sexta-feira, 25 de agosto de 2017

ENTREVISTAS objETHOS entrevista Rafael Capurro




Ricardo José Torres
Doutorando em Jornalismo no POSJOR e pesquisador do objETHOS
Siliana Dalla Costa
Mestranda em Jornalismo no POSJOR e pesquisadora do objETHOS

No princípio o ciberespaço era um ambiente virtual separado do mundo real, mas com o passar do tempo tornou-se parte integrante da vida social e, hoje, caracteriza-se num dos maiores desafio da comunicação digital. A urgência em se chegar a um acordo internacional sobre regras para o ciberespaço é defendida pelo professor Rafael Capurro.
Filósofo, nascido no Uruguai, Capurro é um dos mais citados e principais pesquisadores da Ciência da Informação. Como docente atua na Escola Superior de Mídia de Stuttgart, onde desempenha atividades nas áreas de Ciência da Informação e Ética da Informação, além de editar a revista científica International Review of Information Ethics (IRIE) do centro de pesquisa Internacional Center for Information Ethics, criado por ele.
Nesta entrevista, concedida por e-mail, Capurro também alerta para uma reflexão sobre Ética Comunicacional da Ética Informacional; sobre a responsabilidade humana perante as decisões algorítmicas; sobre dilemas éticos no contexto latino-americano, além de tratar de temas como privacidade, censura e democracia. Confira! 
Quais as relações entre a ética informacional e a ética jornalística?
A ética informacional tem uma trajetória curta e uma longa. A curta começa com o impacto social da computação especialmente a partir da década de 70 e continua com o advento da Internet na década de 90. A longa tem um ponto culminante durante a chamada era Gutenberg quando os filósofos iluministas refletem sobre a política do estado e da Igreja que tentam regular a disseminação do conhecimento impresso por meio da censura. Mais para trás, isso nos leva as diversas formas e transformações da comunicação oral e escrita na Idade Média e na Antigüidade. Se trata sempre de problemas de poder e verdade: quem tem os meios e o poder de dizer o quê a quem, com que interesses e sobre que regras de verdade? Tanto a trajetória curta como a longa estão relacionadas com o jornalismo, o qual tem raízes na Antiguidade, embora seja fundamental para a Modernidade quando se torna chave para a democracia. A liberdade de imprensa é concebida como um quarto poder em um Estado democrático. A ética jornalística é parte da ética informacional, mas esta última é mais ampla enquanto analisa normas e costumes que regem a comunicação em uma sociedade em todas as suas formas e meios de comunicação. O termo ética comunicacional é, por vezes, utilizado para designar a ética jornalística. A ética informacional, vista a partir da curta trajetória, é chamada hoje também de ética digital.
O importante, para além da variedade de denominações, é não confundir a reflexão ética com seu objeto, as normas e costumes (do latim: mores) vigentes na sociedade. Esta diferença é geralmente realizada no campo acadêmico usando o termo de ética ou filosofiamoral para a reflexão e o de moral para as regras vigentes. Esta diferença se faz também, mutatis mutandis, quando distinguimos, por exemplo, a economia das Ciências Econômicas ou as leis da Ciência do Direito, ou seja, a reflexão e seu objeto.
Ver mais em:– Rafael Capurro: Desafíos teóricos y prácticos de la ética intercultural de la información, En Luis Germán Rodríguez L. y Miguel Ángel Pérez Álvarez (coord.): Ética multicultural y sociedad en la red. Fundación Telefónica, Madrid, 2014, 3-25.
Nas últimas décadas, quais foram os principais desafios impostos pelos avanços tecnológicos relacionados a ética informacional?
O desafio inicial foi a passagem de um formato de um para muitoscaracterística dos meios de comunicação de massa para interatividade da internet onde todo o receptor é um emissor potencial. Inicialmente se pensou o ciberespaço como um espaço virtual separado do mundo real. Paradigmático nesse sentido foi a “Declaração de independência do ciberespaço” de John Perry Barlow em 1996. Vinte anos mais tarde o ciberespaço tornou-se parte integrante da vida social. Os desafios atuais concernem não só na comunicação digital, mas no processo de digitalização especialmente na indústria, na economia e na política. É por isso que é urgente chegar a um acordo internacional sobre regras para o ciberespaço semelhante a de acordos em outros meios globais como do oceano e da atmosfera. Mas essas regras não são suficientes, tendo em vista os desafios da digitalização em geral. Este último se conhece também sob o termo Internet de (todas) as coisas (Internet of Everything). Mas digitalização não é algo que tem a ver com as coisas, mas com o horizonte de compreensão delas. Eu chamo esta última de ontología digital.
Outro grande desafio da tecnologia digital é a assim chamada exclusão digital que não é apenas um problema de acesso técnico à Internet, mas tem dimensões econômicas, políticas, culturais e educacionais. Em 2005, Nicholas Negroponte do MIT (Massachusetts Institute of Technology) lançou a iniciativa OLPC (One Laptop Per Child), ou seja, dar a cada criança um laptop que valeria 100,00 dólares. Isto, acreditava ele, revolucionaria o ensino. Nos últimos anos os telefones celulares e outras tecnologias de mobilidade digital mudaram não só as condições de acesso à Internet, mas a comunicação em geral. Enfrentar o desafio da exclusão digital significa hoje, por exemplo, dotar as escolas públicas com a infraestrutura necessária para que desenvolvolvam por sí mesmas conteúdos e formatos educacionais, criando bibliotecas escolares híbridas integradas na vida escolar e gerenciadas por bibliotecários profissionais em cooperação com professores e professoras, todos eles bem preparados e bem pagos. Um plano tecnocrático, centralizado, como o Plano Ceibal  (projeto socioeducativo inspirado no One Laptop Per Child criado em 2007) no Uruguai, perpetua a lacuna entre o digital e o real e não proporciona formas de criatividade a partir de baixo. Tudo isso é dito sem a intenção de diminuir o valor e a intenção política de criar uma situação de maior equidade com base no Plano Ceibal faz dez anos. O conceito de exclusão digital não é o mesmo há dez anos.
Ver mais em:– Proyecto Huella Digital / Biblioteca Nuevo Roble.
– Rafael Capurro y Maximiliano Rodríguez Fleitas: “Let the Orientalesbe as enlightened as they are brave”. The Digital Divide in the Context of Uruguay’s Public Schools.
– Rafael Capurro: Contribución a una ontología digital.
– Deutsche Welle: La voz de tus derechos. Entrevista con la periodista cubana Yoani Sánchez: Brecha digital: nuevos espacios de exclusión, Berlin, Mayo 2017.
O que caracteriza e quais as principais convenções relacionadas a ciberética?
A busca de convenções éticas e legais para o ciberespaço assim como para todos os tipos de processos digitais que utilizam a Internet como um meio para gerenciar diversos processos no mundo real, teve um momento político relevante com a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (Genebra 2003, Tunísia 2005) organizada pela União Internacional de Comunicações (UIC), com as respectivas Declarações de Princípios e um Plano de Ação  onde se fazia referêcia a dimensão ética da sociedade da informação, que dava ênfase ao respeito pelos direitos humanos. Uma parte desse Plano de Ação (C 10) se refere explicitamente a dimensão ética da sociedade da informação, estimulando os governos e o mundo acadêmico para promover o debate e a investigação neste campo.
Desde então a UNESCO tem organizado encontros regionais com o objetivo de elaborar e adotar um código global de ética para a sociedade da informação, entre eles em Santo Domingo (República Dominicana) em 2006. A primeira conferência africana de ética da informação ocorreu em 2007, em Pretória, África do Sul, sob os auspícios da UNESCO. Em setembro do mesmo ano a UNESCO, a Comissão Francesa para a UNESCO e o Conselho da Europa organizou um encontro regional sobre “Ética e Direitos Humanos na sociedade da informação”, realizada em Estrasburgo. Ele enfatizou os princípios éticos da dignidade e autonomia sobre tudo em relação à proteção de dados pessoais e  a vida privada, assegurando ao mesmo tempo a liberdade de expressão na Internet e a luta contra a criminalidade. A Primeira Conferência Regional para a Ásia e região do Pacífico sobre dimensões éticas da sociedade da informação organizada pela UNESCO e pela Comissão nacional vietnamita para a UNESCO foi realizada em 2008 em Hanói (Vietnã). Nestas e em outras conferências foram alcançados acordos regionais, mas não conseguiu-se chegar a um documento oficial comum.
O “Código de Conduta sobre a incitação ilegal ao discurso de ódio na Internet” da Comissão Europeia e de empresas de TI (Facebook, Twitter, YouTube, Microsoft) de 2016 é um passo nessa direção como é também o “Convênio sobre cibercriminalidade” aprovado pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa em 2001 que se aderiram logo os EUA e outros estados não europeus.
Quais são as implicações éticas de decisões mecânicas tomadas por fórmulas algorítmicas? 
O que é um algoritmo? O termo provém do nome do matemático persa Al-Juarismi (CA. 780-850 DC.), cujo “Compêndio de cálculo por conclusão e comparação” trata da aplicação de álgebra em problemas legais e comerciais da vida cotidiana. Diz-se frequentemente que os algoritmos digitais têm a capacidade de aprender, ou seja, de alterar as opções iniciais com base em novos dados. Mas dizer que os algoritmos aprendem é um antropomorfismo como dizer que tomam decisões ou assumem responsabilidades. Quem aprende, toma decisões e assume responsabilidades são os seres humanos que os criam e/ou utilizam. A ação humana se caracterizada pelo fato de que cada decisão está exposta desde sua mesma origem ao imprevisível. É esta contingência que não pode ser eliminada mediante um algoritmo. Toda fixação de opções possíveis carrega consigo um risco inevitável com respeito ao que é excluído. Um algoritmo que governa, por exemplo, os movimentos de um carro sem motorista, está também baseado implícita ou explicitamente em regras morais ou em leis. Os dilemas morais surgem por esta fixação.
Na sua opinião, quais são os principais dilemas ligados a ética informacional presentes no contexto latinoamericano?
Talvez seja melhor falar de temas e não só de dilemas em que uma multiplicidade de opções é reduzida a duas que carregam indistintamente o fim desejado ou o excluem. Em muitos casos, tanto na vida privada como na vida pública, somos confrontados com múltiplas opções entre as quais não é fácil prever qual é a melhor ou menos ruim. Isso exige um processo de valoração que leva tempo se não se quer tomar decisões impulsivas ou guiadas por princípios ou valores aparentemente absolutos ou que não necessitam uma interpretação com relação aos problemas em questão.
De 21 a 24 de fevereiro de 2017 celebramos com um simpósio dez anos de trabalho em ética informacional na África, sob a liderança do African Centre of Excelence for Information Ethics (ACEIE) do Departamento de Ciência da Informação da Universidade de Pretória. Nas 12 seções que envolveram cerca de 50 especialistas de 14 países (Nigéria, Gana, Sudão, Uganda, Quênia, Tanzânia, Malawi, África do Sul, Zimbabwe, EUA, Canadá, Alemanha, Holanda e Austrália), foram discutidos os seguintes tópicos que também são relevantes no contexto latinoamericano, a saber: 1. Acesso e acessibilidade; 2. Ética da Informação Africana; 3. Biometrics; 4. Consideração do multilinguismo; 5. Responsabilidade corporativa; 6. Cibercrime e Cibersegurança; 7. Liberdade de expressão; 8. Globalização; 9. Saúde; 10. Questões éticas da informação como PAPAS (Privacidade, Acesso, Propriedade Intelectual, Precisão e Segurança); 11. Impacto do colonialismo (e apartheid); 12. Importância da educação; 13. Importância de entender as principais definições; 14. Importância dos direitos humanos universais; 15. Conhecimento indígena e tradições; 16. Multiculturalismo; 17. Multistakeholder; 18. Fenômenos naturais; 19. Impactos negativos sobre o desenvolvimento da África; 20. Oportunidades trazidas pelas TICs; 21. Consideraçõe sobre PEST (Políticos, Econômicos, Sociais e Tecnológicos); 22. Prevalência da divisão digital; 23. Adequação da governança adequada e legislação (ou falta dela); 24. Relação entre individual e cultural; 25. Papel das organizações internacionais. Cada tópico abre vastos campos de reflexão e ação tendo em conta as condições locais. O multiculturalismo e a diversidade de línguas, por exemplo, é diferente na África e na América Latina. Ponderar a segurança e o controle social implica ver qual é o marco legal existente ou não na América Latina que possibilite e limite a ação governamental.
O projeto MISTICA liderado por Daniel Pimienta sob o marco da agora dissolvida Fundación Funredes foi uma fonte importante de discussão, valoração e avaliação durante muitos anos do que podemos chamar de culturas digitais latinoamericanas. No documento final de 2002 “Trabalhando a Internet com uma Visão Social” (Artigo 13, parágrafo 5) as seguintes questões foram levantadas:
  • Quais as ações que são promovidas impulsionam a produção de conteúdos locais?
  • Qual nível de participação estão tendo as populações que fazem com que se trabalha no desenvolvimento de conteúdos locais?
  • Em que medida se estão promovendo ações que permitam disseminar e promover os conteúdos locais?
  • Em que sentido se está promovendo a Internet como um espaço de expressão dos grupos menos favorecidos da sociedade e das culturas populares?
Embora existam grupos acadêmicos latinoamericanos dedicados a refletir sobre esses temas acredito que falta uma melhor coordenação das diferentes atividades. Isto poderia ser alcançado, por exemplo, com a criação de Centros de Excelência em Ética da Informação, semelhantes ao African Centre of Excellence for Information Ethics (ACEIE) na África do Sul. Apoios institucionais destes centros são as universidades e centros de pesquisa. Entre estes últimos gostaria de mencionar o Instituto Brasileiro de Pesquisa em Ciência e Tecnologia(IBICT), onde trabalham colegas como Marco Schneider e Gustavo Saldanha, assim como também a María Nélida González de Gómez da Universidade Federal Fluminense (UFF). Uma importante fonte de informação e comunicação neste campo é a Rede Latinoamericana de Ética da Informação (RELEI), liderada por Miguel Angel Pérez Alvarez da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM). O primeiro Congresso Brasileiro de Ética da Informação foi realizado em João Pessoa em 2010 e o terceiro em São Paulo em 2017. Finalmente, quero destacar o trabalho do jurista peruano Erick Iriarte Ahon com o projeto LatinoamerICANN dedicado a Governança da Internet na América Latina em que informa por meio de uma excelente lista (latinoamericann@dgroups.org).
Ver mais em:– African Centre of Excellence for Information Ethics (ACEIE).
– Iriarte & Asociados.– MISTICA (Metodología e Impacto Social de las Tecnologías de la Información y Comunicación en América).– Primer symposio brasilero sobre ética de la información (Joao Pessoa 2010).– Red Latinoamericana de ética de la información (RELEI).– Tercer symposio brasilero sobre ética de la información (Sao Paulo 2017).– World Café Sessions Report (2017).
O avanço contínuo das formas de intrusão por parte do Estado e de grandes empresas privadas geram problemáticas conexas a privacidade. Quais os principais reflexos sociais do monitoramento massivo das formas de comunicação contemporâneas?
O público e o privado são fenômenos fundamentais de toda a sociedade humana enquanto que o ser humano tem um conhecimento limitado de si mesmo e do mundo. Sua sobrevivência e desenvolvimento depende não apenas de sistemas de imunidade biológica, mas também de todos os tipos de sistemas de proteção, entre os quais, as regras morais e legais que desempenham um papel preponderante, além dos sistemas técnicos que estão cada vez mais sendo determinados pela tecnologia digital. Em outras palavras, uma sociedade tecnologicamente avançada como é a sociedade digital atual, depende de sistemas de proteção que permitem tanto a sua subsistência como uma sociedade organizada em diversos sistemas, bem como da subsistência e desenvolvimento dos seus membros com seus próprios propósitos. Este último significa que uma sociedade que respeite a liberdade individual dos seus membros deve evitar tanto um sistema inmunitario técnico e simbólico que permita ao estado um controle de seus súditos sob o pretexto de protegê-los, como um sistema no qual a livre comunicação entre os indivíduos seja um monopólio de agentes privados. Este último acontece atualmente com diferentes graus de perda de privacidade em favor da transparência por parte destes agentes e de sua colaboração com agentes estatais.
A diferença público/privado varia de acordo com condicionamentos históricos complexos de relações de poder em campos tais como a vida diária, a política, a economia, a cultura, a arte ou a religião. Se entendemos o código público/privado como a possibilidade de ocultar e revelar quem somos, podemos analisar como se joga hoje a intrusão do estado e de empresas privadas usando técnicas comunicacionais digitais ao contrário de outras sociedades baseadas na oralidade, escrita e impressão . A distinção público/privado tem a ver com o jogo social de estima ou recusa em que se funda a identidade pessoal e social. O monitoramento massivo da comunicação digital põe em causa de julgamente esta dita liberdade sem que muitas vezes um indivíduo ou um grupo em uma rede social o perceba como tal. Enquanto o Estado pode proibir por lei certas formas de comunicação como o discurso de ódio (hate speech), o faz muitas vezes através de uma censura imposta aos intermediários. Isso não resolve o problema de fundo que é o fato de que a comunicação digital está nas mãos de grandes empresas, sendo assim, a comunicação como a pensou, por exemplo, Jürgen Habermas, é o motor da democracia e, portanto, algo eminentemente político.
A pergunta que surge é, então, por que não criamos espaços públicos de comunicação digital garantidos por lei? É como se no caso das cidades tivermos apenas ruas e praças privadas. Alguns se gabam de que dois bilhões de pessoas são membros de uma rede social criada por uma empresa privada, que espera que todos os seres humanos sejam seus membros. As consequências de uma humanidade formada seja ela por um Estado ou por uma empresa privada, independentemente de suas boas intenções, são fáceis de imaginar. Elas dizem respeito não só a centralização do poder nas mãos de pessoas ou grupos não escolhidos democraticamente nem legitimados para definir as regras do jogo social, mas também uma transformação fundamental da pluralidade e diversidade das sociedades humanas em torno de uma visão tecnocrática. Esta tem as suas raízes nas religiões e suas aspirações de salvação universal mediante a formação de um corpus mysticum que é projetado agora no meio digital. Chamo essas visões de cibergnosis. O jurista italiano Stefano Rodotà, que morreu recentemente, nunca se cansou de insistir no que ele chamou de “habeas data”, ou seja, o direito dos indivíduos a que se respeitem seus dados em forma similar à promessa feita na Carta Magna em 1215: “We shall not lay hand upon thee” que concerne ao respeito ao corpo humano em sua integridade ( “habeas corpus”).
Ver mais em:– Rafael Capurro: Aspectos interculturales de la privacidad en un mundo digitalmente globalizado.– Rafael Capurro – Christoph Pingel: Ethical Issues of Online Communication Research.– European Group on Ethics in Science and New Technologies (EGE): Opinion Nr. 20, 16/3/2005 (Rapporteurs S. Rodotà y R. Capurro):  Ethical Aspects of ICT Implants in the Human Body.
Em diferentes contextos e regiões do mundo percebemos formas de censura e restrição de liberdades, o enfraquecimento da democracia, retrocessos e intolerância. Qual o papel da ética informacional nestas circunstâncias? 
A questão aponta para uma possível adequação entre informação global e conduta ética igualmente global, ou seja, fundamentada em normas e valores transculturais e universais. Esta adequação é diferente do que buscou a Iluminação contrapondo valores universais  e dos princípios do Ancien Régime. Karl Marx deu outro tipo de resposta frente a inadequação entre os valores universais representados pela classe trabalhadora e os interesses do capital. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, por sua vez, foi uma resposta política aos horrores da Segunda Guerra Mundial. A pergunta sobre aquilo que nos une como humanidade não parou de nos preocupar desde o início da filosofia no Ocidente e em outras grandes culturas assim como a ciência moderna como herdeira da filosofia. Ela está também presente em religiões com mensagens universalistas. E está também nas ambições políticas de criar reinos ou estados universais ou, pelo menos, de submeter outras culturas a interesses coloniais, sem dúvida, em muitos casos, para instrumentalizar declarações universais para interesses particulares.
Culturas, línguas e formas de vida se influenciam mutuamente criando diversos tipos de hibridizações ou identidades de fluxo permanente. Estas últimas são uma forma de realizar a universalidade como uma variedade e não como uma homogeneidade. Tal variedade supõe então um constante esforço de tradução tanto lingüística como de formas de vida, incluindo costumes, estilos de construção, modas, tradições culinárias, mitos, ritos e literaturas, etc. Universalidade e variedade não são, vistas assim, conceitos contraditórios. A variedade cultural que implica uma variedade de valores e príncipios éticos não é menos importante que a diversidade biológica embora ambas se distingam no sentido de que a variedade de culturas é acompanhada da possibilidade de reflexão sobre si mesma e de pensar justamente a sua variedade comounidade.
A globalidade criada pela tecnologia digital pode padronizar as culturas, línguas, valores em que somos não cosmopolitas como pensava, por exemplo, o filófoso grego Diógenes de Sinope, mas cidadãos da rede ou endictiopolitas (do grego: dyktion = rede). Mas este tipo de universalismo tecno-político nada mais é que uma visão tecnocrática que vê a humanidade com sua variedade de culturas e modos de vida no mundo real como algo a ser superado. O cibermundo é um lugar paradigmático da era digital em que tem lugar as lutas econômicas, sociais, políticas e religiosas. O que significa ter uma conduta ética global na era digital? Nem mais nem menos do que questionar universalismos tecnocráticos e ambições monopolistas, lutar contra o mau uso da rede para todos os tipos de ações destrutivas e discriminatórias, e transformá-lo em um lugar regido por leis comuns, o respeito mútuo e a solidariedade.
Ver mais em:– Rafael Capurro: Cidadania na Era Digital. En: Adilson Cabral e Eula Cabral (eds.) Comunicação, Cultura, Informação e democracia: tensões e contradições. Porto: media xxi, 2017, 49-75.
– Luis Germán Rodríguez L. y  Miguel Angel Pérez Alvarez (eds.): Ética multicultural y sociedad en red. Madrid: Telefónica 2014.
– Toni Samek & Lynette Schultz (eds.): Information Ethics, Globalization and Citizenship. Essays on Ideas to Praxis. Jefferson NC: McFarland.
Em várias áreas do conhecimento o uso de robôs é cada dia mais frequente. Falando especificamente de jornalismo, como você observa essa relação entre máquina e seres humanos?
Esta pergunta tem uma longa história. Há antecedentes míticos que aludem, por exemplo, Homero na “Ilíada” (18, 369-379), quando ele fala de Hefesto, o deus dos ferreiros e artesãos, que fabricam serventes artificiais que assistem aos deuses em suas assembleias movendo-se por si mesmos (oi automatoi). Aristóteles menciona estes versos em sua “Política” (Pol. 1253 b 35-39) quando diz, com certa ironia, que se tivermos serventes artificiais não necessitaremos escravos. Karl Marx cita esta passagem de Aristóteles, “o maior pensador da Antiguidade”, em “Das Kapital” e critica os economistas que não compreendem que “la máquina es el instrumento más probado para alargar el trabajo diario.” (IV, cap. 13, 3, b). Os robôs da era digital vão mais além do que pensava Marx, porque em vez de estender o trabalho diário substituem os trabalhadores que têm assim tempo, mas não trabalho, pelo menos enquanto não consigam capacitar-se para outros tipos de trabalho próprios da era digital. Por outro lado Marx tem razão se entendermos o termo robôs em um sentido amplo incluindo nele, por exemplo, instrumentos como o telefone celular ou qualquer tipo de objeto conectado à rede no que é chamado Internet das coisas. Isso cria uma situação de estar conenctado permanentemente tanto na vida diária como na laboral.
O regime de tempo imposto pela tecnologia digital é mais amplo do que impôs a modernidade com base no relógio, mas ambos têm algo em comum enquanto obrigam os indivíduos a viver apenas no presente, desligando-os da liberdade de recordar o passado e de abrir-se ao futuro, ou seja, de viver o tempo humano tridimensional. Neste sentido, a mudança introduzida pela robótica é tal que a vida humana é medida pelo tempo unidimensional próprio dos robôs mesmo quando estes imitam o tempo humano e até mesmo quando os robôs nos trazem muitas vantagens, tanto na vida diária como na laboral. O desafio consiste em não nos deixarmos dominar pelo regime temporal e por aqueles que os utilizam como instrumento de vigilância, domínio e opressão de diversos tipos e graus, com ou sem o consentimento dos sujeitos que se transformam assim em objetos dos que gerenciam o poder político e/ou econômico no mundo digitalizado.
Isto vale também para o jornalismo, não só em relação ao uso da chamada inteligência artificial para as tarefas jornalísticas em todos os níveis, mas também para a relação entre o jornalismo como filtro regulador da difusão de notícias em um meio ainda não suficientemente regulado pela lei. O desafio consiste em não perder o impulso libertador da rede digital global e interativa com suas possibilidades de melhorar a vida de milhares de milhões de seres humanos. A liberdade de imprensa não tem lugar em um espaço neutro, mas é jogada em meio a lutas de poder a nível local e global. Os clássicos agentes midiáticos como a imprensa e canais de televisão públicos e privados se somam agora a oligopolistas da era digital como o Facebook ou Google, que filtram de diversas maneiras o que é mais ou menos importante. Essa filtragem significa, em muitos casos, distorcer as notícias de modo que o falso aparece como verdadeiro (fake news). Esta distorção é um poderoso instrumento de luta política, econômica e militar (digital warfare). A luta de meios se torna assim um elemento fundamental do século XXI. O jornalismo como ator social precisa redefinir seu papel e sua responsabilidade neste novo contexto midiático.
Estamos vivendo a aurora da era digital, mas as suas facetas positivas e negativas já se oferecem a vista de um observador atento que não se deixa iludir nem pelas promessas de um marketing agressivo nem pelas obsessões, ambições e esperanças que toda a criação humana traz consigo. Como disse o filósofo francês Jean Brun, referindo-se a reflexões de Paul Valéry sobre as “máquinas calculantes”, as máquinas são filhas da imaginação mais que da razão. Eles são “aparatos metafísicos” de que o ser humano espera não só uma salvação sócio-econômica, mas sim algo que o libere de seus limites existenciais. Estamos apenas começando a sonhar sonhos digitais. Não esqueçamos as palavras de Francisco Goya: “O sonho da razão produz monstros”.
Ver mais em:– Jean Brun: Biographie de la machine. En: Les études philosophiques, 1985, 1, p. 3-16.
– Rafael Capurro: Living with Online Robots.
– Rafael Capurro: Autonomous Zombies are not an Option.
– Rafael Capurro: The Quest for Roboethics: an Interview with Yue-Hsuan Weng.
– Rafael Capurro: La cosa para pensar.
– Hektor Haarkötter & Felix Weil (Guest Editors): Ethics for the Internet of Things. International Review of Information Ethics, 22/2014.
* Agradecimento
O entrevistado Rafael Capurro agradece ao Prof. Oscar Krütli (Córdoba, Argentina) pela sua leitura crítica das respostas.

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