Fonte: canaltech.com.br
Há, no YouTube, um vídeo brasileiro que já atingiu a marca de 1,1 milhão de visualizações. Com 7,2 mil curtidas até o momento, ele foi publicado por um canal igualmente popular, que ostenta quase 10 mil inscritos. Mas engana-se quem achou que tal clipe — que possui menos de quatro minutos de duração — apresenta um novo hit musical, uma opinião controversa de algum vlogger ou algo do gênero. Tudo o que ele mostra é uma garotinha, que deve ter menos de 10 anos de idade, fazendo poses sensuais de “ginástica”.
Este é só um exemplo dos diversos vídeos que estão sendo publicados por brasileiros no YouTube e que fazem apologia e insinuações à prática de pedofilia. Como constatou o Canaltech, a versão brasileira da plataforma anda sendo inundada por conteúdos que, em uma breve olhada, podem parecer inocentes; porém, basta prestar um pouco de atenção aos detalhes para perceber que estamos diante de gravações de cunho pornográfico estrelando menores de idade.
O clipe citado anteriormente nem possui áudio ou uma descrição, e seu título é genérico — provavelmente para despistar os algoritmos de moderação automática do YouTube e não aparecer nos resultados de busca. Tudo o que vemos é uma jovem (vestida com trajes que expõem bastante seu corpo) exercitando-se, com a câmera dando sugestivos focos em suas regiões íntimas.
Gravações suspeitas e comentários impróprios
Essa foi uma das primeiras gravações suspeitas que o Canaltech encontrou, mas não foi a única. Em outro vídeo, uma garota ainda mais jovem — em seus sete ou oito anos — é filmada subindo em uma cama e rebolando, só de calcinha, para a câmera. São menos de trinta segundos de vídeo e, mais uma vez, milhares de visualizações. O título é igualmente aleatório, resumindo-se na data em que a filmagem foi realizada.
Da mesma forma, um clipe com 115 mil visualizações, publicado por um canal de uma criança com 2,3 mil inscritos, estrela a própria dançando funk em roupas íntimas na frente da webcam. Mais uma vez, o arquivo foi postado com nomes randômicos e atingiu o pico de acessos poucos dias após ser publicado.
Até mesmo os conteúdos “menos populares” conseguem uma audiência impressionante, como o do exemplo abaixo, que atingiu 87 mil visualizações. A filmagem mostra uma criança comentando sobre sua rotina na escola, mas, em alguns momentos, ela acaba exibindo os seios na frente da câmera.
Existem, aliás, canais inteiros dedicados a esse tipo de gravação. Intitulados com o nome das garotas que os estrelam, eles fingem tratar do dia-da-dia das jovens, mas as expõem em situações constrangedoras e que podem ser consideradas impróprias perante a lei.
Nenhum dos vídeos encontrados pela nossa equipe possui pornografia explícita, mas são claramente produtos feitos para a comunidade digital de pedofilia, possivelmente sendo compartilhados em fóruns e sites ainda mais obscuros da web — isso explicaria a quantidade absurda de visualizações que tais clipes recebem.
Se há dúvidas de que os autores dos vídeos podem ser indiciados ou não por pedofilia, o mesmo não pode ser dito dos internautas que deixam comentários nos (poucos) clipes nos quais o campo de interação está aberto. É fácil encontrar indivíduos disparando “elogios” insensatos às jovens; alguns vão além e escrevem obscenidades, enquanto outros oferecem seus números de telefone para contato via WhatsApp.
Em alguns casos, os contraventores são rechaçados por outros internautas. Porém, ao que tudo indica, a equipe de moderação do YouTube não aplica nenhuma represália para esse tipo de comportamento indevido.
O que diz a lei
De acordo com Cristina Sleiman, advogada especialista em direito digital, um recente entendimento do Supremo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (STJ/SC) decidiu que não há necessidade de existir a plena exposição dos órgãos genitais em um conteúdo para que ele seja caracterizado como pornografia infantil — ou seja, os vídeos em questão podem, de fato, ser considerados pedofilia.
Sendo assim, os adultos responsáveis por disseminar esse tipo de material podem responder ao artigo 240 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que proíbe “produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente”. A pena para o contraventor pode variar de quatro a oito anos de detenção, além de multa.
Questionada se o YouTube também pode ser indiciado por hospedar tais arquivos de vídeo, Cristina afirma que sim, “mas a punição recai apenas se após ser notificado deixar de desabilitar o acesso a tais conteúdos”. Já os comentaristas podem responder ao artigo 241-D da mesma legislação, podendo ser detidos por um a três anos. “O artigo 241 D do ECA estabelece que constranger, por qualquer meio de comunicação, a criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso, é crime. Portanto, partindo deste embasamento, dependendo do comentário e publicações poderá sim caracterizar crime”, complementa a advogada.
A explicação do YouTube
Procurada pelo Canaltech para prestar esclarecimentos a respeito do assunto, a assessoria de imprensa do YouTube explicou como funciona o processo de moderação do serviço. “O YouTube [...] é uma plataforma aberta com a missão de dar voz às pessoas e de mostrar todas essas vozes para o mundo. Sabemos que há um desafio para todo esse alcance: pessoas mal-intencionadas que usam nossa plataforma para enganar, manipular, assediar ou mesmo ofender. Reconhecemos que lidar com essas questões de maneira responsável é uma parte crítica e fundamental do papel que desempenhamos na sociedade”, comenta.
De acordo com os porta-vozes, todos os vídeos do site devem estar em conformidade com suas diretrizes e a ajuda dos próprios internautas para denunciar irregularidades é algo essencial. “As políticas de nossos produtos proíbem conteúdo de assédio e intimidação virtual, conteúdo prejudicial ou perigoso, conteúdo explícito ou violento, e qualquer usuário pode denunciar um isso. Nossa equipe analisa vídeos sinalizados 24 horas por dia, sete dias por semana, para determinar se violam nossas diretrizes de comunidade. Quando existe alguma violação, removemos os vídeos”, explicam.
Além da revisão humana — que tem como objetivo impedir que conteúdos de boa índole sejam confundidos com transgressões às políticas de uso —, o YouTube também passou a, recentemente, utilizar recursos de machine learning para acelerar o processo de revisões. “Aumentamos nossas equipes e investimos em uma poderosa tecnologia de aprendizado de máquina para agilizar o trabalho de nossos moderadores humanos e reduzir rapidamente os vídeos e comentários que violem nossas políticas. Agora, estamos aplicando as lições aprendidas nesse combate ao conteúdo extremista durante o último ano para enfrentar outros conteúdos problemáticos, incluindo segurança infantil e discurso de ódio”, comenta a companhia.
O YouTube também afirma ter parcerias com organizações de proteção infantil que o ajudam a reportar infratores para as autoridades competentes. A empresa possui, inclusive, um programa chamado Revisor Confiável; conteúdos sinalizados por tais moderadores (que costumam ser instituições sem fins lucrativos, como a Safernet) ganham prioridade na agenda de revisão, garantindo que clipes impróprios sejam removidos e investigados com maior agilidade.
Questionada sobre o assunto, a assessoria do YouTube afirmou que “a Google cumpre a legislação brasileira para fornecimento de dados, recebendo e processando as ordens de autoridades policiais e judiciais brasileiras emitidas nos termos da legislação aplicável”.
Problema recorrente
Vale observar que essa não é a primeira vez que o YouTube se envolve em polêmicas do gênero. Em novembro do ano passado, internautas da língua inglesa reportaram que o serviço estava sugerindo pesquisas também sobre conteúdos de pedofilia, incluindo “como fazer sexo com crianças” e “como fazer sexo com seus filhos”. Na época, a plataforma conduziu uma investigação e comentou que tais sugestões provavelmente haviam sido “plantadas” de forma intencional por bots ou usuários mal-intencionados.
Outra crítica constantemente direcionada ao YouTube é em relação ao Kids, seu aplicativo que, na teoria, deveria exibir apenas vídeos próprios para o público infantil. Porém, mesmo depois de diversas reclamações, o software continua oferecendo clipes violentos e perturbadores, tornando-o impróprio justamente ao público que ele deseja atingir.
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