi dado pela natureza da qual tanto se fala” [1].


Mas a arte contemporânea é tal qual ou até pior do que Chateaubriand descreve. Lê-se no "New York Times": Para se destacar como modelo, agora é preciso ter algum defeito. “Quando procuro modelos, ‘ser bonita’ não está na minha agenda”. [2]

Nossa época, como qualquer época da História, pode ser julgada através do tipo humano que gerou. De pouco adiantaria conquistar a Lua e todas as estrelas, e ao mesmo tempo desvendar o micro-universo do átomo, efetuar todas as proezas da tecnociência, atingir um grau de enriquecimento prodigioso numa estabilidade econômica completa, se concomitantemente o tipo humano entrasse em visível decadência. Pois o que interessa sobretudo ao homem, abaixo de Deus, é o próprio homem.

Vamos imaginar que em 100 anos todos os homens, atingidos por uma enfermidade desconhecida, se tornassem anões. Que decepção! Por mais que as conquistas da ciência e o desempenho da economia fossem expressivos, esse século ficaria marcado como catastrófico.

Felizmente, no Século XX isso não ocorreu no aspecto físico. Que dizer da alma e da personalidade? É a pergunta.

Afirma Plinio Corrêa de Oliveira: “Uma concepção a-filosófica e a-religiosa da sociedade, meramente econômica e profissionalista, dá origem ao grande desespero das multidões contemporâneas. Ontem estas se esbaldavam para fazer capital, hoje para fazer revolução, e já amanhã para se atirarem no bueiro do miserabilismo niilista, isto é, na glorificação do andrajo e da miséria, da sujeira, do desmazelo e do caos”. [3]
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Notas:
[1] Essai sur la littérature anglaise, II.
[2] Marisa Meltzer, "The New York Times", in "Folha de S. Paulo", 24-9-13.

[3] Em 11-2-83.



(*) Leo Daniele é colaborador da Agência Boa Imprensa (ABIM)

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